O Texto Constitucional de 1988 é claro em reconhecer o caráter representativo do regime democrático brasileiro. Todavia, ainda que não existissem instrumentos próprios da democracia participativa, a delegação não pode implicar a completa supressão de exercício de juízo crítico da gestão da coisa pública.
Dessa forma, ainda que existam instituições e órgãos de controle, sempre será assegurado ao cidadão o direito de examinar o gestor. Adotar postura diversa é trilhar por uma apatia cívica.
Ao tratar do processo de marginalização, Hélder Câmara destaca para a possibilidade desse fenômeno se efetivar em três graus, sendo certo que, além da participação nas riquezas produzidas e na própria criação delas, o religioso cearense apontava que o derradeiro estágio implica o afastamento dos processos decisórios[1].
Ora, ao restringir a sua participação cívica ao momento do voto, o cidadão, na verdade, se autocoloca em situação de marginal dos processos decisórios, ainda que sobre ele repercutam as deliberações adotadas pelo seu representante. Por não pactuar com esse comportamento omissivo e que tangencia inimputabilidade, pois se vale do discurso de que a responsabilidade foi transferida, é que se examina a recorrente qualificação do Exército Brasileiro, pelo chefe do Executivo Federal, a partir da utilização do pronome possessivo[2].
Apesar de constituir uma frase de efeito – o passado não está morto! – é necessário adotá-la como premissa analítica, pois ela bem retrata a disputa de narrativas que se dão no campo ideológico sobre algo que não mais existe.
O Brasil, como país independente, surgiu formalmente em 07 de setembro de 1822, após o famoso brado às margens do Ipiranga realizado por Pedro, o filho do rei João que já havia retornado para o Velho Mundo. Porém, antes mesmo disso, é atribuído o dia 19 de abril como Dia do Exército, já que nessa data, no ano de 1648, se deu a vitória portuguesa sobre as forças holandesas na Batalha dos Guararapes.
Ora, como pensar em uma data festiva para as Forças Armadas, quando sequer existia o país? Eis um claro exemplo da apropriação da história por interesses distantes e diversos dos fatos ocorridos.
Em 2021, justamente na comemoração militar, o atual chefe do Executivo, tal como já havia ocorrido anteriormente, mais uma vez se referiu àquela força armada a partir do uso de pronome possessivo: o meu exército.
De acordo com o Texto Constitucional, o Brasil é uma república, sendo certo que o modelo de regime monarquista foi repudiado em 1988 e indesejado pela população no plebiscito realizado em 21 de abril de 1993.
Dessa forma, o uso do pronome possesivo, por parte do atual chefe do Executivo Federal, ao se referir ao Exército Brasileiro, indica, de plano, a mais pura incompreensão da realidade jurídica brasileira.
Frise-se: somente o povo brasileiro pode chamar a Marinha, o Exército e a Aeronáutica de seus. Não se trata de uma “mera e vã” discussão linguística. Longe disso!
Há dois aspectos que não podem ser ignorados: o fato de não indicar a adoção de um horizonte em que o patrimônio estatal poderia ser apropriado, o que, aliás, se mostra em conformidade com os megalomaníacos gastos para o gozo de férias[3] e viagens a passeio da comitiva presidencial; bem como o risco que o patrimonialismo pode representar à república[4].
Essa possibilidade de uso da coisa pública para fins completamente diversos dos indicados para o bem comum é séria e atual, ainda mais quando se verifica o manejo da Lei de Segurança Nacional (LSN) como forma de intimidar os críticos ao governo federal[5]. Não há aqui, portanto, histeria ou alarmismo, mas lastro para uma real e sincera preocupação.
O que então poderia se esperar do uso do Exército bolsonarista? O resgate de práticas abjetas executadas no período de 1964-1985 e que poderiam ser celebradas em redes sociais pelo detentor dessa força armada? Os analistas que criam embaraços serviriam, após a atuação dos batalhões pessoais, para as campanhas de CPFs cancelados?
Sem sombra de dúvida, é preocupante esse discurso. Outrora, as Forças Armadas, a partir da concepção do general Góis Monteiro, invocaram a posição de detentora do poder moderador na república, apesar da abolição de tal poder em 15 de novembro de 1889.
Já no período autoritário estabelecido em 1º de abril de 1964, o Exército quis invocar a postura de árbitro da segurança pública[6], o que repercute, até hoje, no controle que exerce sobre as polícias militares e os bombeiros militares.
Resta o questionamento: o que se pode esperar com a utilização de um Exército que se tem para si? A lógica neoliberal se mostra contundente na crítica ao estabelecimento de um Estado Social, o que aponta para a necessidade do uso da força para manter a sua legitimidade, sendo certo que a história chilena não pode ser esquecida[7].
Desse cenário, depara-se com a censura oficialmente estabelecida aos programas sociais instituídos por governos anteriores do PSDB e PT. Ao se referir ao Exército Brasileiro como seu, quiçá inspirado no slogan do Minha Casa, Minha Vida, o atual presidente da República talvez queira apontar para uma nova fase da história militar: Meu Exército, Minha Milícia!
O espírito cívico impõe se insurgir contra esse intento, fechar os olhos ou se calar é simplesmente permitir o afundamento da república brasileira e isso não pode ser aceito, pois a apatia cívica é claro sinal de grave enfermidade da sociedade.
[1] “– no primeiro, fica-se à margem dos benefícios e serviços que decorrem do progresso econômico; – no segundo, fica-se à margem da criatividade; – no terceiro, fica-se à margem das decisões.” (CÂMARA, Hélder. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 52)
[2] A generais Bolsonaro repete ‘meu Exército’ e diz que ele e os militares sempre irão agir dentro da Constituição. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/04/a-generais-bolsonaro-repete-meu-exercito-e-diz-que-ele-e-militares-sempre-irao-agir-dentro-da-constituicao.shtml>.
[3] Governo terá que explicar gasto de R$ 2,4 milhões com férias de Bolsonaro. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/governo-tera-de-explicar-gasto-de-r-24-milhoes-com-ferias-de-bolsonaro/>.
[4] Sobre essa questão, é relevante ter em mente a lição trazida por Renato Janine Ribeiro: “Na monarquia manda um, e na república o poder é usado para o bem comum. Assim, embora quando um único mande tenda a usar o poder em benefício próprio, a verdadeira ameaça à república está nesse uso do poder, e não na forma institucional: está nos fins, e não nos meios. Resumindo: o inimigo da república é o uso privada da coisa pública. É sua apropriação, como se fosse propriedade pessoal.” (RIBEIRO, Renato. A república. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 36)
[5] Inquéritos da PF com base na Lei de Segurança Nacional crescem 285% no governo Bolsonaro. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,inqueritos-da-pf-com-base-na-lei-de-seguranca-nacional-crescem-285-no-governo-bolsonaro,70003652910>.
[6] “Do papel moderador da política nacional, conforme defendido pelo general Goés Monteiro, nos anos 1930, os militares assumiram a função de árbitros da segurança pública.” (GODOY, Marcelo. A Casa da Vovó. Uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar. São Paulo: Alameda, 2014. p. 407)
[7] “Sergio de Castro, o Garoto de Chicago que foi ministro da Economia de Pinochet e supervisionou a implementação do tratamento de choque, admitiu que jamais teria conseguido fazer o que fez sem o suporte da mão de ferro do ditador” (KLEIN, Naomi. A doutrina de choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p. 135)