
Qual é a origem da expressão “gato de energia elétrica”? Quem tiver a curiosidade de buscar essa informação, encontrará duas explicações plausíveis.
O mais provável é que essa denominação venha da ligação clandestina que precisa ser feita no fio de eletricidade: o “engate”. Termo esse que decorre da forma como os gatos cruzam, com o macho se “enganchando” ou “engatando” na fêmea. Outra possível explicação está na raiz latina da palavra “cattu”, que deu origem à expressão “gatuno”, utilizada em espanhol e em português para designar “ladrão”, alguém que se move rápida e furtivamente, como os gatos.
Ainda mais difícil do que se apurar a origem da expressão é descobrir a origem das milhões de ligações clandestinas que existem atualmente na rede elétrica no Brasil e que geram incontáveis prejuízos para as empresas distribuidoras de energia elétrica.
Estima-se que, em todo o país, as chamadas perdas não técnicas de energia elétrica resultem em um prejuízo da ordem de R$ 4,5 bilhões por ano[1]. Apenas no estado do Rio de Janeiro, que ocupa lugar de destaque no cenário nacional nesse tipo de crime, o total de energia elétrica desviada seria suficiente para abastecer todo o estado vizinho: o Espírito Santo.
O furto de energia representa uma grande perda para as concessionárias de energia e para todos os consumidores. Basta dizer que, para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e para a sobrevivência das próprias concessionárias, esse valor, do ponto de vista regulatório, tem que ser repassado para a tarifa. Assim, no final do dia, quem paga pela energia consumida acaba pagando também a conta daqueles que igualmente consomem energia, mas não a pagam.
Por mais que as distribuidoras se empenhem em monitorar a rede para coibir esses desvios, elas invariavelmente esbarram em problemas muito superiores à sua capacidade gerencial. A maior parte dessas ligações clandestinas acontece em comunidades dominadas pelo tráfico ou pela milícia, locais de difícil acesso até mesmo para as forças de segurança.
Há localidades em que o valor das perdas de energia alcança 80-90% da energia total consumida. A perda é a regra, não a exceção. Para se ter uma ideia do surrealismo da situação, há notícia de que, em algumas áreas, o tráfico e a milícia cobram dos moradores taxas para a manutenção do “gato”, sob pena de cortarem a energia, em uma espécie de “concessão” de energia do estado paralelo.
Mas o que isso tem a ver com tributos? Em tese, não deveria haver qualquer relação. Quer dizer, a atividade ilícita só costuma ser abordada nos trabalhos de Direito Tributário quando se trata da questão da tributação do chamado “ato ilícito” e a possibilidade de incidência, normalmente do imposto de renda, sobre os proventos oriundos do crime, nos termos do artigo 118 do Código Tributário Nacional. Seria esse o objetivo desse artigo?
Não. Ao revés, o curioso aqui é justamente o fato de a Receita Federal estar cobrando IRPJ, CSLL, PIS e Cofins das vítimas dos crimes, que sofrem as perdas.
É isso mesmo: as autoridades fiscais vêm entendendo que as distribuidoras de energia não podem deduzir da base de cálculo do IRPJ e da CSLL os custos com a energia que é comprada, mas que, por conta dos “gatos”, é consumida sem ser faturada e paga.
Como se isso não fosse suficiente, o Fisco vem exigindo o estorno do crédito de PIS e de Cofins apropriado na aquisição dessa parcela da energia.
Na verdade, a Receita Federal tem, sim, admitido essa dedução, mas desde que as empresas façam um boletim de ocorrência policial que seja específico e detalhado para cada ocorrência criminosa do gênero. A alegação é de que essa providência seria exigida pelo artigo 47, § 3º da Lei nº 4.506/1964. Com relação às contribuições sociais, o Fisco tem entendido que as perdas não técnicas são perdas que acarretam o estorno do crédito, na forma do artigo 3º, § 13º, da Lei nº 10.833/2003. Esse entendimento está refletido na Solução de Consulta Interna COSIT nº 3/2017.
O que se vê, portanto, no que tange a essa necessidade de boletim de ocorrência para cada ocorrência, de forma individualizada, é uma nova “obrigação acessória” impossível de ser cumprida na prática. Não bastassem as 2.000 horas que as empresas brasileiras são obrigadas a observar normalmente por ano, para estarem em dia com o Fisco, está sendo exigido que as concessionárias ainda realizem um minucioso trabalho de caráter investigativo-policial e em escala industrial!
Essa exigência fiscal parece-nos absurda, além de claramente ilegal, por três motivos principais.
Em primeiro lugar, porque as perdas não técnicas, notadamente aquelas decorrentes do furto de energia elétrica, são, lamentavelmente, perdas habituais e inerentes à atividade de distribuição de energia, como definido pela própria ANEEL, que, além do mais, as considera na composição da tarifa de energia, no campo regulatório.
Por preencherem essas condições, essas perdas devem integrar o custo da mercadoria e do serviço, nos termos do artigo 46, inciso V, da Lei nº 4.506/1964, sequer se fazendo necessária a apresentação de provas complementares para a sua dedução, como a queixa policial/notícia-crime de que trata o artigo 47, § 3º da Lei nº 4.506/1964.
O artigo 47, § 3º, da Lei nº 4.506/1964 só faz essa exigência para os casos de perdas ou desfalques extraordinários, ocasionados por terceiros ou empregados, em que tais documentos servem justamente como prova da excepcionalidade do evento para se fundamentar a dedução.
Justamente porque essas perdas são inerentes à atividade é que os créditos de PIS e de Cofins apropriados sobre a energia adquirida, mas perdida, devem ser mantidos. Caso contrário, o ônus desses tributos passa a representar um custo para as distribuidoras, que se integrará ao preço de venda, em uma ilegal e inconstitucional incidência cumulativa dessas contribuições sobre elas próprias.
Em segundo lugar, ainda que se entenda que as perdas por furto de energia elétrica não integrariam o custo do serviço, resta claro que, ao menos, deveriam ser consideradas como despesas dedutíveis, no caso de apresentação da queixa/notícia-crime, perante a autoridade policial, nos termos do artigo 47, § 3º da Lei nº 4.506/1964.
Esse registro policial deve ser feito da melhor forma possível para consignar a informação mais precisa existente acerca da energia perdida. Todavia, não se pode exigir da concessionária o ônus da prova de detalhar de forma individualizada e específica todos os “gatos” existentes na rede elétrica, até porque, como demonstrado acima, essa prova é simplesmente impossível de ser feita na prática.
Em terceiro lugar, a exigência fiscal em comento configura esdrúxula hipótese de bis in idem, visto que onera duplamente as distribuidoras por um mesmo fato. Na primeira vez, ao impedi-las de deduzir e de se creditar de PIS e Cofins sobre o valor da energia adquirida e perdida. Na segunda vez, ao obrigá-las a recolher um valor majorado de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins na operação seguinte, pois, conforme determina a própria ANEEL, o custo de tais perdas é incorporado ao valor da tarifa, aumentando a receita tributável dessas empresas.
O STJ, em matéria de IPI (ERESP 734403) e ICMS (REsp 1306356), já reconheceu que o furto, inclusive o furto de energia, não pode ensejar a cobrança desses impostos pelo fato de que não há nessa situação propriamente uma operação ou um negócio jurídico oneroso subjacente, com caráter empresarial, que é o elemento essencial da hipótese de incidência desses tributos.
O Carf já tem precedentes a respeito do assunto, especificamente no que tange ao IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. No último caso de que se tem notícia, julgado logo antes da interrupção do funcionamento do órgão por força da pandemia da Covid-19, quando ainda estava em vigor o voto duplo, esse expediente foi utilizado para desempatar o resultado do julgamento em favor do Fisco e para manter a cobrança.
Com o retorno do Tribunal, espera-se que a discussão seja retomada e que prevaleça a legalidade e o bom senso. Inadmissível, a nosso ver, a tributação via IRPJ, CSLL, PIS e Cofins sobre essas perdas não técnicas sofridas pelas distribuidoras de energia.
O ditado popular diz que a curiosidade matou o gato. Mais curioso ainda é quando se constata que os que estão vivos sejam fatos geradores de tributos.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
[1]https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/25/gatos-fazem-brasil-perder-energia-suficiente-para-abastecer-sc-por-um-ano.ghtml