Análise

O coronavírus radiografou o Brasil e o diagnóstico não é nada bom

Nossas autoridades não vão aprender nada com as irresponsabilidades ou ações meramente midiáticas que cometeram?

Crédito: Piqsels
Fomos surpreendidos e ainda não conseguimos, o mundo todo,  estabelecer origem, definir tratamentos, criar vacina para o coronavírus. Mas ele, com a mesma velocidade com que paralisou a vida global conseguiu em poucas semanas denunciar, de forma dramática, nossas fragilidades como País e como sociedade. São seis radiografias impactantes e fundamentais para nosso futuro, depois que a epidemia se for.
 
1. Devemos ao Coronavírus a mais importante afirmação da importância de um sistema único de saúde e, através dele, uma cobertura universal que socorra a todos. Criado há mais de trinta anos, o SUS encontrou nesta pandemia o mais amplo e merecido nível de adesão da sociedade e de compreensão do seu papel.
 
2. Só que o Coronavírus é cruelmente objetivo em  suas denuncias. E mostrou que o SUS tem antigas e enormes fragilidades. A ideia, correta, de um sistema descentralizado leva a uma dispersão de recursos humanos e tecnológicos. Prefeitos e governadores utilizam a autonomia de que dispõem para decisões que não fazem qualquer sentido para a organização de um sistema integrado e eficiente.
Em todo o País, há um festival de falta de rigor técnico e de qualidade de gestão. Como consequência, sobram equipamentos caros adquiridos por capricho de alguém quando não eram necessários. E faltam equipamentos e pessoas para o básico. As equipes de saúde e médicos de família são uma obviedade que grande parte do Brasil resiste em adotar até porque, por diversos interesses, a política prefere a obra física. Serviços simples e bons não tem festa de inauguração. …E ainda são mais baratos que prédios em grande parte construídos sem planejamento e que depois ficam subutilizados. 
O Coronavírus foi claro: nossos recursos em saúde estão mal planejados e mal distribuídos.E a proposta de um sistema que parte de um atendimento básico, disponível para todos; atendimento de média complexidade regionalizado; e de alta complexidade concentrado em centros de alta especialização não passa, salvo exceções, de um discurso que não confere com o mapa hoje conhecido sobre respiradores, leitos, profissionais.
 
3. O Coronavírus foi especialmente duro com nossas autoridades. Revelou a dificuldade constrangedora de muitos de nossos líderes, por conta de uma cultura política arcaica e desumana, em colocar, ao menos diante de tragédias, o serviço aos cidadãos acima de qualquer outra prioridade.
Como ocorreu em Brumadinho, nos constantes deslizamentos e enxurradas, agora no Coronavírus assistimos um festival de comportamentos que, sejamos objetivos, não estão à altura da responsabilidade que o voto popular conferiu. O desrespeito à Ciência, o confronto diário entre quem deveria ao menos temporariamente trabalhar de forma coordenada, a transformação de entrevistas informativas em desfile de vaidades, a prioridade do distante 2022 sobre o angustiante 2020 – tudo isto apareceu de forma mais transparente que nunca.
 
4. O vírus passou ainda o atestado que faltava no crime cometido no Brasil, especialmente nos últimos tempos, contra a pesquisa básica e o apoio à Ciência. Aliás, pior: o Coronavírus mostrou um Brasil, minoritário mas poderoso, que desdenha da Ciência. E nos deixou mundialmente ridicularizados como sociedade com um Presidente na contramão do bom senso e do que é comprovado pela inteligência científica. Tudo para ganhar, de forma provavelmente inútil para fins eleitorais, uma certidão de defensor de empregos.
5. E, graças ao Coronavírus, veio para a primeira página da nossa vida o que teimamos em manter sob o tapete na nossa rotina: a impossibilidade de uma vida saudável ou, mesmo de enfrentamento à doenças, com a desigualdade, a miséria, o esgoto a céu aberto em que vivem a maioria dos brasileiros. 
 
6. Por último, e finalmente algo positivo, o Coronavírus mostrou a solidariedade do brasileiro. Mas também apontou como esta solidariedade ao mesmo tempo que comove pela multiplicação de iniciativas bem intencionadas corre o risco  de desperdiçar recursos pela falta de foco ou de coordenação. E, pior, pela possibilidade de que quando a miséria sair das das manchetes, a mobilização desapareça como já ocorreu após tantas outras tragédias.
 
O verdadeiro Brasil apareceu infelizmente graças ao Coronavírus. Quando ele passar, voltaremos a desconhecer a importância e as fragilidades de um sistema básico de saúde? Nossas autoridades não vão aprender nada com as irresponsabilidades ou ações meramente midiáticas que cometeram? E, em um cenário de muito maior desemprego e muito maior desigualdade, qual tapete encobrirá o tamanho de nossa miséria?
 
Como em tantas outras epidemias, a Ciência acabará encontrando vacinas e, pela força do conhecimento, eliminará esta ameaça. Mas e nós, a sociedade brasileira, quando e como buscaremos vacinas e remédios para os gravíssimos problemas que o Coronavírus mostrou? 
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