Eleições 2022

O caso @jairmearrependi e o anonimato na era da internet

Confundir inautenticidade e fraude com sátira, paródia, humor e crítica é um grave perigo para o debate público

jairmearrependi
Crédito: Unsplash

A semana que passou terminou com agito nas redes sociais. O TSE[1], em decisão monocrática da ministra Maria Cláudia Bucchianeri, determinou o bloqueio de um filtro para fotos de perfil no Twitter (Twibbon) e a identificação da pessoa responsável pela conta @jairmearrependi, criadora do filtro, na mesma plataforma. A decisão foi uma resposta à representação formulada pela campanha de Ciro Gomes, que acusa o tal filtro de ser propaganda política irregular, capaz de enganar os eleitores. Isso porque o filtro parodia a identidade visual da campanha pedetista – a tipografia, as cores, e a mensagem “Prefiro Ciro” – para incentivar voto em Lula, com a mensagem “Prefiro Lula”. A decisão deu razão aos requerentes por entender que a paródia de imagem de campanha caracterizaria “desinformação visual”, capaz de confundir eleitores que poderiam entender que o candidato do PDT, que tem sido pressionado a desistir da corrida presidencial, estaria agora apoiando o candidato do PT.

O tema da confusão de eleitores em matéria de comunicação política é um tópico específico e sensível dentro do campo da liberdade de expressão. A Justiça Eleitoral brasileira é zelosa, e não é de hoje, em agir para que a comunicação política seja aberta sem ser desinformativa. Paródias, sátiras e quaisquer outras estratégias de retórica, de crítica e até de humor que pressupõem exercícios um pouco mais complexos de interpretação sempre desafiam o regramento jurídico da comunicação eleitoral, que seria mais fácil de aplicar se o debate e a propaganda políticas se dessem sem as ambiguidades próprias da comunicação. Mas não é esse o foco deste artigo. Podemos até pressupor, ad argumentandum, que o filtro “Prefiro Lula” é ilegal, embora paródias políticas durante campanhas sejam comuns em todo o mundo. Interessa-me aqui algo mais específico: discutir a ordem do TSE para a identificação da pessoa que administra o perfil @jairmearrependi, expedida contra o Twitter.

Como já tive oportunidade de apontar[2], a restrição constitucional ao anonimato, como cláusula de restrição à liberdade de expressão[3], traz desafios particulares na comunicação online. Se é verdade que há plataformas que trabalham com um padrão mais exigente de identificação ostensiva, como o Facebook e sua política de nomes reais[4], muitas outras, a exemplo do Twitter, permitem que perfis sejam criados com nomes fictícios, com a finalidade de crítica, paródia, homenagem, ou mesmo proteção. No Twitter há perfis “anônimos” que publicam trechos de Guimarães Rosa (@veredasbot) e Mark Twain (@MarkTwain), por exemplo. Até Deus (pronomes: Thee, Thy) tem conta no Twitter, e já fez sua autocrítica: “religião é como o crime organizado, só que mata mais pessoas e dá muito mais dinheiro”.[5]

@jairmearrependi, ou simplesmente “Jairme”, é uma conta de humor e crítica política, como existem aos montes em tantas plataformas (a mesma @ está também no TikTok e no Instagram). Foi criada em 2018, no contexto da última eleição presidencial, já prevendo que muitos eleitores do então candidato Jair Bolsonaro logo se arrependeriam de seu voto. Como outras contas semelhantes, Jairme é um perfil “anônimo” apenas superficialmente, pois para criá-la, sua criadora ou criador tiveram que preencher um cadastro com informações como email, conta de telefone e outros dados que, salvo raríssimas exceções, facilmente permitem que se chegue ao real administrador da página se isso for necessário para investigação e responsabilização por ato ilícito.

A dificuldade de nossa cultura jurídica em lidar com instâncias de manifestações aparentemente “anônimas” na internet vem da longa tradição, no direito brasileiro, daquilo que Artur Péricles Monteiro[6] chama de paradigma da identificação das manifestações de pensamento. Esse paradigma deriva de nosso período republicano, quando a Constituição de 1891 (art. 72, §12) passou a condicionar a liberdade de expressão à restrição do anonimato. Especula-se que a cláusula restritiva tenha sido prevista por empenho de Rui Barbosa, para quem o “anonimato irresponsável” era a “peste negra” do jornalismo brasileiro[7]. O jurista baiano era alvo frequente de colunas apócrifas, os chamados “a pedidos”, de conteúdo difamatório. Ele defendia inclusive que o anonimato na imprensa fosse criminalmente apenado.[8]

O paradigma da identificação foi reforçado em diversas constituições subsequentes. Chegou ao auge com a Lei 5.250/1967, que regulou a expressão de pensamento durante parte de nosso último período ditatorial: o art. 7º daquele diploma obrigava os jornais a estamparem, no cabeçalho, o nome do diretor de redação e o endereço de sua gráfica, e aos programas de rádio e TV, que explicitassem, na abertura e na conclusão, os nomes de seus diretores e produtores. Todos os veículos eram obrigados a manter livros com os pseudônimos e assinaturas dos autores que publicavam. Vale lembrar que esse diploma, expressão máxima, segundo Monteiro, do paradigma da identificação da expressão no direito brasileiro, foi julgado integralmente incompatível com a Constituição de 1988 pelo STF.[9]

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À luz da força dessa tradição, é importante deixar claro, desde logo, que o “anonimato” em si não é ilícito, já que publicações anonimizadas, ou pseudonimizadas, são inclusive previstas e reguladas na legislação autoral brasileira (Lei 9.610/1998). Vale lembrar também que certas formas do que se poderia considerar “anonimato” não são propriamente mecanismos de ocultação de identidade, mas estratégias comunicativas para amplificar o alcance de uma mensagem emitida, que acabam por integrar a própria comunicação. Quem acompanhou os protestos de junho de 2013 seguramente se lembrará do “Batman dos protestos”. O objetivo da fantasia daquele manifestante era atrair olhares para uma figura associada à desesperança com a justiça estatal e a política convencional, pauta de fundo de muitos daqueles atos. (Tal objetivo foi plenamente alcançado ante a ampla repercussão de sua imagem na imprensa à época.) Ou seja, a fantasia era a própria mensagem. “Batman” chegou a ser preso em razão de uma lei fluminense, aprovada em reação aos black blocs, que proibiu o uso de máscaras em protestos.[10] A lei foi contestada no STF[11] e logo o tribunal decidirá se, no país da maior festa à fantasia do planeta, proibir máscaras fere ou não a liberdade de expressão dos cidadãos.

No mundo online, o Marco Civil da Internet, em seu artigo 22, determina que provedores de aplicação (como Twitter, TikTok e Instagram) têm o dever de fornecer, mediante requisição judicial, dados que permitam a identificação de usuários de suas contas quando houver “fundados indícios da ocorrência” de um “ato ilícito” (inc. I). Esses dados servem, logicamente, para permitir que a parte vitimada promova a responsabilização, civil ou criminal, do autor do ato ilícito. Ao mesmo tempo, é certo que a simples eliminação da eventual postagem ilícita, ou bloqueio ao conteúdo ilegal, independe desses dados, pois pode ser efetivado pela própria plataforma de internet que os hospeda.

Com isso em mente, voltemos ao caso Jairme.

Em resposta à representação apresentada pela campanha de Ciro Gomes, o TSE emitiu duas ordens distintas: primeiro, “a suspensão da URL “https://twibbon.com/Support/prefiro-lula#”, para que fosse sustado o uso do filtro paródia tido por desinformativo; segundo, os dados de registro, acesso e IP do perfil @jairmearrependi, para identificação da pessoa responsável pela conta. Há que se notar que as duas ordens são independentes, sendo certo que uma não precisa da outra para ser cumprida. Vale dizer, a identificação de Jairme não é necessária para que o bloqueio ao filtro seja efetivado.

A necessidade da identificação de Jairme pressuporia, portanto, alguma utilidade específica e insubstituível para esses dados pessoais. Mas qual seria ela? Não há sequer suspeita de prática de crime contra a honra do candidato, nem de qualquer ilícito de outra natureza (dano moral, por exemplo) que decorra da simples criação do Twibbon “Prefiro Lula”. É verdade que perfis inautênticos são pragas hodiernas do debate político nas redes e podem ser utilizados de formas ilícitas em campanhas. Mas não há suspeita nenhuma de que @jairmearrependi seja um perfil inautêntico; ao contrário, a conta tem todas as características de comportamento autêntico, estando ativa há vários anos. Tampouco há fundada suspeita, nem mesmo remota, de que se trate de conta criada e sustentada para atuar de forma irregular em campanha política. Confundir inautenticidade e fraude, de um lado, com sátira, paródia, humor e crítica, de outro, é um grave perigo para o debate público desinibido, objetivo com o qual a Justiça Eleitoral sempre se comprometeu.

Assim, para o simples fim de bloquear o filtro, e ausente a perspectiva de responsabilização pessoal da pessoa que o criou, a identificação é excessiva, porque desnecessária. Mais ainda, a intervenção excessiva ordenada pelo TSE pode inclusive tornar o bloqueio inefetivo, e portanto inadequado: a ameaça de identificação da pessoa administradora do perfil deu ensejo à campanha #FreeJairme, gerando enorme engajamento em todas as redes sociais. Daí resultou que a imagem da paródia da logomarca da campanha de Ciro Gomes com os dizeres “Prefiro Lula” ganhou publicidade ampla e alcance ainda maior – um típico caso de efeito Streisand.[12]

Tal onda de solidariedade se explica pelo fato de que essa identificação desnecessária e inadequada exporá a pessoa autora do perfil a risco de violência, ameaças e retaliações. Para prevenir todos esses gravames, o “anonimato” é uma proteção perfeitamente lícita – haja vista os muitos serviços de denúncia anônima existentes no país. Em uma campanha marcada por extrema polarização, que a própria ministra reconheceu em sua decisão, essa cautela com a integridade de cidadãos politicamente engajados é exigível da Justiça Eleitoral.

A decisão do TSE, importante que se diga, andou melhor do que outras tantas que encontramos no Judiciário brasileiro, para as quais a simples condição de uma manifestação online não ser ostensivamente identificada já a tornaria ilícita, e portanto passível de intervenção. A ministra Bucchianeri ao menos partiu da constatação de um ato que reputou ilícito, que não se confundia com a simples identidade humorística do perfil. Ainda assim, considerando que a determinação de identificação de @jairmearrependi é desnecessária para cessar a disponibilização do filtro reputado ilegal, inadequada à luz do próprio objetivo de restringir sua oferta, e perigosa para a pessoa administradora do perfil, melhor será se a ordem de entrega de dados pessoais for logo revertida pelo TSE.


[1] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Representação 0601143-97.2022.6.00.0000, PDT Nacional v. Augusto de Arruda Botelho Neto e outros, j. 23 set. 2022.

[2] QUEIROZ,  Rafael  Mafei  Rabelo.  Liberdade  de  expressão  na  internet:  a  concepção  restrita  de  anonimato  e  a  opção  pela  intervenção de menor intensidade. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 1, n. 1, p. 241-266, jan./jun. 2021. Disponível em: https://suprema.stf.jus.br/index.php/suprema/article/view/24/21. Acesso em 26 set. 2022.

[3] Constituição de 1988, art. 5º, inc. IV: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (destaques meus).

[4] FACEBOOK, “Nomes permitidos no Facebook”. Disponível em: https://www.facebook.com/help/112146705538576. Acesso em 27 set. 2022.

[5] GOD (@TheTweetOfGod). 26 set. 2022. Disponível em: https://twitter.com/TheTweetOfGod/status/1574524517413621760?s=20&t=e0MLSucJDdN7rDe1AtvoCA. Acesso em: 27 set. 2022.

[6] MONTEIRO,  Artur  Péricles  Lima.  Online  anonymity  in  Brazil:  identification  and  the  dignity  in  wearing  a  mask.  Dissertação  (Mestrado  em  Direito  do  Estado)  –  Faculdade  de  Direito,  Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

[7] BARBOSA, Rui. Nova corporação. In: Obras completas, vol. XX (1893), Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949,  p. 226.

[8] Id., “Liberdade de imprensa”. In: Obras completas, vol. XX (1893), Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949,  p. 276.

[9] STF, ADPF 130, rel. min. Ayres Britto, j. 30 abr. 2009.

[10] RIO DE JANEIRO. Lei nº 6528 de 11 de setembro de 2013.

[11] STF, ARE 905149, rel. min. Luís Roberto Barroso.

[12]Efeito Streisand é o fenômeno em que, na tentativa de censurar, apagar ou remover alguma informação, se obtém o efeito reverso, a informação ganha ainda mais publicidade e repercussão” (OLIVEIRA, Caio César. Eliminação, desindexação e esquecimento na internet. São Paulo: RT, 2021, p. 162).

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