Pandemia

O caminho (regulatório) da vacina da Covid-19

Um novo caso para as encomendas tecnológicas

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A notícia mais aguardada nos últimos meses é a de aprovação de uma vacina segura para a Covid-19. A emergência em saúde pública perdura no Brasil desde fevereiro e tem imposto desafios regulatórios para a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). De fevereiro até aqui, a Agência flexibilizou procedimentos de registro, editou normas específicas para a situação e priorizou o trâmite de análise de pedidos relacionados ao enfrentamento da pandemia.

Nesse caminho, a “vacina de Oxford”, que é desenvolvida pela Universidade de Oxford em conjunto com a farmacêutica AstraZeneca é uma das promissoras. O desenvolvimento de um novo medicamento – onde entram as vacinas – é um processo administrativo sanitário regulado e fiscalizado pela Anvisaa. É a Agência que vai aprovar a condução de estudos, analisar documentos e outras atividades necessárias.

Para que o medicamento seja estudado e tenha validada a sua relação de eficácia e segurança, é necessário realizar ensaios clínicos, que são organizados em três fases. A fase I e II trabalham com grupos menores de indivíduos, sendo a I focada em adultos saudáveis e a II com foco na indivíduos representativos da população-alvo da vacina.

Objetivo maior é avaliar a segurança do produto. A fase crítica é a III, cujo foco é a eficácia: há ampliação do número de indivíduos, a nível de milhares de pessoas, para provar que a vacina é capaz de proteger os indivíduos com o mínimo possível de reações adversas.

Nos ensaios clínicos, a vacina de Oxford está na fase III na Anvisa. Os ensaios chegaram a ser suspensos por conta de uma reação adversa identificada, mas foram retomados em 12 de setembro. Logo após a retomada, o Governo Brasileiro e o Governo Britânico assinaram um acordo de transferência de tecnologia e produção de 100 milhões de doses da vacina, por meio de um instrumento contratual denominado “Encomenda Tecnológica” (ETEC). A ETEC foi realizada entre a Fiocruz e a farmacêutica AstraZeneca.

As ETECs foram inspiradas em experiências internacionais bem-sucedidas nos EUA e no Reino Unido. No Brasil, a ETEC foi inicialmente prevista na Lei de Inovação (Lei 10.973/2004, art. 20), ainda que sem essa nomenclatura. Com a reforma promovida em 2016 pela Lei 13.243, as ETECs se tornaram uma modalidade específica de contratação, prevista expressamente no §2º-A do art. 19, como um dos instrumentos de estímulo à inovação nas empresas. Sua regulamentação veio apenas com o Decreto nº 9.283/2018.

Quanto ao conceito, é um mecanismo de compra pública focado para atender a uma necessidade da Administração Pública não atendida pelas opções disponíveis no mercado. O foco é, portanto, em atividades de pesquisa, que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto. A contratação é realizada através de um esforço tecnológico desenvolvido ou em fase de desenvolvimento de uma Instituição Científica e Tecnológica (ICT) – no caso da vacina de Oxford, a Fiocruz.

A hipótese se enquadra em um dos casos de dispensa de licitação, do rol taxativo do art. 24 da Lei nº 8.666/1993. A dispensa não exime o administrador da motivação quanto à contratação. A ETEC deve estar atrelada a situações de incerteza, em que a solução de determinado problema envolve risco para o Estado, que não tem, sozinho, capacidade técnica de enfrentamento.

A Administração identifica potenciais interessados que apresentam maior chance de sucesso para contratação. Há possibilidade de contratação de múltiplos atores privados. Como estamos no campo da inovação e de um desenvolvimento em curso, desvios de percurso podem ocorrer. A modelagem da ETEC também considera essa possibilidade, não obstante tenha a maior probabilidade de alcance do resultado pretendido como vetor para escolha do contratado.

No caso do enfrentamento da Covid-19, a incerteza e o risco tecnológico são evidentes, a nível nacional e internacional. A escolha da vacina de Oxford e da AstraZeneca, do ponto de vista regulatório, é coerente pelo grau mais avançado de desenvolvimento dos ensaios clínicos, em fase III.

Já a análise da validade da escolha pela modelagem da ETEC versus uma simples compra futura da vacina de Oxford depende de maiores detalhes da contratação, em especial, do perfil das atividades a serem ainda realizadas pela AstraZeneca e do objetivo da Administração. A escolha do modelo irá depender da análise (i) quanto à necessidade de condução de pesquisa, desenvolvimento e inovação no âmbito nacional; ou se, (ii) o que ser espera é o mero fornecimento de um produto já desenvolvido.

As ETECs se constroem na lógica dos esforços de pesquisa e de desenvolvimento do produto e não apenas da entrega final. É essencial, na condução dos estudos, que sejam documentados e mapeados os resultados obtidos, a metodologia utilizada e as dificuldades enfrentadas, de forma transparente.

A contratação no caso da ETEC funciona sob a lógica de um compartilhamento de riscos, em que Estado e parceiro assumem responsabilidades diante do problema de solução incerta. Não haverá necessariamente má-utilização de recursos públicos se a vacina não for bem-sucedida, mas é fundamental que a motivação acerca do resultado seja pública e acessível, conforme prega o art. 37, caput, da Constituição.

O Tribunal de Contas da União (TCU) publicou cartilhas para utilização das ETECs este ano. O papel ativo do TCU no campo da inovação é importante por experiências anteriores de contratações, atreladas à inovação, terem apresentado dificuldades em relação às regras para sua utilização – como foi o caso das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP). Para prevenir alguns riscos mapeados na jurisprudência da Corte de Contas, as cartilhas cumprem papel importante como soft law (sem valor normativo direto, mas de caráter orientativo).

Farmacêuticas, Governos e Universidades ao redor do mundo estão intensamente investindo em pesquisa e desenvolvimento de vacinas para a Covid-19. O cenário da pandemia destacou a importância da existência de instrumentos de incentivo à inovação no país, que fogem da lógica tradicional da licitação e da própria dispensa simples. A Covid-19 representará um importante caso para testar o modelo das ETECs, com lições a serem aprendidas para os próximos desafios (e com a torcida para que o resultado esperado seja concretizado).

 


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