Pandemia

O Cade e o vírus

Como fica o Conselho Administrativo de Defesa Econômica no meio dessa crise?

Cade
Divulgação, Cade

Não é preciso descrever a crise causada pelo coronavírus, não só na saúde como na economia e no funcionamento dos órgãos governamentais. A recomendação é evitar contatos físicos, sobretudo aglomerações, que possam facilitar a difusão do vírus. Muitos tribunais simplesmente pararam, com suspensão de prazos, mantendo apenas os serviços de urgência.

E como fica o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no meio disso? A publicação MLex divulgou que o Tribunal do Cade continuará a funcionar (quase) normalmente, mantendo suas sessões de julgamentos até ordem superior em contrário. Todavia, somente poderão comparecer os advogados diretamente interessados nos processos em julgamento. Também temos visto notícias de que as reuniões presenciais de advogados com Conselheiros ou outras autoridades agora passam a ocorrer por videoconferência.

O que se quer analisar aqui não é o juízo de conveniência e oportunidade que rege tais medidas – tomadas com a vontade e a determinação de bem conduzir os temas concorrenciais – mas sim a própria legalidade delas face ao direito de defesa das partes envolvidas. Não há, por enquanto, notícias de reclamações quanto à tramitação dos processos. As conferências, por telefone ou vídeo, têm obtido respostas satisfatórias e os processos estão andando. A questão é outra.

Com efeito, nos casos que correm perante o Cade – tanto atos de concentração quanto processos administrativos – é comum haver dados confidenciais, de tal sorte que frequentemente vemos uma mesma petição com duas versões, uma pública e outra confidencial, esta de acesso restrito. Não é possível para uma parte, por meio de seu advogado – e muitas vezes de seu economista – tratar de assuntos confidenciais numa conferência que pode ser gravada ou eventualmente até mesmo captada ilegalmente.

Neste caso, se houver a determinação do Cade de não aceitar reunião presencial, estar-se-á diante de situação de cerceamento do direito de defesa pois parte dos argumentos não poderá ser tratada.

Mas as reuniões presenciais também podem ser causadoras de problemas, desta vez não de ilegalidade mas tratamento indevido a partes e advogados. Muitos saem de outras cidades para ir a Brasília, onde fica o Cade, tendo que passar por aeroportos, aviões, elevadores, táxis, cafés, tudo isso exercendo o contato que as próprias autoridades de saúde recomendam evitar. Estamos desta vez dentro do juízo de conveniência e oportunidade.

No mesmo tema, os advogados, para cumprir os prazos que lhes são impostos pelo Cade, têm que passar por reuniões diversas, contatos com partes, eventuais peritos e possíveis testemunhas, o que os expõem, novamente, ao vírus em atitudes que as próprias autoridades de saúde recomendam evitar. Mais uma vez, o juízo de conveniência e oportunidade está presente.

Outro ponto interessante é a proibição da presença nas sessões de julgamento de outros advogados que não os representantes das partes envolvidas. É comum que advogados estranhos aos casos em julgamento compareçam às sessões para acompanhar o desenvolvimento de determinados temas que interessam aos seus clientes ou mesmo para sua própria atualização. Dir-se-á que há transmissão pela internet. Mas os que militam na área sabem que a internet tem falhas e que uma coisa é um frio relato oficial e outra é a constatação no momento dos acontecimentos.

A epidemia, todos sabem, é passageira, embora não se saiba ainda o seu tempo certo. Ainda não se pode dizer qual será o momento de inflexão da curva e quais os danos que até lá ocorrerão. Alegar a necessidade de cumprimento de metas ou a velocidade que se faz importante é, face à crise que se alastra no país, irrelevante em confrontação com o bem maior, que é a proteção das vidas e da saúde dos administrados, para não falar dos próprios funcionários do Cade.

Não existe impedimento legal para a medida proposta pois o artigo 10, IV, da Lei 12.529/2011 estabelece que “Compete ao Presidente do Tribunal (…) convocar as sessões e determinar a organização da respectiva pauta”. A possibilidade de suspensão dos prazos não está contemplada nos poderes do Plenário ou do Presidente mas aqui existe a discricionariedade que se manifesta no juízo de conveniência e oportunidade.

Os processos voltarão a ser céleres – ou voltarão a ter a celeridade que o Cade conseguir imprimir – logo após o fim da epidemia; no caso das reuniões por videoconferência, entende-se que elas só poderão ocorrer quando não houver temas confidenciais a tratar; no caso das sessões, entende-se que não há porque mantê-las com as restrições anunciadas face aos danos que elas podem causar.

Vale lembrar que o coronavírus já gera efeitos processuais. No dia 18 último o Cade abriu investigação para apurar se hospitais, laboratórios, farmácias e indústrias do setor médico e farmacêutico aumentaram preços de seus produtos de forma abusiva após o avanço da epidemia. Pode-se cogitar, por exemplo, que a crise sanitária implique fechamento voluntário de empresas, com evidentes desequilíbrios concorrenciais. Ou que empresas mencionadas na recente investigação, para maximizar a produção relacionada à pandemia, proponham parcerias ou entabulem concentrações.

Em todos esses casos, a atuação do Cade será necessária (na medida em que as empresas superem os limites de faturamento previstos em lei) e inafastável, sem dúvida. O Cade não pode parar, especialmente nesta hora. Mas deve pautar sua ação em defesa da concorrência num ambiente livre de vírus, inclusive os vírus de ilegalidades e limitações ao direito de defesa.

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