O tão aguardado regime de autorização para o transporte ferroviário veio com a MP 1.065/2021, de 30 de agosto de 2021.
Uma das principais inovações da referida MP consiste na possibilidade de construção de novas ferrovias por meio de autorização, sem a necessidade de prévia licitação e submissão ao regime de concessão. Caso a ferrovia seja construída em área privada, sem necessidade de desapropriação, demanda apenas um requerimento de autorização a ser analisado pelo MINFRA.
A possibilidade de o serviço de transporte ferroviário ser prestado também por meio do regime de autorização estava sendo aguardada pelos operadores econômicos há vários anos. No âmbito do Congresso Nacional, tramita o PLS 261/2018, que também institui um novo marco regulatório para o transporte ferroviário.
A prestação de serviço público no regime de autorização não é nenhuma novidade, apesar de ainda gerar controvérsias. Os exemplos práticos não deixam dúvidas quanto à sua possiblidade. O serviço de telefonia móvel é prestado no regime de autorização há quase duas décadas. A conversão do regime de concessão para o de autorização ocorreu sem que houvesse qualquer impacto para os usuários.
A aceitação do novo modelo jurídico para o transporte ferroviário é bastante evidente ao se verificarem os requerimentos que já foram apresentados ao Ministério da Infraestrutura. O interesse da iniciativa privada surpreendeu o Governo, que estimava conseguir R$ 30 bilhões em investimentos no setor com ferrovias autorizadas. Os projetos já apresentados representam uma estimativa de R$ 80,5 bilhões em investimentos.
No sítio eletrônico do Pro Trilhos – Programa de Autorizações Ferroviárias, até o dia 24/9, indicava-se que já haviam sido apresentados catorze requerimentos. A maioria desses requerimentos foi protocolada na mesma semana de publicação da MP 1.065/2021. Note-se que o requerimento deve ser instruído com estudo técnico da ferrovia contendo, entre outros elementos, a indicação do traçado, as especificações técnicas da operação e o cronograma estimado para implantação. Isso revela a existência de vários projetos de ferrovias em fase adiantada, aguardando apenas o novo marco legal para que pudessem ser implementados.
Em 17 de setembro houve a publicação do extrato de doze desses requerimentos. Como confirma o fluxo do processo de análise, essa publicação ocorre após a verificação da conformidade da documentação apresentada. Ou seja, isso evidencia que a análise dos requerimentos já avançou algumas etapas. Nas fases seguintes será verificada a convergência com a política pública do setor ferroviário e a compatibilidade locacional do empreendimento. Após isso, já há a deliberação pelo MINFRA sobre o requerimento e a assinatura do Contrato de Autorização.
Ou seja, em termos práticos, é bastante provável que seja finalizada a análise desses requerimentos durante o prazo de vigência da MP 1.065/2021.
Em se tratando de uma MP, pode-se questionar se haveria segurança jurídica para a aprovação desses requerimentos nesse período, com a possibilidade de não ocorrer a conversão em lei.
A resposta é afirmativa.
A MP tem prazo de validade de sessenta dias, prorrogável por igual período e com a suspensão do prazo durante os períodos de recesso do Congresso Nacional. Após esse prazo, caso não tenha sido votada e aprovada no Congresso Nacional, perderá eficácia, desde a edição.
Porém, enquanto vigente, a MP tem força de lei. É o que consta do art. 62, caput, da CF/88. O §3º do art. 62 da CF/88 prevê a disciplina, por decreto legislativo, das relações jurídicas dela decorrentes no caso de perda da eficácia. Em complemento, o §11º do mesmo artigo dispõe que, caso não seja editado decreto legislativo em até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia da MP, “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”.
É aqui que se coloca a questão da eficácia dos atos praticados durante a vigência da MP, na hipótese de não vir a ser convertida em lei no prazo determinado.
A questão já foi objeto de profunda análise pelo STF, por ocasião do julgamento da ADPF 216/DF.
A ação tinha por objeto os efeitos produzidos pela MP 320/2006. A MP previu que a movimentação e a armazenagem de mercadorias importadas ou despachadas para exportação poderiam ser desenvolvidas em estabelecimento denominado Centro Logístico e Industrial Aduaneiro – CLIA. A obtenção dessa licença, de acordo com a MP, tinha a natureza de autorização e não dependia de licitação, diferentemente do regime aplicável aos portos secos.
A MP foi rejeitada pelo Senado e não houve a edição do decreto legislativo previsto no art. 62, §3º, da CF/88. Questionaram-se na ADPF decisões judiciais que concederam licenças para exploração de CLIA a requerentes cujo pedido não havia sido examinado pela Receita Federal durante a vigência da MP.
Enquanto vigente a MP, foram registrados quarenta e cinco processos administrativos, sendo trinta e dois pedidos de licença para exploração de CLIA e treze pedidos de transferência do regime de porto seco para o de exploração de CLIA. Nesse período, foi finalizada a análise de cinco processos, de conversão de regime.
Note-se que a ADPF não questionava a validade dos pedidos analisados e deferidos durante a vigência da MP. Não havia dúvidas quanto à validade desses atos.
A controvérsia estava relacionada às decisões judiciais que determinaram à Receita Federal a conclusão do exame dos pedidos de licença para exploração de CLIA, que não haviam sido examinados durante a vigência da MP. A maioria do Pleno do STF entendeu que, nesses casos, não havia relação jurídica constituída que justificasse a incidência do §11º do art. 62 da CF/88. A tutela da segurança jurídica incidiria a partir da existência de decisão na esfera administrativa.
Nesse julgamento, restaram vencidos quatro Ministros, que reconheciam que a apresentação do requerimento já conferia o direito ao enquadramento no regime da MP, ainda que a análise não tivesse sido concluída durante a sua vigência. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, mencionou que “a maior ou menor agilidade da Receita Federal na apreciação do requerimento administrativo não pode constituir o critério para distinguir entre quem faz ou quem não faz jus à outorga da licença”.
Em 2013, foi editada a MP 612, prevendo novamente a exploração de CLIA no regime de autorização. Essa MP também não foi convertida em lei mas, durante a sua vigência, a Receita Federal deferiu vários outros pedidos de licença para exploração de CLIA, que estão em funcionamento.
Além da possibilidade de efetiva aprovação de autorizações ferroviárias durante a sua vigência, a MP 1.065/2021 trouxe segurança jurídica, por exemplo, para projetos dos Estados-membros.
O art. 4º, §1º da MP conferiu aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a outorga do serviço de transporte em ferrovias alimentadoras, que não integram o Subsistema Ferroviário Federal. Com base nessa autorização da MP e na legislação estadual já existente, a Rumo celebrou, em 20.09.2021, contrato com o Governo do Mato Grosso para construir uma nova ferrovia, no regime de autorização, com investimentos estimados entre R$9 bilhões e R$11 bilhões.
Os exemplos acima mencionados procuram esclarecer que, independentemente do desfecho das discussões da MP 1.065/2021 e do PLS 261/2018 no Congresso Nacional, com a vigência da MP será possível implementar projetos muito aguardados pela iniciativa privada, com a devida segurança jurídica.