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O que esperar da decisão do STF sobre o novo Marco do Saneamento?

Assim como em outras oportunidades, a decisão pode ser por não decidir, ao menos não agora

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Crédito: Pixabay

Não é de hoje que o STF é o palco escolhido para sediar contendas relacionadas aos mais diversos temas, digamos, políticos. Decisões tomadas pelo Executivo são historicamente submetidas ao julgo dos 11 ministros.

Com o saneamento não é diferente. Também, pudera! Para gostar de saneamento é preciso entrar em uma complexa “zona de desconforto”. Esse setor é um prato cheio para quem estuda na prática o direito constitucional. Competências e autonomias dos entes, regiões metropolitanas e demais derivações, serviços prestados em rede e que envolvem recursos naturais escassos… tudo isso traz nós para esse emaranhado de fios – ou canos! – que se conectam.

Parece fichinha discutir a judicialização da política e a competência do Supremo em um universo marcado por discussões históricas sobre as competências dos próprios entes federativos. Da mesma forma, quase “passa desapercebido” o fato de que o conteúdo da palavra (ou princípio?) “eficiência” seja definido pelo tribunal, ao invés de ser matéria do Executivo.

E é precisamente essa a discussão que se colocou a partir da publicação da Lei 14.026/20, o chamado novo Marco do Saneamento Básico: quais comportamentos induzir para gerar uma maior eficiência para a prestação dos serviços de água e esgoto?

Os dados todos estão aí para comprovar que, de fato, alguma coisa precisa ser feita – tanto para viabilizar o acesso a esses serviços por todos os cidadãos, quanto para que esses cidadãos possam ter qualidade no serviço prestado. A escolha do Executivo (e do Legislativo, afinal, é uma nova lei) parece apontar para alguns caminhos a fim de viabilizar essa maior eficiência.

Em linhas gerais, a decisão foi mexer em arranjos institucionais públicos (para somar esforços intrafederativos) e adotar modelos que viabilizem de forma prioritária a prestação dos serviços por meio de concessões (a partir de processos competitivos). E mais um detalhe: tentativa de fortalecimento da regulação.

A receita não é lá tão nova. Guardadas as particularidades, um caminho similar foi tentado no setor elétrico nos idos de 1990. E mais de 20 anos depois, é possível avaliar se a decisão tomada foi acertada e transformar experiências em aprendizado.

Quase um ano e meio depois de tomada a decisão de ter um novo marco para o saneamento e com efeitos práticos já experimentados, agora, em mais uma oportunidade – e essa já é a quarta desde a publicação do texto da lei – o STF é chamado a se debruçar sobre sua constitucionalidade. Desta vez, a partir das ADIs 6492, 6536, 6583 e 6882.

Quais os argumentos agora? Em uma tentativa singela (e possivelmente insuficiente) de sistematização, são basicamente os seguintes elementos que foram trazidos pelos proponentes das ADIs:

  1. dificuldade de explorar um conjunto de municípios sem que haja cobrança de tarifas excessivas para compensar investimentos necessários em cidades com menor infraestrutura, o que atentaria contra o “princípio da universalidade do serviço público e da modicidade tarifária”;
  2. sugestão para que o valor das tarifas tenham variações proporcionais ao salário mínimo;
  3. violação ao princípio da segurança jurídica e apropriação indébita, por empresas privadas, de bens das companhias estatais;
  4. a temática tratada no novo Marco do Saneamento ser considerada como de interesse local, de modo que apenas os municípios poderiam dispor sobre saneamento;
  5. o papel da Agência Nacional de Águas (e outras entidades em âmbito federal) estaria inconforme com o regime constitucional de competências, uma vez que à ANA estaria designada a prerrogativa de padronizar normas de referência, o que violaria a autonomia municipal;
  6. o dimensionamento das novas funções da ANA não foram acompanhados dos cuidados de ordem fiscal (criação de novas despesas deve ser acompanhada de estimativa de impacto orçamentário);
  7. compulsoriedade da agregação de municípios e a falta de cuidado para que competências metropolitanas não sobrepujem decisões executivas ou legislativas municipais a respeito da prestação dos serviços de saneamento;
  8. a celebração de contratos de programa não poderia ser obstada pela legislação ordinária, dado que esta seria uma matéria tratada e permitida constitucionalmente;
  9. os regimes de delegação de serviços por meio de concessões, permissões e autorizações, não são, por natureza, excludentes da possibilidade de celebração de outros arranjos, conforme decisão que cabe, tão somente, ao titular do serviço, que não deve ser tolhido por lei federal infraconstitucional;
  10. o cuidado para que as novas medidas não acirrem desigualdades.

Não necessariamente o STF vai decidir todos esses temas de uma vez. A dinâmica do julgamento e o conteúdo dos questionamentos possivelmente demandaria análises aprofundadas sobre cada matéria, se os ministros entendessem que caberia a eles definir os rumos dessa política pública.

Assim como em outras oportunidades, a decisão pode ser por não decidir – pelo menos não agora. Ou então, como já assinalou o relator, ministro Luiz Fux, e também em consonância com o posicionamento da Corte nas outras tentativas (frustradas) de derrubar o novo marco, possivelmente a decisão para o momento deve ser pela manutenção da Lei 14.026/20.

Dos dez pontos sumarizados acima, quatro chamam mais atenção: autonomia dos titulares dos serviços; modicidade tarifária e subsídio cruzado; regulação; e concessões ou contratos de programa para a prestação dos serviços.

A tônica do primeiro está relacionada ao conceito de “interesse local”, assim trazido pela Constituição e que tem sido o argumento para justificar a titularidade dos serviços pelos municípios. Sobre esse tema, o Supremo não tem, em julgamentos passados, trazido contornos muito precisos sobre o que deve ser considerado interesse local. Seria inédito o STF se posicionar mais incisivamente sobre isso[1].

Mas nas matérias relacionadas a aglomerados de municípios, a decisão paradigmática (o leading case do julgamento da ADI 1842 – região metropolitana do Rio de Janeiro) inaugura o conceito de “interesse comum”. Na teoria, a ideia parece boa; mas na prática, a operacionalização do conceito tem trazido inúmeras discussões[2].

O conceito de interesse comum envolve uma lógica em que estados e municípios tomem decisões conjuntas sobre projetos de saneamento. Esse conceito foi até desdobrado e aprofundado em recente decisão em sede das ADI 6573 e 6911 e da ADPF 863 (regiões metropolitanas no estado de Alagoas).

Já existe, portanto, uma dita solução para agrupamentos de municípios (e estado) delineada pelo STF em julgamentos passados. Nesse sentido, dificilmente um argumento que questione a formação de blocos, unidades ou quaisquer outras formas de organização e governança de municípios possa ser isoladamente suficiente para fazer com que o novo Marco do Saneamento seja reputado como inconstitucional.

Para os demais temas sumarizados, ainda não há uma jurisprudência uníssona e sedimentada pelo Supremo[3].

Em um cenário em que muitos serviços públicos podem ser remunerados por meio de tarifas (como energia, gás, telecomunicações e outros), não parece ser trivial a desconstituição dessa estrutura por meio de uma decisão do STF. Aliás, vale lembrar, os serviços de saneamento já são, da forma como atualmente prestados, sujeitos a um regime remunerado por meio de tarifas, mesmo quando  por empresas ou autarquias estatais.

Nesse contexto, não há muito o que mudar. As tarifas remunerarão os investimentos e custos relacionados à prestação dos serviços. E deverão ser suficientes para isso.

O argumento de que a entrada da iniciativa privada gera um aumento ou criação de novas tarifas para o setor de saneamento não merece prosperar, já que as empresas estatais cobram tarifas e, nessas tarifas, há embutido, também, a ideia de retorno de capital ou lucro.

O que nos leva para outro tema importante: a regulação e, também, o questionado papel que será desempenhado pela ANA. O novo marco não alterou a disposição que prevê que os municípios serão os responsáveis por escolher e indicar como (e por qual entidade) será feita a regulação de seus contratos. À ANA caberá a missão de uniformizar boas práticas de regulação, sem substituir a regulação econômica que deve ser feita pelas entidades locais escolhidas pelos titulares dos serviços.

Essas entidades, sim, deverão atuar para fiscalizar e regular os contratos celebrados, assim como já funciona para os contratos de programa. O que deve mudar, possivelmente, será o nível de profissionalização dessas agências para, justamente, consolidar mecanismos que foquem em exigir do prestador – público ou privado – qualidade do serviço, investimentos condizentes com a realidade e remuneração adequada e justa[4].

O mais polêmico dos temas é o fato de o marco ter acabado com a possibilidade de empresas estatais poderem assumir a prestação dos serviços de saneamento sem participar de licitações. Esse foi um dos questionamentos mais veementemente apresentado nas ADIs comentadas.

A verdade é que, de fato, a Constituição permite a adoção de contrato de programa para prestação de serviços públicos em regime de gestão associada. Mas esse não foi um modelo largamente adotado em outros setores; o que contrasta com a intensidade do uso desse instituto no setor de saneamento.

Aqui, um ponto que deve ser considerado pelo STF – e já invocado em outras decisões da Corte – diz respeito à participação do Estado na economia. Claro que a prestação de serviços por meio de estatais é bem-vinda e até desejada. Mas essa participação somente se justifica quando o mercado ainda não desenvolveu concorrência, amadurecimento e competição suficiente. Talvez há 20 anos essa fosse a realidade do setor de saneamento.

Felizmente, ao longo dos últimos anos, a iniciativa privada foi despertando o interesse para correr os riscos associados à prestação dos serviços de água e esgoto e, de forma bastante eloquente, foi se dispondo a realizar investimentos, participar de concessões e de toda a cadeia de fornecimento e prestação de tais serviços. O mercado amadureceu. E esse é um ponto que, certamente, não passa desapercebido pelos ministros do Supremo.

A própria regulamentação do novo Marco do Saneamento (Decreto Federal 10.588/20) já traz algumas respostas sobre a decisão do Estado (executiva, como deve ser) de caminhar para um processo de revisitação ou extinção das estatais que não tenham saúde financeira para seguir prestando serviços para os quais foram criadas. E é natural que a decisão seja essa, já que, ao invés de fomentar um mercado potencial em desenvolvimento, tais estatais acabam por consumir caixa e recursos orçamentários por, justamente, não serem competitivas frente às demais empresas (privadas) que foram surgindo, se desenvolvendo e crescendo.

Para as estatais que alcançam os patamares de sustentabilidade definidos pelo Executivo em sede de decreto, caberá o ambiente de livre competição com o mercado. E o artigo 173 da Constituição pode ser respeitado, e o STF – seguindo outras orientações já exaradas – deve manter essa pedra de toque do princípio da livre iniciativa.


[1] Nesse sentido, vale a pena consultar monografia de João Pedro Rodrigues Oliveira para a Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público: Interesse Local no STF, sob orientação da Professora Dra. Giovanna Micali.

[2] Algumas das discussões relacionadas às deliberações que são realizadas em sede de regiões metropolitanas e arranjos de governança já foram temas tratados na Coluna Infra do Jota.

[3] A despeito de haver uma discussão sobre o STF poder ou não desconstituir decisão já tomada pelos demais Poderes, a verdade é que no Brasil esses temas acabam tangenciando ditames e princípios constitucionais (assim como outros inúmeros temas que são tratados nos quase 300 artigos da nossa Constituição Federal).

[4] Ainda que esse seja um questionamento presente nas novas ADIs submetidas à apreciação do STF, a definição, regulação e limitação de “lucro” não parece ser matéria que será definida pelo Supremo. Nesse ponto, parece haver um contexto institucional entre os Poderes que reconhece nas agências reguladoras a competência de, nas revisões tarifárias, incorporar a lógica macroeconômica necessária para estabelecer as condições adequadas de remuneração pelos serviços oferecidos à população.

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