Opinião

Nem ‘carta branca’, nem ‘ditadura judicial’

Alexandre de Moraes não é salvador da pátria ou ditador judicial. Compreender seu papel na crise dos últimos anos exige analisar suas decisões judiciais uma a uma, conforme sua argumentação e as circunstâncias

Ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE . Credito: Antônio Augusto/Secom/TSE

Alexandre de Moraes não é candidato a nada. Não voltaremos à campanha eleitoral para votar nele como salvador ou vilão. As eleições acabaram, com Lula batendo Bolsonaro por estreita margem. A disputa presidencial termina com uma decisão única: um vence, outro perde, sem meio termo. Mas o debate sobre Moraes, não. O maniqueísmo de uma escolha plebiscitária em torno de sua atuação distorce nossa percepção e impede a avaliação de suas decisões enquanto exercícios de poder judicial.

A escolha que nos apresentam é reducionista: ou você está com Moraes, ou está contra ele. De um lado, apoiá-lo seria aceitar uma “ditadura judicial”; criticá-lo, por sua vez, seria ficar inerte diante dos ataques de quem quer impor uma ditadura de verdade no país. No pragmatismo extremo implícito nas duas posições, o direito é vítima colateral. Se Moraes é salvador, não interessa que algumas de suas decisões possam estar erradas (e que possa continuar errando no futuro: a obra do salvador é aberta, está sempre em construção). Se é ditador, não interessa que haja amparo legal para diversas medidas restritivas contra pessoas envolvidas na organização e execução de crimes graves.

As duas posições não são equivalentes. Hoje, “ditadura judicial” no Brasil é apenas uma metáfora. O Supremo não tem condições ou disposição de impô-la. Ninguém aceitaria, a começar por Congresso e Executivo. A metáfora é obra de retórica política, para mobilizar indignação contra percebidos abusos judiciais. Não é descrição de estado de coisas real. Por outro lado, o País de fato sofreu uma tentativa coordenada de golpe de estado, com parcela minoritária da população pedindo aos militares que tomassem o poder. O dia 8 de janeiro de 2023 está aí para provar.

A verdadeira ameaça à democracia hoje no Brasil é a mobilização golpista da extrema direita autoritária, estimulada pelo ex-presidente Bolsonaro e muitos de seus aliados. Não temos dúvida. Isso não deveria encerrar a conversa sobre a atuação do juiz Moraes. O debate não é apenas sobre os fins ou consequências últimas de suas decisões (“democracia ou ditadura, qual você prefere?”). Precisa ser sobre os meios que emprega.

Ditador ou salvador, as duas avaliações concedem que Moraes está de alguma forma criando suas próprias regras, ainda que para fins diferentes. Como comunidade, deveríamos recusar essa formulação do problema. Moraes é um juiz do STF e precisa ser avaliado como tal. Suas decisões precisam ser analisadas no detalhe, nos procedimentos que adotam e nas justificativas que as acompanham, com base no direito vigente.

“Ditador ou salvador, as duas avaliações concedem que Moraes está de alguma forma criando suas próprias regras, ainda que para fins diferentes”

Se razões contextuais exigem interpretações ou aplicações mais expansivas de certas regras ou competências, é de Moraes o ônus de mostrar isso nas decisões. Seus radicais defensores correm o risco de dar ao ministro um poder que ele próprio nunca pediu: o de escolher quais regras vai ou não utilizar – se e quando quiser utilizá-las. Isso sequer seria aceitar que certos fins legitimam certos meios, mas afirmar algo pior: que, se concordamos com os fins, os meios não importam. Não é necessário discuti-los.

Nenhuma versão de “democracia militante” chegaria tão longe.O conceito se refere a um dilema para um regime democrático: se o direito deveria ou não criar instrumentos para impedir ou restringir o uso dos próprios mecanismos da democracia (como voto, partidos e liberdade de expressão) para atacá-la. É um debate sobre que regras deveríamos ter para defender a democracia. Não sobre se juízes podem ignorar regras e fazer o que quiserem, como quiserem, a pretexto de salvá-la.

Se fosse assim, aliás, seria difícil justificar porque o Supremo e Moraes (corretamente) não tomaram uma série de outras providências mais radicais para defender a democracia. Por que, nas muitas vezes em que Jair Bolsonaro estimulou ataques às instituições e ao processo eleitoral, o STF não o suspendeu cautelarmente de seu cargo? A resposta jurídica para essa pergunta é evidente. O STF não tem competência para isso. Mas, se abrimos mão do direito para que juízes salvem a democracia, é mais difícil saber onde traçar o ponto de parada. Por que alguns meios podem ser usados, mas outros não?

O foco exclusivo no fim da “defesa da democracia” encontra outros problemas. Como defender que cada uma das coisas que Moraes e o Supremo fizeram e farão nesse processo é imprescindível para “salvar a democracia”? Os processos e investigações ainda estão em curso. Há muito que ainda não sabemos. Mas, com as informações que temos hoje, você diria que cada uma das buscas e apreensões, cada uma das suspensões de perfis em redes sociais, cada uma das prisões preventivas, e cada uma das remoções de conteúdo tenham sido necessárias para salvar a democracia? Se a resposta é não, não faz sentido defender ou rejeitar todas as decisões de Moraes como um pacote fechado.

O ministro Alexandre de Moraes, que será o presidente do TSE durante as eleições de 2022 / Crédito: Roberto Jayme/ Ascom /TSE

Mais ainda, nenhum conjunto imaginável de decisões de Moraes teria sido suficiente, por si só, para impedir o pior, do processo eleitoral aos atos do dia 8 de janeiro. Mais do que uma das “forças desarmadas”, na expressão do ministro Fachin, o Supremo depende das outras instituições para fazer valer suas decisões (como, por exemplo, as decisões de Moraes sobre desocupação de estradas na greve dos caminhoneiros deixam evidente). Independentemente de sua coragem pessoal, os juízes são “leões de trono”, na expressão que o realista Nelson Hungria usou no plenário do STF nos anos 50.

Felizmente, em momentos críticos, o Supremo não esteve sozinho. No Senado, a sanha bolsonarista de “impichar” ministros do STF encontrou as portas fechadas. A Câmara não suspendeu o mandato de Daniel Silveira, mas não a ação penal da PGR na qual o tribunal veio a condená-lo, ajudando a traçar uma linha contra o extremismo nas eleições de 2022. O Congresso não enveredou pela tentação perigosa de adiar as eleições. Ignorou teses falsas do governo e de integrantes das forças armadas sobre o voto eletrônico e o processo eleitoral. No dia 8 de janeiro, o conjunto das forças armadas não seguiu o chamado golpista. Moraes cumpriu um papel decisivo e corajoso, mas obviamente insuficiente. Não se trata de crítica. Não havia como ser diferente. Em um estado democrático de direito, o juiz é um ator profundamente limitado, e por boas razões.

“O juízo político final sobre a real dimensão do papel de Moraes é livre e está em aberto. Demandará tempo. Enquanto isso, o juízo jurídico sobre cada uma de suas decisões precisa ser feito diariamente, a cada passo”

O juízo político final sobre a real dimensão do papel de Moraes é livre e está em aberto. Demandará tempo. Enquanto isso, o juízo jurídico sobre cada uma de suas decisões precisa ser feito diariamente, a cada passo. As decisões do Supremo, é claro, não são tomadas em um vácuo político. São, sim, de alguma maneira influenciadas pelos atos de violência perpetrados por golpistas, pelos ataques a agentes públicos, pelas ameaças aos ministros, por quatro anos de recorrentes ataques presidenciais à democracia. O STF não é uma repartição burocrática que analisa formulários. Tanto quanto nós, seus juízes viveram o Brasil de Bolsonaro. Isso deve ser levado em conta no balanço geral sobre sua atuação. Não serve, porém, como substituto para a discussão jurídica.

Algumas críticas jurídicas parecem ignorar como o direito brasileiro funciona. Surpreendem-se com o incontroverso. O STF tem jurisdição penal, com competência originária sobre as principais autoridades públicas e políticas do País. Os relatores de inquéritos criminais têm poder para adotar uma série de medidas cautelares restritivas. A legislação e a jurisprudência inclusive admitem, em casos excepcionais, a suspensão de perfis em redes sociais por determinação judicial. Por sua vez, o Tribunal Superior Eleitoral tem poder para determinar a retirada de conteúdo incompatível com as regras do processo eleitoral (concorde-se ou não com essas regras, elas existem). Tentar mudar o resultado das eleições ou restringir o exercício dos poderes por meio de força ou grave ameaça constitui crime. E, sem força ou ameaça, é possível cometer o crime de incitação a esses crimes apenas com palavras ou postagens na internet. A liberdade de expressão não é absoluta no Brasil, e cabe aos juízes aplicar rotineiramente regras que tornam ilícita a expressão de certas ideias e em certos contextos.

Tudo que foi descrito acima é juridicamente possível. São regras que dão margem legal de atuação para Moraes, como juiz relator de diversos inquéritos no STF, e como presidente do TSE – mas em tese. A questão é saber, no detalhe de cada decisão, se as regras gerais foram corretamente aplicadas no contexto e no caso concreto, e se Moraes argumentou mínima e razoavelmente para embasar suas conclusões.

O 8 de janeiro e a suspensão de Ibaneis

As decisões tomadas por Moraes em janeiro, após os atos golpistas, permitem ilustrar o ponto.

A suspensão de Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal por 90 dias foi medida drástica. O Código de Processo Penal prevê a suspensão de cargo ou função pública caso haja risco fundado de uso da posição para cometer novos crimes. O Supremo já afirmou para si esse poder e já o utilizou em outras ocasiões. Faz sentido no caso concreto de Ibaneis? Quando Eduardo Cunha foi suspenso da presidência da Câmara, em 2016, o pedido veio do Ministério Público (que inclusive já havia oferecido denúncia). Havia indícios de que Cunha usava sua posição para evitar ser responsabilizado pelo comitê de ética da casa.

Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto.

No caso de Ibaneis, porém, a decisão de Moraes aponta diversos elementos de culpa passada do governador nos fatos de 8 de janeiro. Mas não discute quaisquer indícios de que, no cargo, usaria a posição de para cometer futuras infrações. Além disso, a decisão não explica porque a suspensão seria necessária tendo em vista que o governador já tinha sido afastado do comando da segurança pública do DF, por meio de intervenção federal proposta por Lula. O fato da intervenção sequer é mencionado por Moraes.

Nesses pontos, a decisão poderia até ser justificável, em outros termos e com outros fatos e argumentos. Mas não está justificada nos termos em que foi dada.
Além disso, a suspensão foi determinada de ofício por Moraes. Não houve qualquer pedido feito por parte legitimada. Nem a Advocacia-Geral da União, nem o senador Randolfe Rodrigues, que sequer são partes legítimas para pedir medidas assim, pediram a suspensão de Ibaneis (Randolfe pede apenas sua inclusão no inquérito).

Questionamentos como estes também valeriam para tantas outras decisões do ministro Moraes nos dois principais inquéritos que comanda – “fake news” e milícias digitais.

Por que censurar a revista Crusoé (como Moraes fez em abril de 2019) era importante para a investigação? Qual a justificativa para pedir cada um dos bloqueios de perfis em redes sociais (em vez de apenas remover postagens específicas, por exemplo) de cada um dos parlamentares eleitos em 2022? Quais as razões jurídicas para bloquear bens de todos os empresários que faziam parte de um grupo em que um dos participantes – não todos – disse que preferia golpe a ter Lula no poder?

O ‘fator colegiado’

O salvo-conduto a Moraes é reforçado pelo argumento de que o referendo de suas decisões pelo colegiado mostra que estão bem fundamentadas. Mas quais delas? Muitas ainda são apenas monocráticas. O “fator colegiado” precisa ser avaliado caso a caso.

No caso de Daniel Silveira, o deputado condenado por ameaças ao Supremo e seus ministros, a aplicação do argumento é clara. Os ministros endossaram por ampla maioria as medidas cautelares de Moraes e condenaram o parlamentar (conforme denúncia feita, ressalte-se, pela PGR). Contudo, há tantas outras decisões nos últimos anos, inclusive nessas mesmas investigações, que não foram submetidas ao colegiado – são os casos, por exemplo, dos decretos de prisão de Sara Winter, Oswaldo Eustáquio, Allan dos Santos e do ex-deputado Roberto Jefferson.

Mesmo quanto às decisões levadas ao plenário, o “fator colegiado” tem limites. A própria atuação de Moraes pode estar dificultando seu controle pelos pares. Quem diz isso? Seus colegas, reservadamente ou abertamente. Em seu voto no Plenário Virtual sobre as cautelares adotadas após o 8 de janeiro, o ministro André Mendonça fez o estranho registro (não contestado por Moraes) de que não teve acesso às transcrições das postagens que supostamente justificariam a suspensão dos perfis. Mas, assumindo que ao menos as defesas dos investigados teriam tido acesso aos autos, endossou as cautelares por não “vislumbrar prejuízo”. Isso significa que ao menos um dos integrantes do colegiado votou sobre a medida cautelar sem acesso a todos os elementos que, segundo Moraes, a justificariam? Como isso seria juridicamente aceitável – ou sequer necessário, em termos puramente práticos, para “salvar a democracia”?

O ‘fator Aras’

Para justificar maior tolerância jurídica com muitas decisões de Moraes, afirma-se ainda que Moraes precisaria agir para suprir as disfunções e omissões da Procuradoria-Geral da República. O argumento parte de diagnóstico correto: Augusto Aras entrará para a história como o PGR que ajudou a blindar Bolsonaro, inclusive durante sua mortífera gestão da pandemia de covid-19. Quando agiu contra mobilizações antidemocráticas, de 2021 para cá, agiu pouco e a reboque. Nas palavras de Rosa Weber, o PGR se apresentava como um “espectador-geral da república”.

Essa PGR inerte na busca de responsáveis por crimes legitimou algumas medidas mais criativas por parte de Moraes e do STF. Foi utilizada para manter investigações em aberto e até mesmo driblar o Ministério Público em alguns momentos de investigações. O próprio “Inquérito das fake News”, instaurado em 2019 (chefiado ainda por Raquel Dodge) e endossado pelo plenário em 2020, foi defendido com esse argumento. Mas ele não pode justificar juridicamente qualquer coisa que seja feita no processo, a qualquer tempo. Além de tudo, seu impacto futuro sobre o sistema de justiça é desconhecido. Depois que Aras deixar o cargo, essa justificativa será abandonada – ou o Supremo criou o precedente para juízes secundarem o Ministério Público em investigações criminais quando considerarem que há inércia do órgão?

O PGR, Augusto Aras / Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Moraes, para seu crédito, não segue o caminho de se escorar no “fator Aras” em suas decisões. É fora do tribunal que o argumento ecoa, como se pudesse legitimar qualquer assunção de poderes acusatórios pelo Supremo. Mas como exatamente a inércia de Aras, por exemplo, justificaria a suspensão de ofício de Ibaneis, por específicos 90 dias, considerando ainda que já havia intervenção federal na segurança pública?

As comparações entre Moraes e Sérgio Moro são perigosas. As pessoas e as circunstâncias têm importantes diferenças. Mas há uma possível contradição em parte do discurso sobre Moraes. Críticos da Lava Jato que (corretamente) se escandalizam com mensagens mostrando combinações entre Moro e membros do MP sobre o andamento das investigações, mas aceitam que Moraes simplesmente corte os intermediários e assuma papéis que caberiam à acusação em certos casos.

Podemos ser convencidos do contrário com relação a todas as críticas acima. Mas eles importam, e não foram adequadamente enfrentados nas decisões. Moraes e o Supremo precisam continuar a justificar suas decisões com base no direito vigente. Podem falhar – como qualquer juiz ou tribunal. Mas reconhecer erros em decisões do Supremo, vale dizer, não é concluir que seus juízes são ditadores. A comunidade jurídica faz críticas o tempo todo – sem qualquer medo de retaliação, ressalte-se. É um dos poucos instrumentos que temos para provocar o STF a aperfeiçoar seus procedimentos. Precisamos cobrar mais justificação – não menos. Fazer o contrário neste momento só fará aumentar os erros futuros. Nada de carta branca.

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