Série Voz

Negacionismo e o pensamento jurídico brasileiro

É fundamental romper com atitude negacionista para enxergar de frente a violência racial promovida pelo Direito

STF; tributos mais discutidos judiciário
Crédito: Carlos Humberto/SCO/STF

A retórica anti-ciência presente nos discursos que sustentam o uso da cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina como panaceia no combate à Covid-19 – apesar da ausência de evidências sobre a eficácia e segurança destes medicamentos no tratamento da infecção, segundo a OMS – encontra paralelo em inúmeras outras narrativas negacionistas, que têm sido instrumentalizadas por setores de extrema direita em todo o mundo.

Os potenciais impactos de tais crenças sobre a gestão da pandemia do novo coronavírus não se restringem às controvérsias lançadas sobre os medicamentos mais adequados para tratar os pacientes, mas ameaçam até mesmo a imunização da população, face à mobilização dos ativismos anti-vacina em diversas partes do globo.

A investida contra as evidências científicas ameaça também o conhecimento acumulado sobre as mudanças climáticas e nos distancia das necessárias transformações para combater o aquecimento global.

Os fatos históricos igualmente não escapam à manipulação. No campo fértil à disseminação de informações falsas das redes sociais, a historiografia tem sido frequentemente distorcida por meio de revisões dos processos históricos, totalmente alheias ao método científico, conduzidas sob o indisfarçável intuito de legitimar determinados projetos políticos.

Está em evidência o uso político do negacionismo e de suas teorias conspiratórias como instrumentos para minar consensos científicos, desmobilizar agendas e legitimar a desestruturação de políticas públicas. A crise de confiança nas formas políticas, que tem se expressado não raro num sentimento generalizado contra as instituições, acaba por atingir a própria ciência[1].

A perplexidade que semelhantes bizarrices provocam não é diferente do sentimento resultante do estudo das relações raciais no campo jurídico. Se pretendemos enfrentar os negacionismos, é preciso encará-los de frente.

De fato, parece ser a negação o mecanismo que melhor define a relação entre o racismo e a forma hegemônica de apreensão do fenômeno jurídico no Brasil.

Na descrição encontrada em Memórias da Plantação, tese de doutoramento sustentada pela escritora, psicóloga e teórica portuguesa Grada Kilomba, encontramos uma definição que aproxima o conceito de negação da sua acepção psicanalítica, ao passo em que a autora descreve a projeção que o colonizador branco realiza sobre o sujeito negro colonizado, para negar a violência cometida pelo primeiro:

No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão radical: ‘Elas/es querem tomar o que é Nosso, por isso, Elas/es têm de ser controladas/os.’ A informação original e elementar – ‘Estamos tomando o que é Delas/es’ – é negada e projetada sobre a/o ‘Outra/o’- ‘elas/eles estão tomando o que é Nosso’ –, o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano. Esse fato é baseado em processos nos quais partes cindidas da psique são projetadas para fora, criando o chamado ‘Outro’, sempre como antagonista do ‘eu’ (self). Essa cisão evoca o fato de que o sujeito branco de alguma forma está dividido dentro de si próprio, pois desenvolve duas atitudes em relação à realidade externa: somente uma parte do ego – a parte ‘boa’, acolhedora e benevolente – é vista e vivenciada como ‘eu’ e o resto – a parte ‘má’, rejeitada e malévola – é projetada sobre a/o ‘Outra/o’ como algo externo. O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ou o ladrão violento, a/o bandida/o indolente e maliciosa/o. Tais aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como um meio de escapar dos mesmos.

Em termos psicanalíticos, isso permite que os sentimentos positivos em relação a si mesma/o permaneçam intactos – branquitude como a parte ‘boa’ do ego – enquanto as manifestações da parte má são projetadas para o exterior e vistas como objetos externos e ‘ruins’. No mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como o objeto ‘ruim’, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, isto é, agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inquietude que sua história causa. (KILOMBA, 2019, pp. 34-37).

A noção psicanalítica de negação pode ser tomada como metáfora para se compreender mais amplamente a estratégia de silenciamento/ocultação das relações raciais, que foi adotada pelo Estado brasileiro.

Marcados pela colonização portuguesa, seríamos caracterizados pelo tipo de racismo por denegação, que encontrou no Direito o instrumento por excelência de dissimulação da violência racial. Aqui, ao contrário das sociedades de origem anglo-saxônica, que não dispunham de uma tradição de relações raciais, herdamos as técnicas jurídico-administrativas de estratificação racial já consolidadas nas metrópoles ibéricas[2].

Com isso, o Estado dispensaria as formas abertas de segregação para internalizar de forma silenciosa o racismo, através de sua institucionalização na esfera jurídica (BERTULIO, 2019, p. 124). Não por outra razão, o pensamento jurídico seria marcado pelo negacionismo no tocante às relações raciais e pela sustentação ideológica do mito da democracia racial, a partir da afirmação de que “todos são iguais perante a lei”.

E o fato de a produção teórica, legislativa e jurisprudencial do Direito estar entre nós tradicionalmente calcada em abordagens estritamente normativas, formalistas, além de aprisionadas na matriz norte-atlântica do conhecimento, seria o obstáculo epistêmico decisivo à visibilização e desmonte da esfera jurídica como lócus de produção e reprodução de hierarquias raciais.

Mesmo no marco contemporâneo do neoconstitucionalismo, a doutrina constitucional brasileira assume como referência os textos normativos europeus do pós 2ª Guerra Mundial e os valores humanistas que passaram a condicionar a atuação dos Estados europeus, diante do trauma do holocausto nazista.

Pouca ou nenhuma atenção tem merecido o fato de que a própria história constitucional brasileira paradoxalmente conciliou desde sua origem o esforço de modernização institucional do país por meio de formas jurídicas liberais (Constituição de 1824), com a manutenção do contingente negro majoritário de sua população sob a condição de escravos, objetos da propriedade senhorial e destinatários preferenciais do projeto criminalizante elaborado no Código Criminal do Império de 1830 (VELLOZO e ALMEIDA, 2019).

Também não se questiona a aposta predominante da nossa história constitucional na invenção institucional como forma de moldar o país (LESSA, 2012, p. 518). Uma tendência de fabricação abstrata da organização social a partir do próprio Estado que está baseada, em verdade, no pressuposto racista de inaptidão cívica da população brasileira (VIANA, apud RAMOS, 1957, p. 180), uma sociedade vista como pré-moderna, incapaz de civilizar-se organicamente à semelhança dos países capitalistas centrais.

Não por outra razão, até os dias atuais, o colonialismo jurídico que caracteriza o pensamento e a práxis constitucionais brasileiras patina no estoicismo que trata como mera violação de direito ou falta de efetividade o estado naturalizado de subcidadania a que têm sido submetidos os corpos e experiências negras no país, de forma generalizada e permanente.

Muito ao contrário de choque de iluminismo, o constitucionalismo brasileiro demanda urgentemente a inscrição da experiência da diáspora africana nas Américas que nos é proposta de Lélia González a Marcos Queiroz, para encontrar assim o zênite universalizante dos ideais de igualdade e liberdade presente nas formas político-ideológicas produzidas pela resistência negra (GONZÁLEZ, 1988; QUEIROZ e DUARTE, 2016).

Faz-se necessário romper com a atitude negacionista que constitui o fio condutor da cultura jurídica brasileira, para enxergar de frente a violência racial promovida pelo Direito e, a partir da experiência compartilhada da diáspora negra, construir alternativas de exercício de cidadania e liberdade que possam ser encarnadas por todos os corpos.

Da Revolução do Haiti em 1805, que ousou estender ideais de igualdade e liberdade para todos aqueles que de alguma maneira estiveram sob o signo do colonialismo, às favelas cariocas, que em pleno 2020 propõem ao Supremo Tribunal Federal uma nova hermenêutica constitucional no seio da ADPF 635. Uma forma de pensar, enunciar e resguardar os direitos fundamentais que, ao revés de afirmar a cidadania como atributo da afirmação da supremacia branca, masculina, cisheteronormativa, classista e cristã, seja capaz de acessar os diversos corpos e formas de vida que conformam a sociedade brasileira (PIRES, 2019).

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Bibliografia

BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade, in: Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, nº 92/93 (jan/jun), 1988b, p. 69-82.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, Rio de Janeiro, 2019.

LESSA, Renato. Modos de fazer uma República: demiurgia e invenção institucional na tradição republicana brasileira, Revista Análise Social, 204, xlvii (3º), 2012, Lisboa, Portugal, p. 508-531.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. LASA FORUM, 50:3, Dossier el pensamiento de Lélia Gonzalez, un legado y un horizonte, 2019, pp. 69-74.

QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa e DUARTE, Evandro Piza. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o Constitucionalismo em face do lado oculto da Modernidade. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 49, pp. 10-42, jul/dez., Rio de Janeiro, 2016.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957.

VELLOZO, Júlio César de Oliveira e ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Rev. Direito Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 03, 2019, p. 2137-2160.

Notas

[1] Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-negacionismo-no-poder/>.

[2] Lélia Gonzalez diferencia duas faces da estratégia utilizada pelo colonialismo ao estabelecer a exploração/dominação nos continentes americano e africano. A tática de racismo aberto operou nas sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa e estabeleceu o rechaço absoluto da miscigenação e a defesa da pureza do grupo branco, o que implicava na segregação dos grupos não brancos. Por outro lado, nas sociedades de origem latina, estabeleceu-se o racismo por denegação ou racismo disfarçado, decorrente das teorias da miscigenação, da assimilação e da democracia racial. Neste último modelo, dispensam-se formas abertas de segregação, uma vez que a estratificação racial é assegurada pela ideologia de classificação das raças e pelas técnicas jurídico-administrativas que preservam a superioridade dos brancos (GONZALEZ, 1988, pp. 72-73).

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