desigualdade de gênero

A síndrome de mariposa das mulheres borboletas

No home office, telas de computadores se apresentaram como janelas indiscretas: tornando públicos assuntos que parecem privados

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Crédito: Daniel Klein/Unsplash

Já alertava Ruth Bader Ginsgurb que as mulheres apenas “terão alcançado a verdadeira igualdade quando os homens compartilharem com elas a responsabilidade de criar a próxima geração”. Eu acrescentaria ainda a responsabilidade de cuidar da geração que nos antecedeu e a de cuidar da nossa própria geração, responsabilizando-se pelas tarefas domésticas, de cuidado e também pelas próprias roupas sujas.

Boaventura de Souza Santos ensina que a pandemia do coronavírus, além de escancarar as zonas de invisibilidade, provavelmente as multiplicará, trazendo-as para tão perto que bastará abrir as janelas para vê-las.

No caso das mulheres que trabalham em home office, as telas dos computadores se apresentaram como verdadeiras janelas indiscretas, visibilizando os problemas da divisão sexual do trabalho e da desigualdade dos gêneros e tornando públicos assuntos que (apenas) parecem privados.

É óbvio que se trata de recorte da realidade feito a partir de um ponto de vista e de uma posição privilegiada. À imensa maioria das mulheres, principalmente às negras, pobres e chefes de família, não foi dada a possibilidade de exercer o seu direito de “ficar em casa” ou a “escolha” do home office.

Em qualquer das situações, contudo, ficou evidente a urgência de se tornar público o debate de assuntos que são considerados privados apenas por conveniência, haja vista que exame rápido para além da sua superficialidade comprova que se tratam de assuntos públicos como a divisão sexual e racial do trabalho, a desigualdade de gêneros e a interseccionalidade das necessidades femininas. É preciso aprofundar a discussão acerca do trabalho de cuidado e das discriminações raciais e sociais ainda existentes.

É preciso, nesse momento em especial, conclamar todas as mulheres para uma conversa franca e aberta sobre a organização societal que impede mulheres (normalmente brancas e de classe média) de galgarem cargos mais altos nas hierarquias empresariais e organizacionais e que, ao mesmo tempo, continua a discriminar outras mulheres (normalmente negras e pobres), atribuindo-lhes trabalhos informais ou precarizados, muitas vezes utilizados para propiciar ao primeiro grupo de mulheres o acesso e ascensão no mercado de trabalho.

É preciso se perguntar: onde estão os homens? Onde está o Estado?

É preciso problematizar a falta de representatividade política das mulheres e o impacto que isso gera na ausência de políticas públicas direcionadas ao cuidado com os filhos, com a casa, com os pais.

É preciso problematizar a falta de representatividade empresarial, social e organizacional das mulheres em posições de poder e o impacto que isso gera na manutenção de estruturas machistas e discriminatórias que relegam ao plano individual e privado qualquer assunto doméstico, invisibilizando tarefas tão banais e cotidianas, quanto necessárias e indispensáveis como limpar, cozinhar, cuidar dos filhos, zelar pelos idosos e lavar as roupas sujas.

Ensina-nos Rupi Kaur que “a representatividade é vital”, pois “sem ela a borboleta rodeada por um grupo de mariposas incapaz de ver a si mesma vai continuar tentando ser mariposa”.

É preciso que avancemos na discussão para que deixemos de nos ver como mariposas e possamos enxergar a nós mesmas para alçarmos os voos das borboletas que somos.

A ausência de representatividade feminina no poder parece estar no cerne da ausência de escolas e creches públicas (e privadas) que funcionem durante a jornada de trabalho; na ausência de transporte público eficiente e de qualidade, bem como na ausência de planejamento rodoviário e habitacional das cidades e que tornam quase impossível à mulher (principalmente aquela com filhos) se inserir efetivamente no mercado de trabalho, relegando-a muitas vezes à informalidade, impedindo-a de galgar novos degraus na carreira ou proibindo-a de alcançar posições de poder.

A ausência de representatividade feminina parece estar no cerne da consolidação de uma cultura de trabalho em sobrejornada, prestação de horas extras e trabalho ininterrupto que avança sobre a vida pessoal para além do horário comercial em incontáveis happy hours de negócios, jantares com superiores e o futebol (ou o vôlei, a cerveja ou o vinho) do final de semana.

Tudo considerado muito necessário em um meio empresarial que não deseja ter que lidar com recusas justificadas na necessidade de ficar com os filhos, preparar a comida, limpar a casa, levar o pai ao médico ou lavar as roupas sujas. Afinal, aqueles que se ocupam da gestão, ainda majoritariamente homens, muito provavelmente tiveram durante toda as suas vidas alguma mulher para se preocupar com esses afazeres que, não obstante essenciais, parecem-lhes irrelevantes.

Tudo isso foi agravado pela pandemia do Covid-19 que, ao nos trancar em nossos lares, escancarando aos homens as necessidades domésticas e de cuidado, gerou não apenas desconforto, mas contribuiu para o aumento significativo da violência doméstica e do número de divórcios. Ao que tudo indica, ao serem confrontados com a nossa realidade cotidiana muitos se viram perplexos e incapazes de manter a engrenagem funcionando.

É por tudo isso que, como já bem disse alguma sábia (com certeza uma mulher) é preciso não mais apenas criar as meninas acreditando que elas podem fazer tudo o que os meninos fazem, mas criar meninos sabendo que eles devem fazer tudo que as meninas fazem, incluindo os cuidados com as bonecas, casinhas, panelinhas e vassouras.

É preciso encerrar definitivamente discursos que impõem às meninas e às mulheres certa vocação inerente e natural para os trabalhos do lar e de cuidado, lembrando que, como já bem disse Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Se algo de bom possa e deva sair de tudo isso que estamos vivendo, que seja a mudança das estruturas machistas que ainda nos aprisionam em “gaiolas”, “labirintos” e “tetos” de vidro. O recorte do trabalho em home office restringe-se às mulheres as quais foi dada essa possibilidade, normalmente mais bem amparadas por seus empregos, via de regra, formais e remunerados.

Atividades que, normalmente, exigem níveis educacionais mais altos como, por exemplo, as profissionais da educação (38,7%), do setor bancário (37,4%), dos escritórios de advocacia, engenharia ou publicidade (33,4%) e da administração pública (21,8%). Dados da PNAD Covid-19 demonstram que “72,8% dos mais de 11 milhões de brasileiros que estão trabalhando remotamente de suas casas têm diploma de ensino superior. Outros 24,5% estudaram até o ensino médio, e a idade da maioria está entre 25 e 49 anos”[1].

É de se ver, portanto, que não se trata de parcela inexpressiva da sociedade. Há milhares de mulheres nesse exato momento em que redijo esse pequeno artigo (ou em que você o lê), fazendo o mesmo enquanto ajuda a filha na prova de matemática, grita para o filho largar o jogo eletrônico, preocupa-se com o prazo do recurso ou com o caso da audiência virtual que terá que sentenciar, ao mesmo tempo em que refoga o feijão fazendo a lista mental infindável do que será preciso para passar a semana e se desconcentra ao lembrar que hoje era o dia da fantasia na aula virtual do caçula que ainda está perambulando de pijama pela casa embora o relógio insista em marcar 11 horas da manhã.

Ao serem colocadas em home office, as mulheres também foram postas em regimes de home care e home schoolling em jornadas de trabalho de turnos ininterruptos (muitas vezes sem revezamento), intercalados por tempo à disposição de “patrões” que demandam atenção, cuidado e zelo 24 horas por dia.

Já bem disse algum poeta (homem com certeza) que as mulheres são as cuidadoras do mundo, atribuindo-nos uma certa aura encantada de fadas do lar. Eu não sei quanto a vocês, mas eu dispenso o título de cuidadora do mundo e fada do lar. Quando muito pretendo ser apenas cuidadora de mim mesma e fada da minha própria existência. Fada não, pois fadas não existem. Pretendo mesmo é deixar de me ver como mariposa aprisionada por estruturas de vidro, reconhecendo-me como borboleta voando livre e junto ao meu panapaná pelos céus ilimitados das possibilidades.

 


O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:


[1] Link para matéria: <https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Trabalho-na-pandemia-velhas-clivagens-de-ra%C3%A7a-e-g%C3%AAnero>.

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