MP 936

MP 936: descompasso com princípio da irredutibilidade salarial e segurança jurídica

Acordo individual como mecanismo inconstitucional para reduzir salário

(Brasília - DF, 18/03/2020) Coletiva à Imprensa do Presidente da República, Jair Bolsonaro e Ministros de Estado. Foto: Marcos Corrêa/PR

A Constituição Federal de 1988 inaugurou, na relação capital versus trabalho, o paradigma democrático alinhado com os preceitos internacionais preconizados pela Organização Internacional do Trabalho (Convenções 98 e 154).

No campo do direito coletivo, a não ingerência estatal nas estruturas dos entes sindicais ganhou contornos relevantes para garantir a autonomia e a liberdade sindical no país (artigos 5º, XVIII, XIX, XX, XI, 7º, XXVI e 8º, CRFB). A prevalência dos acordos e convenções coletivas é destacada nos demais incisos do art. 7º, em harmonia com seu caput, quando exige a participação dos entes sindicais (neste aspecto, do sindicato profissional) para mitigar direitos fundamentais dos trabalhadores como jornada de trabalho limitada (incisos XIII e XIV) e irredutibilidade salarial (inciso VI).

Irredutibilidade Salarial

A irredutibilidade salarial constitui princípio basilar das relações de emprego, uma vez que busca garantir a alteração unilateral do empregador na sua obrigação contratual, qual seja, a contraprestação pecuniária ao esforço físico e mental despendido pelo trabalhador e seu tempo à disposição.

A própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), datada de 1º de maio de 1943, preconizou a garantia da não alteração contratual lesiva ao empregado (art. 468), abrangendo a redução salarial, por consequência. Nesse aspecto, apenas ressalvada a hipótese de “força maior” (art. 503).

A Lei nº 4.923/65 previu a pactuação do “acordo japonês” exigindo a participação sindical para que houvesse a redução salarial não superior a 25% (art. 2º).

Nos últimos anos, como mecanismo de combate às crises econômicas (denominado “lay off”), houve a criação de legislações visando à manutenção de empregos e atividade econômica em diversos setores no Brasil, mediante a adoção de inúmeras exigências legais, sempre com a indispensável presença do ente coletivo (Lei 13.189/15, instituiu o Programa de Proteção ao Emprego – PPE e a Lei nº 13.456/17, instituiu o Programa Seguro-Emprego – PSE).

Repare que, com exceção do preceito celetista da década de 40, as legislações citadas estão alinhadas com o ditame constitucional de irredutibilidade salarial, salvo previsão em acordo e convenção coletiva (art. 7º, VI, CRFB).

Na contramão do rigor preconizado pelo texto constitucional, quando exige a presença do ente sindical para reduzir salário e aumentar jornada de trabalho, justamente voltada à garantida dos princípios da equivalência dos contratantes coletivos e da autonomia sindical, a Lei nº 13.467/17 (“reforma trabalhista”) apresentou dezenas de disposições, buscando estabelecer um novo paradigma do epíteto “negociado versus legislado” (exemplos, art. 59, §5º, 59-A, 611-A, CLT).

Nota-se que a “reforma trabalhista” não dispensou frontalmente a possibilidade de redução salarial dos trabalhadores à margem da intervenção sindical.

Em que pesem as alterações legislativas mitigando princípios elementares do direito do trabalho (ausência de isonomia entre as partes e hipossuficiência econômica do trabalhador), a tentativa de enfraquecer a exigência constitucional de participação ativa do ente coletivo em alterações contratuais que gerem prejuízo imediato aos salários dos trabalhadores mostrou-se sutil até então no plano normativo brasileiro.

Medida Provisória nº 936

Diante do cenário global de pandemia de Covid-19, o Presidente da República decretou estado de calamidade (Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020), levando os entes federativos a declararem o fechamento de atendimentos presenciais em atividades não essenciais (shoppings centers, boates, etc.), escolas públicas e privadas, além de limitar substancialmente as atividades essenciais, como transporte público, de modo a garantir a política sanitária de isolamento social das pessoas, buscando evitar ao máximo a propagação do vírus, conforme orientações da Organização Mundial de Saúde – OMS.

Nesse contexto, em 01/04/2020, o Presidente da República, com base no art. 62, da Constituição Federal, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda para o enfrentamento da crise sanitária e econômica, por meio da Medida Provisória nº 936.

A medida provisória prevê o benefício emergencial para duas hipóteses: a) redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e, b) suspensão temporária do contrato de trabalho (art. 5º).

Em ambos os casos, o ato normativo, em inúmeras passagens, dispõe que o acordo individual entre trabalhador e empregador é suficiente para permitir a adoção destas medidas ou, ainda, tem como base única o interesse patronal (artigos 7º, 8º, 11 e 12 da Medida Provisória nº 936).

Em manifesta dissonância à norma constitucional de participação do ente sindical, quando da possibilidade de redução salarial (art. 7, VI), bem como aos ditames internacionais (Convenção 98 e 154 da OIT, as quais fomentam a participação dos entes coletivos), a medida provisória é uma flagrante ofensa aos fundamentos (valor social do trabalho, dignidade da pessoa humana – art. 1, III e IV)  e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, como a busca da redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3, III), além de ofender os princípios regentes da ordem econômica (justiça social e função social da propriedade – art. 170, caput e inciso III).

Destaca-se que há manifesta agressão ao próprio regime constitucional, ao se editar legislações em descompasso com cláusulas pétreas (art. 60, §4º, inciso IV, CRFB), havendo abalo a um valor elementar de uma sociedade fundada no Estado de Democrático de Direito, quando editadas medidas desta natureza, qual seja, a segurança jurídica (artigos 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 926 do CPC).

A segurança jurídica como resultado do sentimento comunitário de isonomia, coerência, estabilidade e de previsibilidade na edição, aplicação e cumprimento das normas jurídicas será prejudicada, a partir do instante em que trabalhadores e empregadores passam a se adequar à medida provisória visando garantir seu emprego e a manutenção da atividade econômica, porquanto quando posteriormente a celeuma bater as portas do Poder Judiciário, há possibilidade de invalidação dos inúmeros pactuados realizados em consonância com Medida Provisória nº 936, gerando condenações judiciais com impactos financeiros aos empregadores relevantes.

Portanto, o vetor da segurança jurídica deve nortear todas as autoridades públicas quando da edição de normas, não apenas o Poder Judiciário no momento do julgamento, de modo a não gerar justa expectativa nos destinatários da legislação (princípio da proteção da confiança legítima e boa-fé).

Em que pese o notório estado econômico gerado pela calamidade pública ocasionada pelo Covid-19, do ponto de vista jurídico-constitucional, o Poder Judiciário contará com poucos mecanismos de filtragem constitucional para permitir e chancelar a validade de acordos individuais para redução salariais e suspensão de contratos de trabalho (medida mais grave que reduzir salários), o que pode levar a um novo caos econômico.

Nesse contexto de futuras discussões judiciais, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra e Associação dos Procuradores do Trabalho – ANPT publicaram nota pública defendendo a inconstitucionalidade dos acordos individuais para reduzir salários e para suspender contratos de trabalho, conforme autorizado pela Medida Provisória nº 936.

Além disso, em 06/04/2020, o Supremo Tribunal Federal – STF, deferiu em parte a cautelar requerida, no bojo Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.363, ajuizado pela Rede Sustentabilidade, contra dispositivos da Medida Provisória (MP) 936/2020, reconhecendo, em síntese, que “acordos individuais somente se convalidarão, ou seja, apenas surtirão efeitos jurídicos plenos, após a manifestação dos sindicatos dos  empregados, […] os quais poderão deflagar a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes”.

Conclusão

A adoção de medidas emergenciais para enfrentamento da crise sanitária e econômica é imprescindível para manutenção das atividades econômicas, garantindo emprego e renda para todos os brasileiros.

Contudo, ainda que em tempos de crise, todas as espécies normativas editadas devem ser em harmonia aos direitos, garantias e princípios fundamentais.

Portanto, a Medida Provisória nº 936 não escapa desta filtragem constitucional, devendo ser adequada para exigir a presença dos entes coletivos quando os acordos resultarem em redução de salários e suspensão do contrato de trabalho, garantido a segurança jurídica dos destinatários da norma, sob pena de eventual prejuízo econômico para os empregadores em ações trabalhistas.

 


Bibliografia

 Medida Provisória 936. Disponível em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm

Nota Pública ANAMATRA. Disponível em https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/29583-nota-publica-5

Nota Pública ANPT. Disponível em http://www.anpt.org.br/imprensa/noticias/3647-mp-936-anpt-reafirma-preocupacao-com-a-flexibilizacao-de-direitos-trabalhistas-no-periodo-de-calamidade-publica).

Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604

Notícia do JOTA acerca da liminar concedida pelo E. Supremo Tribunal Federal na ADI nº 6.364. Disponível em: https://www.jota.info/justica/lewandowski-acordos-individuais-sobre-jornada-devem-ser-informados-a-sindicatos-06042020

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