Pandemia

Moratória e serviços essenciais: medida bem-intencionada com efeitos indesejáveis

Atualmente, deve se fazer um exercício sóbrio de busca de solução racional e baseado em evidências científicas

Crédito: Fotos Públicas

A pandemia do coronavírus traz consigo, mais que um problema de saúde pública, um estado generalizado de justificável sensibilidade exacerbada, externada por meio de sentimentos como medo, ansiedade, angústias. Manter a serenidade, nesse cenário, constitui tarefa árdua, mas necessária.

Os ainda limitados mecanismos de controle da doença adicionam complexidade ao cenário. Ao instituir isolamento social como forma de contenção da crise sanitária, necessariamente institui-se uma crise econômica. O presente texto não pretende se debruçar sobre a adequação ou não da opção política que vem sendo realizada, tampouco se atém a um equivocado mas decantado embate entre preservação da saúde e preservação do mercado.

Seu propósito é basicamente reafirmar que, diante dos complexos problemas que se apresentam, há que se fazer um exercício sóbrio de busca de solução racional e baseado em evidências científicas. Assim, este texto convida o leitor a compreender com maior clareza os efeitos de uma medida de política econômica que vem crescentemente sendo proposta no momento brasileiro atual.

Referimo-nos, especificamente, à chamada “moratória” ou, em outras palavras, às inúmeras proposições legislativas, originárias dos três níveis da federação, em que se busca instituir uma prorrogação legal do prazo concedido pelo credor a seu devedor para o pagamento de uma dívida, alterando, nesse ponto, os termos do contrato originalmente pactuado. Diversos projetos de lei nesse sentido têm sido propostos, para os mais variados tipos de contratos, em relação aos mais diferentes serviços essenciais, tais como bancários e educacionais, bem como em serviços públicos de fornecimento de energia elétrica, telefonia, água e esgoto.

Pode-se compreender as boas intenções daqueles que assim pleiteiam ou propõem. De fato, os níveis de desemprego já se revelam crescentes e tendem a aumentar, faturamentos de microempresários e a renda gerada por informais secam, honrar compromissos torna-se um problema real para pessoas de bem.

Entretanto, o compreensível anseio de solucionar o problema não pode se realizar de forma exclusivamente emocional, sem o devido resgate do que a experiência e as evidências científicas colecionadas até o momento apontam. Enfrentar o problema com serenidade, fundamentadamente e de forma resoluta revela-se a única saída aceitável.

Nesse ponto, convém recordar as bases da Teoria de Desenho de Mecanismos, trabalho que permitiu aos economistas norte-americanos Leonid Hurwicz, Eric Maskin e Roger Myerson vencerem o Prêmio Nobel de Economia, no ano de 2007. Em linhas gerais, a Teoria busca entender os incentivos com os quais se defronta um agente no momento de tomar uma decisão que afeta outros agentes e, a partir disso, criar regras de alocação de recursos que levem todos os agentes a agir de forma ótima, de acordo com um critério previamente estabelecido.

Admitindo o fato de que as pessoas respondem a incentivos, ou seja, tomam suas decisões de forma estratégica, é inevitável perceber que o mecanismo criado por uma moratória legalizada e generalizada gera incentivos para que os agentes procurem se beneficiar disso, maximizando sua utilidade individual. Esse movimento acontece tanto de um lado, quanto de outro das partes de um contrato.

A instituição de uma moratória nos contratos, preliminarmente destinada a ajudar o consumidor individual, se universalizada e legitimada, irá prejudicá-lo no agregado.

Esse prejuízo manifestar-se-á, por exemplo, na quebra generalizada dos vínculos contratuais, ou no aumento de preço para aqueles que não aderirem à moratória, a ponto de torná-lo proibitivo.

Isso ocorre porque o ato de consumo individual constitui parte de uma engrenagem complexa, e ações que deveriam beneficiar o consumidor individualizado, a “microjustiça”, uma vez tornadas universais, podem acabar impondo riscos ou custos aos fornecedores, aptos a gerar efeitos coletivos ou efeitos de “segunda ordem”, isto é, impactando de forma indesejável na “macrojustiça”.

Um desses efeitos adversos de “segunda ordem” indesejados é conhecido na literatura como “efeito Peltzman”, assim conhecida aquela situação em que a regulação tende a criar condutas não previstas para os regulados, anulando os benefícios almejados (Peltzman, 2007)[1]. Existem outros, como o denominado spill over effect, que é a repercussão no custo ou mesmo na oferta de um produto ou serviço no mercado.

Nesse cenário, o papel mais seguro a ser desempenhado pelo Estado deve ser o de facilitar e fomentar a negociação privada, inclusive criando meios para esse fim. As revisões unilaterais dos contratos, impostas pelo Poder Público e universalizadas, tendem a prejudicar a todos. Deve-se dar preferência à diminuição dos custos de se efetivar negociações, ou, em linguajar econômico, à diminuição dos custos de transação, conforme ensina o Professor Ronald Coase, também ganhador de um prêmio Nobel de Economia[2] (Coase, 1988).

Se houver a necessidade de intervenção do Estado por conta de uma falha de mercado, como é o caso de hipossuficiência específica de uma das partes na negociação, que ela seja realizada setor a setor, por meio dos entes reguladores que detêm a expertise necessária relacionada ao mercado em questão, e com foco nas pessoas que realmente precisam ser assistidas. Essa é a melhor forma de se atuar minimizando efeitos adversos.

Em suma, há que se duvidar fortemente da capacidade de medidas bem-intencionadas de estabelecimento de moratória de gerar os justos efeitos desejados. Uma robusta literatura econômica prévia nos indica o risco real desse caminho. Sobriedade, humanidade e escolhas racionais são valores que devem nortear a ação das autoridades em um grave momento de crise como o que se vive.

 


[1] Peltzman, S. (2007). Regulation and the Wealth of Nations: The Connection between Government Regulation and Economic Progress. New Perspectives on Political Economy, v. 3, n. 3, p. 185-204.

[2] COASE, Ronald. The firm, the market and the law. Chicago, University of Chicago Press, 1988.

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