Em um episódio da série Black Mirror não muito distante dos dias atuais e das terras tupiniquins, Waldo, um ursinho azul computadorizado, que começa sua trajetória pública como um personagem secundário de um programa de late-night talk show, se torna um candidato das eleições parlamentares britânicas.
Neste episódio intitulado “o momento Waldo”, que foi ao ar pela primeira vez em 2013, o urso, que faz sucesso graças a piadas preconceituosas, ataques e ridicularizações de pessoas públicas, ao chegar no cadafalso da política move sua candidatura com base em discursos a-políticos, descrédito às instituições democráticas e gosto pelo escárnio e violência como entretenimento.

Apesar de não ganhar as eleições, Waldo, o ursinho-candidato sem proposta e sem partido político, promove um espetáculo de entretenimento ao deslegitimar e esvaziar o processo político-democrático sob promessa de ser original, antissistêmico e contra hegemônico.
Em linhas gerais, entre muitos outros detalhes, o episódio retrata “tempos líquidos”, como diria Zygmunt Bauman, de crises democráticas agenciadas por revoluções globais das telecomunicações, abalos no instituto político-jurídico da representatividade, espetáculos midiáticos, desconfianças históricas sobre as organizações partidárias e denuncia um coro que pede o fim da política em nome de uma suposta democracia e anseio por uma dita soberania popular.
Para além da distopia apresentada em Black Mirror, muitos pontos de “O momento Waldo” se coadunam com a realidade, principalmente no que diz respeito ao plano contínuo de fragilização dos debates democráticos e de desinstitucionalização da política que, no contexto brasileiro, desafia os pressupostos do constitucionalismo emancipador da Constituição brasileira de 1988, a qual prega, por exemplo, a filiação partidária como condição de elegibilidade (art. 14, § 3º da CF/88) e atribui aos partidos políticos um papel importante no jogo democrático institucional do pluralismo político (arts. 1° e 17 da CF/88).
Tais percepções podem ser evidenciadas pelas mobilizações virtuais frequentes de hashtags, memes, “mitagem”, turn down for what que clamam que “todos os partidos são corruptos”; “nenhum partido me representa”, muito presentes nas disputas eleitorais de 2014 e seguintes, que atiçam, em contrapartida, projetos político-judiciais populistas de “criminalização partidária”, de exclusão da prerrogativa de função para todas as autoridades públicas, versando sobre princípios republicanos e desenhos democráticos distantes do projeto constitucional de sociedade de 1988.
Entre flertes com a criminalização e a deterioração dos instrumentos democráticos, percebe-se uma maior aceitação de discursos e argumentos a-políticos, oriundos das ruas e de instituições que, assim como Waldo, se valem exclusivamente de sátiras e ironias, visando, ao fim e ao cabo, o esvaziamento do jogo democrático.
Evidencia-se, então, que em Momento Waldo a finalidade de tais medidas pode ser considerada oportunista, sem o chamado ‘tom’ de seriedade, justamente visando limitar o debate político apenas a piadas e saídas imediatistas.
O que se traz à tona é o comprometimento necessário para a discussão política que busque, portanto, resultados efetivos – diferente do “estilo Waldo” presente em momentos atuais. Tal entendimento aqui realizado demonstra a influência que o debate político tem em nossa democracia.
Veja-se que não se afasta a legitimidade e regularidade das discussões com tons de leveza e até mesmo sátiras, garantia assegurada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4451. O que se questiona, e que serve de análise no Momento Waldo, é a limitação do debate apenas a tais mecanismos argumentativos.
Essa insistência em debates que atraem a descredibilização ao pluripartidarismo nos próprios partidos políticos ocorre, entre outros casos, na discussão acerca das candidaturas independentes.
Neste caso, muitos se valem desse discurso com fundamentos oportunistas de modo a ferir e relativizar o princípio democrático e a soberania popular. Um exemplo, no sentido, é que atualmente existem 33 partidos registrados no Brasil segundo o Tribunal Superior Eleitoral, cada um com seus ideais, missões e princípios, bem como requisitos e critérios para filiação, e que demonstram uma técnica de seleção para quem irá concorrer – definida pelos moldes em que se enquadram.
Ainda assim, há quem sustente o argumento da necessidade de uma candidatura avulsa por “não se reconhecer com nenhum deles” travestindo a real intenção de simplesmente manter discursos e pautas vazias e muitas vezes antidemocráticas.
Não se desconhece o fato de o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, assegurar o direito de candidatura sem o requisito da filiação partidária, o que, na visão de muitos de seus defensores, ampliaria inclusive a democratização, em razão da ainda existente barreira imposta por alguns partidos políticos para o registro de determinados interessados, apresentando sempre as mesmas cartas marcadas.
Contudo, o questionamento levantado é justamente para aqueles que se valem dessa discussão para, tão somente, garantir a viabilidade do perfil Waldo, até mesmo porque, diante de uma sociedade que se mostra embebida por um Momento Waldo e com flertes antidemocráticos, seria a candidatura avulsa um super trunfo para potencializar a democracia ou para fragiliza-la ainda mais?
A falta de responsabilidade com pautas democráticas, somada ao discurso cada vez mais proeminente de criminalização da política – como se nos sobrasse alternativa para qualquer melhoria efetiva e duradoura que não através dela – traz como consequência o debate cada vez mais intenso acerca das candidaturas independentes, aquelas lançadas sem o aval de partidos políticos.
De acordo com a professora Vânia Aieta[1], “a lógica do projeto político está necessariamente concatenada com a dimensão ideológica do fenômeno partidário”.
Diante disso, a similitude do Momento Waldo com o cenário brasileiro se daria porquanto os acontecimentos históricos garantiram uma dimensão internacional para partidos de extrema direita, calcada em ditames de um centro único de poder.
Ainda assim, o Momento Waldo se destaca com um discurso centrado no fato de que todos os políticos são igualmente ruins, ganhando popularidade mesmo sendo um urso de desenho animado já que a população não precisaria de políticos, e sim de alguém que representasse a mudança, vinda de forma independente, inclusive sem partido.
Em uma ideia completamente diversa da apresentada por J. Bryce[2] que enxerga os partidos como a grande energia-motriz do Estado, a candidatura avulsa cria corpo num cenário onde os fins justificam os meios, sem qualquer preocupação com as instituições democráticas, fortalecidas com a atuação dos partidos políticos que, de igual medida, são também importantes mecanismos contra o surgimento de candidaturas extremistas.
Não é demais ressaltar que a própria Lei nº 9.096/95, que disciplina sobre os partidos políticos, é categórica ao dispor já e seu art. 1º que o partido político “destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”.
Ou seja, além de requisito constitucional e elemento essencial em um sistema eleitoral proporcional, a filiação partidária permite uma atuação dos partidos de modo a integrar a população nas tomadas de decisões, o que não seria possível através das candidaturas avulsas, e filtrar opções ultrarradicais.
A descrença na política abrange as agremiações, que historicamente atraem desconfiança por grande parte da sociedade. Entretanto, é inegável que este requisito faz com que o pretenso candidato se comprometa com algum programa, alguma ideologia e convicção que será a base para o eleitor conhecê-lo e irá lhe impor certos limites, especialmente democráticos.
O filtro partidário nos garante, ainda que não de forma plena, conhecer o alcance e os impedimentos existentes para seus filiados, situação que, inclusive, denota a gravidade de qualquer titular de mandato o exercer sem partido.
A saída de um filiado nesta situação com justificativas como a que nenhum dos mais de 30 partidos lhe representa, ou que criará o próprio partido com seus próprios ideais, ilustra justamente a gravidade de candidaturas avulsas.
Isso porque vem justamente para suprir a busca de pessoas que já não possuem qualquer responsabilidade com as pautas democráticas e que não querem se sujeitar às supostas barreiras e os requisitos mínimos que os partidos prevêem.
Não é novidade que vivemos tempos de descrédito às instituições e a própria legitimidade do exercício democrático representativo. Embora previsto constitucionalmente, sequer o filtro partidário é suficiente para barrar candidaturas extremistas e discursos exclusivamente irônicos e jocosos, como vemos em Momento Waldo, e que, assim como nas telas, vêm à tona acompanhados de manifestações antidemocráticas sem constrangimento algum.
O apoio de parcela da sociedade, que acredita e incentiva candidaturas messiânicas desse perfil, impõe uma reflexão e necessária análise quanto ao destino que essa decisão traz, tal qual como em Momento Waldo, onde o futuro se revelou, ao que tudo indica, altamente autocrático.
Agora fica para o leitor verificar as minúcias sobre até que ponto o Momento Waldo da distopia exposta em Black Mirror sai do episódio e se torna não só um acontecimento das telas, mas um Projeto Waldo que move e deturpa as instituições democráticas.
[1] AIETA, Vânia Siciliano. PARTIDOS POLÍTICOS. Estudos em Homenagem ao Prof. Siqueira Castro. Tomo IV. Coleção Tratado de Direito Político. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006. Pág. 255; 256.
[2] BRYCE, James. Los Partidos Politicos en Los Estados Unidos. Madrid: Moderna, p. 4.