Pandemia

Mineração, De Re Metallica, COVID-19 e a resposta preliminar do Poder Judiciário

A essencialidade da atividade mineral, desde Georg Bauer até as decisões judiciais durante a pandemia de 2020

Ambiental
Crédito: Pixabay

Ainda em 1556, Georg Bauer, nome original não latinizado de Georgius Agricola, afirmava, no clássico De Re Metallica – o pai de todos os livros sobre a mineração –, que o minerador não deveria desprezar o conhecimento de determinadas artes e ciências, entre elas, além da arquitetura, da filosofia e da astronomia, o Direito. Georg afirmou que aquele que resolve se meter na mineração deve conhecer a lei associada aos metais, para cumprir suas obrigações com os outros.

Sua defesa da atividade mineral[1], já muito criticada em sua época, foi replicada em diversos livros de Engenharia, Economia e, claro, de Direito. Todos eles dedicam capítulo exclusivo à relevância da mineração. Nos livros jurídicos, partindo de fundamentos econômicos e sociais, os autores listam os efeitos legais dessa importância.

No Brasil, essas publicações tratam do interesse nacional no seu desenvolvimento, destacado no art. 176 da Constituição; da sua utilidade pública, expressa na Lei das Desapropriações; do seu interesse social, previstos no Código Florestal, e por aí vai.

E o que a recomendação de Georg teria a ver com interesse público da mineração? A resposta é simples: Se o minerador deve conhecer a lei dos metais para cumprir suas obrigações, e a produção destes interessa ao público, o minerador, ao minerar, cumpre uma obrigação com a sociedade. Daí a existência de várias normas esparsas que confirmam essa característica especial da atividade.

É de se imaginar que esse cenário de relevância não seria diferente no contexto da crise da COVID19. Dito e feito. O Ministério de Minas e Energia, por meio da Portaria 135/2020, afirmou a essencialidade da produção dos insumos minerais, protegendo a sua pesquisa, lavra, beneficiamento, transformação, comercialização, transporte e entrega.

Contudo, o reconhecimento teórico da relevância da mineração em textos legais não é suficiente para protegê-la. Em cenários de crise, como o da pandemia atual, é natural verificar a judicialização de assuntos envolvendo a mineração. Mais importante do que o ajuizamento é o exame de como o sistema judiciário se porta ao ponderar a proteção jurídica da atividade e as forças sociais que testam a sua essencialidade. Daí a relevância de uma pesquisa, ainda que preliminar, que responda à seguinte pergunta: Como o interesse público da mineração está sendo interpretado, até então, nas decisões liminares associadas à COVID19 pelo Poder Judiciário?

Com base em informações processuais públicas, retiradas dos sites dos mais diversos tribunais do país, identificaram-se[2] 13 disputas envolvendo a mineração, no contexto da pandemia. A maioria é relacionada a controvérsias cíveis, mas cerca de 30% envolvem questões trabalhistas:

Entre os casos citados, destaca-se uma ação popular de pessoas físicas contra grande produtora de minério de ferro em Minas Gerais, pleiteando a paralisação das atividades de seu principal projeto, em razão da proliferação da COVID19[3]. A ação popular não chegou a avançar, já que o juiz reconheceu sua inaplicabilidade ao caso.

Na esfera trabalhista, um dos casos mais relevantes foi uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público em Mato Grosso, pedindo a paralisação das atividades de um dos maiores projetos de mineração em construção no país[4]. Em razão da sensibilidade do caso, as partes rapidamente fizeram um acordo, mantendo a operação, desde que respeitadas determinadas condições de proteção à saúde dos trabalhadores.

Os 13 casos têm objetos que variam em cinco vertentes: disputa sobre paralisação de atividades; pedido de postergação de dívidas trabalhistas em razão do impacto da crise na venda de produtos minerais; controvérsia sobre a continuidade do transporte de insumos, produtos e pessoas para as áreas da mina; direcionamento de depósitos judiciais, em processo envolvendo danos ambientais da mineração, para auxílio do Estado no combate à crise; e substituição de garantias depositadas em juízo para alívio do caixa de empresa siderúrgica/mineradora. Entre essas vertentes, uma se destaca: o conflito entre suspensão e retomada da atividade, que representa mais da metade dos casos judicializados.

Em uma ação tramitando no Estado de Goiás, uma mineradora de insumos industriais impetrou mandado de segurança contra decreto do poder municipal que impedia a continuação de suas atividades[5]. Até aqui, tem se saído vitoriosa.

No Espírito Santo, empresa da indústria de mármores e granitos solicitou prorrogação do prazo para pagamento de dívidas trabalhistas ajustado em acordo judicial, alegando dificuldade superveniente causada pela pandemia[6], o que também foi deferido pelo juiz da causa.

Foram proferidas 27 decisões nos 13 casos, em primeira e segunda instâncias. Um dado chama a atenção: a maioria das decisões foi tomada em favor dos pleitos das empresas de mineração. Mais de 60% acataram argumentos das mineradoras ou negaram os pedidos do Ministério Público, Estado e de outros interessados:

Em determinada disputa, em Minas Gerais, uma produtora de manganês obteve liminar para dar continuidade ao transporte do seu produto às siderúrgicas compradoras do insumo, o que estava sendo impedido por decreto do poder municipal[7]. Em outra, no Estado de Goiás, uma mineradora de ouro conseguiu, na segunda instância trabalhista, rever parcialmente uma decisão de primeiro grau que suspendia sua operação[8].

O mais relevante, contudo, é o argumento utilizado pelos magistrados. Ainda que a maioria das decisões sejam favoráveis à indústria, apenas 26% delas ressaltaram, expressamente, a essencialidade da atividade mineral como fator, ainda que indireto, relevante para o deslinde caso. Não bastasse, nenhuma ressalta, de forma expressa, a utilidade pública ou o interesse social da mineração.

No caso trabalhista do Espírito Santo, as decisões reconheceram a força maior associada à pandemia e deferiram a postergação das parcelas previstas no acordo, sem, contudo, adentrarem na relevância da mineração. O mesmo ocorreu no caso do manganês, na Justiça comum de Minas Gerais. A decisão se baseou na essencialidade do transporte de cargas, prevista no Decreto Federal nº 10.282/20, sem destacar a relevância do produto transportado.

Essas decisões representam um retrato preliminar interessante da resposta dada pelo Poder Judiciário aos desafios enfrentados pela mineração durante a crise. Por meio delas, é possível identificar duas tendências:

(a) Os magistrados, de maneira geral, parecem sensíveis às dificuldades enfrentadas pelo setor mineral. Reconhecem a necessidade de sua manutenção operacional (desde que cercada de cuidados de saúde para proteção dos envolvidos) para evitar crises de abastecimento de produtos que dependam de insumos minerais.

(b) Ainda há espaço para a indústria mineral trabalhar, frente aos julgadores e em todas as instâncias, consideradas suas características especiais que justificam os instrumentos constitucionais e legais que lhe protegem e que lhe privilegiam.

Voltando ao conselho de Georg, e invertendo os papéis dos atores, o advogado de mineração também não deve desprezar outras ciências para examinar as melhores formas de buscar a sua proteção. Deve saber aplicar suas especificidades técnicas (ex. sua rigidez locacional), econômicas (ex. a criação das rendas minerais, principalmente ricardianas e hotellianas) e sua posição de base de todas as outras indústrias.

Tarefa relevante não só para o advogado, mas também para todo o Poder Judiciário. Talvez esse esforço nos leve, em algum momento, ao reconhecimento defendido por Georg há 5 cinco séculos: […] Essa é a natureza da profissão de minerador, na medida em que promove a riqueza por métodos bons e honestos […]. Com justiça, portanto, podemos classificá-la entre empregos honoráveis[9].

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[1] Uma passagem do Livro 1 é especialmente relevante e atual, ainda que escrita no século XVI: “Se removermos metais do serviço do homem, todos os métodos de proteção e manutenção da saúde e de preservação mais cuidadosa do curso da vida serão eliminados”.

[2] Pesquisa realizada até 15/04/20. Agradecimento especial ao Otávio Vilela, por sua ajuda na compilação dos dados e na geração dos gráficos.

[3] Ação Popular nº 5000216-95.2020.8.13.0175.

[4] Ação Civil Pública nº 0000168-88.2020.5.23.0081.

[5] Mandado de Segurança nº 5150492.05.2020.8.09.0029.

[6] Ação Trabalhista nº 0001196-10.2019.5.17.0141.

[7] Mandado de Segurança nº 5000860-12.2020.8.13.0216.

[8] Mandado de Segurança nº 0010221-21.2020.5.18.0000.

[9] Para a versão de De Re Metallica traduzida do latim para o inglês, segue o site: https://www.gutenberg.org/files/38015/38015-h/38015-h.htm

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