
A regulamentação da atividade de relações governamentais no Brasil é um pleito tão antigo quanto solitário da categoria, no esforço de balizar as melhores práticas na defesa de interesses junto ao processo legislativo. As primeiras tentativas ocorreram no final da década de 1980, poucos anos depois de o Congresso Nacional passar a autorizar a entrada de grupos de pressão em suas dependências. Mas todas as proposições — foram quatro — acabaram engavetadas nos últimos anos, por falta de prioridade, contexto ou de vontade política.
No final do ano passado, no entanto, a demanda ganhou o importante reforço do Poder Executivo, autor do PL 4391/21, que estabelece diretrizes para o que chama de “representação privada de interesses junto ao poder público” – o lobby. O objetivo do texto, segundo o governo, é tornar mais clara a relação entre os setores público e privado, possibilitando maior efetividade na repressão de “condutas reprováveis”. A regulamentação da atividade, diga-se de passagem, é uma recomendação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o Brasil pretende fazer parte muito em breve.
Nesse contexto, a onda de boa vontade contaminou também o Poder Legislativo. Em agosto passado, a Câmara dos Deputados aprovou a tramitação do texto em regime de urgência. Assim, ele será apreciado diretamente em plenário, sem passar por comissões. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), já demonstrou disposição em trabalhar pela aprovação da proposta e a expectativa é de que isso ocorra ainda neste ano.
Cabe dizer que, se aprovada, a regulamentação não atenderá apenas à vontade de um setor ou da OCDE. A sociedade também cobra mais transparência na prática do lobby. Pesquisa do DataSenado de 2021, em parceria com os Departamentos de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Pittsburgh, apontou que os brasileiros apoiam a regulamentação: das 3.000 pessoas maiores de 16 anos ouvidas, 71% acreditam que é preciso regular a prática exercida por grupos ou sindicatos para garantir maior nitidez no contato com segmentos sociais, empresas e organizações não governamentais (ONGs).
A criação de normativas claras ao exercício do lobby, portanto, visa garantir processos de convencimento mais transparentes e idôneos, mais facilmente auditáveis e dentro do que já garante a própria Constituição Federal no seu artigo 5º, que trata sobre o direito de petição. Além disso, deve funcionar como uma espécie de vacina reputacional à ocupação, diante da percepção geral de que a atividade se serve a todo momento de movimentos imorais e corruptos.
Já existem no Brasil leis esparsas que trazem ao ordenamento local a maioria dos tópicos regulados, por exemplo, pela legislação norte-americana. Estão na Lei da Empresa Limpa, Código Penal, Código de Conduta da Alta Administração e outras.
Além desses dispositivos pulverizados, coube ainda ao próprio setor o papel de se autorregular, por meio de códigos de ética e manuais de compliance.
Mas ainda há pontos a serem regulados. Nesse conjunto de circunstâncias, já somados os empenhos dos Poderes Legislativo e Executivo, importa muito que o Judiciário também se engaje no projeto. Afinal, é pela constante adoção de normas turvas que muitos casos de lobismo acabam excluídos dos limites da legislação existente, indo parar nos tribunais – quando não nas manchetes. E isso vale tanto para o setor público quanto para o privado.
Exemplo disso foi tema de recente matéria assinada pelo jornalista Matheus Leitão, em sua coluna na Veja. O texto trata sobre o caso de um advogado norte-americano que persegue no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o direito a receber uma comissão milionária do Porto de Navegantes, em Santa Catarina. Ele alega ter viabilizado um aporte no empreendimento, na época da sua construção, no início dos anos 2000.
A reportagem lista uma série de peculiaridades presentes no processo. Entre elas, o fato de o advogado ter atuado com visto de turista no Brasil – o que não é permitido –, e o da ausência nos autos de qualquer contrato de prestação de serviço entre as partes. O caso é baseado inteiramente em depoimentos. Ainda mais estranho é o tipo de compensação financeira requerida pelo advogado: em vez de um valor pelo serviço, como seria de se esperar em relações de trabalho desse tipo, ele pede corretagem imobiliária. Ou seja, equipara a suposta mediação a um contrato de venda de imóvel.
Um eventual reconhecimento do STJ ao direito de comissão desse advogado – ele já teve decisão favorável na Justiça do Paraná – representaria um retrocesso em tudo em que avançamos para garantir melhores práticas em Relações Institucionais e Governamentais, protegendo a reputação dos profissionais e contra a ideia de ilegalidade que permeia o imaginário da população. Ainda: deporia contra essa inédita onda de boa vontade compartilhada entre o setor, a sociedade, governo e Congresso pela aprovação de regras capazes de inibir os lobistas de ocasião e os mal-intencionados.
Não é ilegal intermediar contatos e negociações ou representar interesses de forma legítima a políticos, investidores ou executivos. O profissional de relações governamentais faz isso com conhecimento profundo do processo legislativo, do cenário político e munido de olhar consultivo. Mas é imoral que se faça isso à sombra da lei, ou que se aproveite dela para obter vantagens que só somam à ideia culturalmente construída de que o lobby é sempre predador. A regulamentação do lobby e o cumprimento das regras estabelecidas deve ser um compromisso de todos os Três Poderes em prol da transparência e da legalidade.