Pandemia

Levando a economia a sério: o problema do álcool em gel

O problema é consequência do controle de preços, promovido pelo governo sob as ameaças dos órgãos de proteção ao consumidor

Crédito: Pixabay

Em texto publicado no JOTA, três teses foram defendidas, quais sejam: a de que o consumo desenfreado do álcool em gel geraria um problema de tragédia dos comuns; a de que o teorema de Coase poderia ser aplicado de forma a se buscar soluções consensuais à escassez; a de que, além das medidas de controle de preço e de controle de vendas, as soluções consensuais deveriam ser implementadas – embora não haja indicações de quais soluções consensuais seriam essas.

O texto apresenta um mau entendimento dos conceitos econômicos utilizados, além de um problema clássico de cherry-picking econômico, típico de muitos textos jurídicos que se aventuram nessa temática: utiliza apenas a parte da teoria econômica que interessa para defender a proposta dos autores, deixando de lado partes muito mais fundamentais. Tentarei demonstrar esses equívocos e problemas, e propor soluções para o problema de escassez que estejam de acordo com o raciocínio econômico.

Primeiramente, é preciso compreender em que condições surge um problema de tragédia dos comuns. Uma das condições necessárias é a presença de um recurso comum, que, por definição, é bem não-excludente e rival: não-excludente significa que eu não posso impedir que outra pessoa utilize esse bem, e rival significa que o fato de uma pessoa utilizar esse bem dificulta ou impede utilização do mesmo bem por outra pessoa.

Um exemplo de recurso comum seriam os peixes de um lago sem dono: eu não posso impedir que outras pessoas pesquem neste lago, porém cada peixe que eu pego é um peixe a menos que outras pessoas podem pegar. A consequência dessa situação é que os custos sociais marginais de cada peixe pescado não são completamente interiorizados pelos agentes econômicos, e, por isso, existe uma tendência de sobreutilização do recurso até que ele se esgote.

No texto citado, os autores defendem que o recurso comum em questão é a saúde pública: o consumo desenfreado de álcool em gel causaria uma externalidade negativa sobre a saúde de todos, na medida em que várias pessoas não teriam acesso ao produto e, assim, maior chance de se contaminarem e de transmitir o vírus – até para aquelas que possuem o produto.

Trata-se de uma grande forçação de barra: a saúde pública está muito mais próxima de um bem público do que de um recurso comum, afinal, não é um bem rival, já que ter uma boa saúde não afeta negativamente a saúde dos outros. Com efeito, trata-se de um bem não-rival e não-excludente, como a segurança nacional, iluminação pública, conhecimento, etc.

No caso de bens públicos, todos os agentes econômicos consomem forçosamente a mesma quantidade desse bem, de modo que a externalidade negativa do consumo de álcool em gel já é considerada pelo consumidor. Afinal, este sabe que seu consumo afetará o nível de saúde pública que todos terão que “consumir”, inclusive ele próprio. Eventuais ineficiências podem surgir devido a preferências distintas e assimetria de informações, mas trata-se de um problema distinto de falha de mercado.

Na verdade, o problema de escassez do álcool em gel é um problema muito mais conhecido e fundamental em economia: é consequência direta do controle de preços, promovido pelo governo sob as ameaças dos órgãos de proteção ao consumidor[1].

Todo preço reflete os custos de oportunidade de um bem, que, grosseiramente falando, é tudo aquilo do qual se está abrindo mão para consumi-lo. Se há uma mudança brusca nas preferências individuais e as pessoas passam a demandar mais álcool em gel, é natural que o preço aumente em um primeiro momento, já que houve um aumento da escassez relativa desse produto, e, portanto, dos custos de oportunidade do seu consumo.

A elevação dos preços tem dois efeitos positivos: primeiro, faz com que cada consumidor interiorize corretamente o custo social de se consumir uma unidade adicional de álcool em gel. Se os preços estão congelados, o custo enfrentado pelo indivíduo é menor do que o custo social, fazendo com que ele consuma mais do que a quantidade socialmente ótima[2].  O resultado são as prateleiras vazias: alguns com muitas unidades, outros com nada. Houvesse livre aumento do preço, o consumidor pensaria duas vezes antes de comprar uma unidade adicional, e haveria mais álcool em gel disponível já no curto prazo.

Segundo, o aumento do preço gera incentivos ao aumento da produção. Imagine que o produtor vende o seu produto a $5, e tem uma margem de lucro de $1. Se de repente o preço da unidade sobe para $20, sua margem de lucro sobe para $16. Não só ele terá interesse em aumentar a produção e conseguir um volume maior de lucro, como outros produtores entrarão no mercado, de olho no lucro exorbitante.

Contudo, se o preço estiver congelado em $5, o produtor não conseguirá aumentar sua produção, pois para isso teria que incorrer em um custo com novas máquinas e novos empregados, que não são cobertos com o lucro marginal de $1. Tampouco outros produtores vão querer se arriscar no mercado de produção desse bem. A produção continua abaixo da demanda e a escassez persiste.

Frequentemente usa-se como argumento contra o aumento de preços o fato de que os pobres seriam excluídos de comprar o produto. Em relação a esse argumento, cabe a pergunta: com prateleiras vazias, algum pobre conseguirá comprar? O aumento dos preços e o consequente incentivo à produção faz com que mais quantidades do produto sejam ofertadas, o que por sua vez diminui o preço do produto no longo prazo, igualando-o a um valor próximo dos custos de produção – quando isto ocorre, temos um novo equilíbrio de mercado. Isso demora tempo, é claro, mas voltaremos a esse tópico.

Ainda nesta esteira, as pessoas que acabaram com os estoques são pessoas que tiveram informação antecipada sobre a seriedade da  e as formas de prevenção, e que tiveram a capacidade de antecipar o consumo de álcool em gel de diversos meses em um dia – ambas características que indicam que essas pessoas são mais ricas do que a média. O congelamento de preços, portanto, também não beneficia os mais pobres – nem no curto prazo nem no longo, já que a escassez permanecerá.

O texto em questão ainda utiliza um outro conceito econômico de forma errada: o teorema de Coase. Os autores utilizam esse teorema para propor que, além do controle de preços, os consumidores deveriam, em comum acordo, decidir regras sobre como esses bens deveriam ser alocados – apesar de não haver nenhuma sugestão clara neste sentido no texto. Contudo, o teorema de Coase é, na verdade, uma coisa completamente distinta. Basicamente, o que o teorema de Coase diz é: se os direitos de propriedade forem bem definidos, e os custos de transação forem pequenos, os agentes econômicos entrarão em acordo que resultará em uma alocação de bens pareto-eficiente[3].

Perceba a ênfase em direitos de propriedade bem definidos. A lição que tiramos do teorema de Coase é que muitos dos problemas de falha de mercado seriam resolvidos com a definição dos direitos de propriedade. Por exemplo, voltando ao nosso exemplo do lago de peixes, se este lago fosse propriedade de alguém, esta pessoa incorreria nos custos de ver seu recuso ser sobreutilizado, e tomaria medidas para evitar que pessoas sem permissão usassem o seu bem. Ao conceder permissão de usufruto sobre a lagoa, o dono colocaria no preço dessa permissão os custos de oportunidade da captura dos peixes. E o resultado seria pareto-eficiente.

O problema é que, no caso do álcool em gel e da saúde, não temos um problema de definição de direitos de propriedade, pelo menos não da forma entendida pelos autores. Todos sabem quem é o dono de um frasco de álcool em gel, e todos têm direito à saúde. Aplicar o teorema de Coase aqui seria permitir que uma pessoa vendesse o seu direito à saúde para a outra – algo vedado pelo nosso ordenamento jurídico –  de modo que quem comprasse mais direitos à saúde poderia consumir uma quantidade maior de álcool em gel[4].

Ou ainda, o que é equivalente, que quem comprasse álcool em gel indenizasse quem não comprou pelos danos causados à saúde. Só que os custos de transação para organizar esse tipo de mercado são gigantes, e por isso o teorema de Coase não se aplica! Ao contrário do que foi dito no texto, um baixo custo de transação não é consequência da aplicação do teorema de Coase, e sim condição necessária para sua aplicação. Essa ideia, portanto, não só é inviável jurídica e economicamente, como certamente não é o que os autores defendem, o que mostra uma falta de compreensão do significado do teorema.

Por fim, não quero ser o rabugento que perdeu horas escrevendo um texto criticando alguém sem propor nada melhor. Além de ser rabugento, quero fazer sugestões também. Vimos que o mercado volta ao equilíbrio no longo prazo, com a quantidade ofertada igual à demandada e com preços muito próximos dos custos de produção[5].

Isso é o que todos querem, mas há um porém: tempo. Enquanto a epidemia cresce exponencialmente, aumentar a produção de um bem é algo custoso e moroso, que envolve compra de maquinário, contratação de empregados e obtenção de licenças do governo. E aqui o Estado pode ter um papel fundamental: lubrificar as trocas de modo a permitir que o mercado chegue mais rápido a esse equilíbrio. Isso pode ser feito por algumas medidas:

1 – Corte dos impostos sobre o álcool em gel. O corte de impostos faz com que o produtor possa se apropriar do valor do imposto na forma de lucro sem que esse valor se reflita nos preços, aumentando os incentivos para a produção sem piorar a situação do consumidor. Isso já está sendo aplicado em diversos estados.

2 – Criação de uma linha especial de crédito para que produtores de álcool em gel possam se expandir e mais produtores possam entrar no mercado. Assim, os agentes interessados em produzir álcool em gel já terão condições de aumentar a capacidade de produção mesmo antes das vendas se realizarem, em antecipação aos lucros que obterão.

3 – Possibilitação de um contrato de trabalho temporário para essa indústria. Muitos produtores podem ter medo de expandir suas operações com medo de a demanda voltar aos níveis anteriores, e terem que incorrer em obrigações assumidas quando a demanda estava alta. O maquinário (capital) é algo fácil de resolver: basta revender ou alugar. Os contratos de trabalho, porém, tendem a ser mais rígidos. Flexibilizar os contratos de trabalho para essas empresas específicas torna o risco muito menor para o produtor.

4 – Diminuição da burocracia. Uma fábrica de álcool em gel precisa de determinadas permissões e licenças do poder público para funcionar, até mesmo pelo caráter inflamável do produto. Há de se perguntar, contudo, se em tempos de calamidade pública todas as licenças são realmente necessárias, e se não há como priorizar essa indústria.

Todas essa sugestões têm suas dificuldades, mas estão em linha com o raciocínio econômico. O que não faz sentido é tentar utilizar a linguagem microeconômica de forma equivocada, invocando-se, sem conhecimento, conceitos mais avançados como o teorema de Coase e deixando de lado algo tão simples e fundamental: a lei da demanda.

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[1]Tente jogar no google “Procon álcool em gel”.

[2]Note que isso nada tem a ver com tragédia dos comuns. O que narramos é uma mera competição por um bem privado (bens rivais e excludentes), e não um recurso comum.

[3]Eficência de pareto quer dizer, grosseiramente, que não há como melhorar um agente sem piorar o outro.

[4]Sei que esse tipo de raciocínio soa mal aos ouvidos de estudantes de Direito, mas é exatamente desse tipo de troca que trata o teorema de Coase. É um raciocínio econômico, de eficiência, e não de justiça ou legalidade.

[5]Supondo que há concorrência perfeita, o que não é nada irrealista. Você se preocupa se o seu álcool em gel é da marca X ou Y? A renda de monopólio das farmácias, ligada ao ponto de venda, também seria afetada negativamente pela maior disposição dos consumidores em procurar um bem tão desejado.