Arbitragem

Lei de Arbitragem como marco para o ecossistema de solução de disputas no Brasil

Se aprovado, PL 3293/2021 iria atingir princípios basilares do instituto

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1. Breve histórico

No último dia 23 de setembro a Lei de Arbitragem brasileira, Lei 9.307, de 1996, completou 26 anos de promulgação. Uma trajetória de luta desde seu surgimento e que, como não poderia ser diferente, continua devido ao PL 3293/2021, que pretende, sem qualquer justificativa, atingir pilares fundamentais do instituto, como explicaremos em seguida através de breve digressão histórica do instituto em nosso país e do florescimento do ecossistema do tribunal multiportas que teve como embrião justamente o diploma legal sob comento.

A utilização da arbitragem no Brasil é de origem portuguesa. O sistema jurídico medieval português reconhecia a arbitragem como forma alternativa de solução de conflitos e encontrava previsão nas Ordenações Affonsinas, pelas Ordenações Manuelinas e Ordenações Filipinas (esta última foi o principal diploma legal relativo ao Direito Comercial no Brasil até a promulgação do Código Comercial de 1850).

A Constituição de 1824 trouxe em seu bojo autorização expressa para adoção da arbitragem em seu art. 160. O instituto não foi previsto na Constituição de 1895, voltando a lume em 1934 que dava competência à União para legislar sobre a arbitragem comercial em seu art. 5, XIX, alínea C. Também não houve previsão nas Constituições de 1937, 1946 e 1967. Voltou apenas a ter previsão constitucional em nossa atual Carta Magna de 1988. A Constituição Federal de 1988 já homenageia o instituto em seu preâmbulo ao tratar expressamente da solução pacífica das controvérsias, ou seja, torna a solução pacífica das controvérsias princípio fundamental da República Federativa do Brasil.

Na legislação esparsa, a arbitragem encontrou previsão no Código Comercial de 1850, que previa arbitragem compulsória para dirimir determinadas disputas, tais como aquelas entre sócios de sociedades comerciais.

Os códigos de processo civil de 1939 (art. 1.031 a 1.046) e 1973 (arts. 1.072 ao 1.102) também regeram o procedimento arbitral.

A Lei de Arbitragem (Lei Marco Maciel) foi proposta pelo senador Marco Maciel em 17 de setembro de 1993 (PL 4018/1993), sendo promulgada em 23 de setembro de 1996 e entrando em vigor em novembro daquele ano (60 dias após a data da publicação). Acima de tudo a Lei de Arbitragem prestigiou a autonomia da vontade privada, privilegiando a convenção arbitral e concedendo a sentença arbitral, naquele momento ainda com nomenclatura de laudo arbitral, a mesma eficácia da sentença judicial (art. 18 da LArb).

Nossa lei possui inspiração na Lei Modelo de Arbitragem da Uncitral de 1985 (adotada totalmente ou parcialmente em 85 países e 118 jurisdições) com tintas da lei de arbitragem espanhola (Ley 36/1988).

2. Timeline doutrinário da Lei de Arbitragem

Com a semente da Lei 9.307/1996, o ecossistema se desenvolveu, com desafios e avanços paulatinos até atingir maturidade e conseguir sua principal conquista: a confiança do empresariado nacional e da administração pública após sua alteração pela Lei 13.129/2015.

Aos três anos de vigência, Carlos Alberto Carmona[1] asseverou a multiplicação das instituições arbitrais, bem como a modernização e adequação ao novo diploma legal das câmaras já existentes (CAM-CCBC e Arbitac, por exemplo). Naquele momento, Carmona ressaltou que já havia a percepção que a arbitragem não era concorrente do processo estatal e apenas mais uma porta dentro do conceito de tribunal multiportas.

Aos quatro anos de vigência da lei, Pedro Antônio Batista Martins[2] ressaltava a importância da autonomia da vontade na escolha da arbitragem para deslinde de disputas de direitos patrimoniais disponíveis, demonstrando de forma clara a união entre os valores da liberdade e os conceitos de Estado soberano. O autor também ressalta a importância da cooperação do Judiciário como requisito fundamental para o sucesso da arbitragem. A liberdade, nos termos o primeiro subtítulo do escrito, seria o temor da contracultura arbitral.

Nos anos seguintes a Lei de Arbitragem obteve duas grandes conquistas: em 2001, por 7 votos a 4, no recurso em processo de homologação de sentença estrangeira (SE 5.206), o STF considerou a lei constitucional dando segurança jurídica para a utilização do instituto. Na sequência, em julho de 2002, é promulgado o Decreto nº 4.311/ 2002 que internaliza a Convenção para Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (Convenção de NY de 1958 — tratado multilateral de maior sucesso da história da humanidade com 170 partes). Tais medidas deram maior segurança para o desenvolvimento do instituto domesticamente, bem como trouxeram confiança ao Brasil na seara internacional que era, finalmente, alçado a categoria de “arbitration friendly jurisdiction”.

Com oito anos de vigência da lei, Selma Lemes[3] afirmou serem quatro os pilares essenciais da arbitragem: a segurança jurídica, a difusão cultural, a conscientização dos advogados e a manutenção de regras flexíveis. Concluiu afirmando que a lei só poderia ser útil ao país se interpretada e operacionalizada de acordo com os critérios e princípios que justificam sua existência.

Em 2004, a EC 45 deslocou a competência de homologação de sentenças estrangeiras (estatais e arbitrais) para o STJ. O Superior Tribunal de Justiça, desde aquele momento, já demonstrou proteger a arbitragem como instituto e se tornou essencial para a solidificação do instituto no Brasil.

Aos 10 anos de vigência, Theophilo Santos[4] enfatizou o importante papel das instituições arbitrais idôneas em face de entidades criadas à margem da lei como, por exemplo, a Comissão de Arbitragem da OAB-RJ responsável pelo fechamento de 30 dessas organizações à época. O autor também previa a importância da arbitragem para vários setores tais como o setor de infraestrutura (PPPs), setor energético, telefonia, seguros, marítimo entre outros. Em suma, o autor reconhecia a qualidade da Lei de Arbitragem em seu decênio e já naquele momento requeria a inclusão da disciplina de arbitragem nos curricula universitários (o que só viria acontecer com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de bacharelado em Direito de 2018 — Resolução nº 5 de 17 de dezembro de 2018 MEC/CNE/CES).

Aos 13 anos de vigência, Arnold Wald Filho[5] afirmava que, devido à Lei de Arbitragem, o Brasil havia obtido progresso que, em outros países, havia demorado um século, uma vez que arbitragem era liberdade, criatividade, eficiência, a construção da paz entre as partes e a rapidez das soluções dialogadas.

Em 2015, a Lei de Arbitragem passou por relevantes modificações por meio da Lei 13.129/2015, a partir de proposta elaborada por Comissão de Juristas coordenada pelo ministro do STJ Luís Felipe Salomão. A proposta foi debatida de forma ampla com a sociedade e no âmbito do Congresso Nacional, e as alterações culminaram no fortalecimento da arbitragem, com a previsão expressa, por exemplo, da possibilidade da utilização da arbitragem por entes da administração pública direta e indireta através da inclusão do §1º no artigo 1º da lei.

Hoje, o Brasil é reconhecido internacionalmente como incentivador das soluções alternativas de conflito, fruto da divulgação da cultura do tribunal multiportas e do desenvolvimento do ecossistema por instituições arbitrais idôneas, imparciais e independentes (vide lista das melhores câmaras nacionais na Leaders League), profissionais qualificados, produção científica constante, seminários e congressos corriqueiros, e um Poder Judiciário cooperativo, em regra, e que defende os princípios fundamentais (ex: autonomia da vontade e competência-competência) da Lei de Arbitragem.

3. O aniversário de 26 anos da lei e o PL 3293/2021

A crise dos 40 chegou para a Lei de Arbitragem com antecedência. Na verdade, os “haters” do modelo sempre existiram. A comunidade arbitral reconhece que o instituto deve estar em constante evolução assim como todo ecossistema. No entanto, a evolução deve ser sempre marcada por discussões profundas, uma vez que um movimento equivocado pode gerar um xeque-mate ao instituto.

Tal movimento equivocado é incorporado pelo PL 3293/2021, apresentado pela deputada federal Margarete Coelho. Em breves linhas, o projeto propõe que sejam feitas modificações nos artigos 13, 14 e 33 da Lei de Arbitragem, relacionadas principalmente a limitações para atuação como árbitro, ao dever de revelação e seus parâmetros e a inserção dos artigos 5ª-A e 5º-B, que mitigam a confidencialidade dos procedimentos arbitrais. Em sua justificação, a deputada Margarete Coelho afirma que o “Projeto de Lei visa, pois, aprimorar a Lei de Arbitragem, com o objetivo de prover limites objetivos à atuação do árbitro e otimizar o dever de revelação às Partes”. Na realidade, aconteceria exatamente o contrário.

Por tudo que demonstramos em nossa breve timeline legislativa, a Lei de Arbitragem é um diploma legal que se desenvolveu e atingiu a maturidade em seu devido tempo. Aos 26 anos, precisa-se de diálogo e convencimento e não de mero castigo. Assim como o napalm, muito utilizado na Guerra do Vietnã, se aprovado, o PL iria atingir princípios basilares da arbitragem (autonomia das partes, liberdade profissional do árbitro, confidencialidade) e, com isso, iria desoxigenar o ambiente no seu entorno e asfixiando o instituto.

Hoje colecionamos as principais razões que tornam um local mais atrativo para se tornar sede de arbitragens nos termos da pesquisa do White & Case com a Queen Mary University of London de 2021:

  • maior apoio à arbitragem pelo Judiciário local;
  • majoração da neutralidade e imparcialidade do sistema jurídico local;
  • melhor histórico na execução de convenções arbitrais e sentenças arbitrais pelo Judiciário.

O Poder Judiciário brasileiro, liderado pelo STJ, vem há anos referendando a arbitragem como instituto através do respeito e aplicação de seus princípios fundamentais, tais como: 1) respeito à jurisdição arbitral (princípio da competência-competência); 2) observância estrita da autonomia da vontade; 3) referendo da autonomia da convenção arbitral; 4) respeito à confidencialidade do procedimento; 5) anulando sentenças arbitrais parcial ou integralmente dentro do rol taxativo do art. 32 da Lei de Arbitragem e somente em casos de erros in procedendo patentes; 6) avaliando com cautela questionamentos de parcialidade dos árbitros em ações anulatórias e desenvolvendo jurisprudencialmente o conceito de dúvida justificada.

Sem dúvida, devido ao dinamismo social, nenhum diploma legislativo deve permanecer estático. No entanto, uma modificação em instituto que se encontra em consonância com as melhores práticas deve ser realizada com cautela e com a utilização do espaço público para pleno debate. Ou seja, qualquer alteração na Lei de Arbitragem nacional deve ser realizada de forma intersubjetiva sob o filtro da razão pública e não da razão individual desmotivada.


[1] CARMONA, Carlos Alberto. A Arbitragem no Brasil no terceiro ano de vigência da Lei 9.307/96. Revista de Processo, vol. 99, 2000, pp. 85-98.

[2] MARTINS, Pedro Antônio Batista. O Poder Judiciário e a Arbitragem. Quatro Anos da Lei 9.307/96 (1ª Parte). Revista Brasileira de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 9, 2000, pp. 315-336.

[3] LEMES, Selma Maria Ferreira. O Cenário Atual da Arbitragem no Brasil – oito anos da Lei de Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 3, 2004, pp. 129-137.

[4] SANTOS, Theophilo de Azeredo. Dez Anos da Lei de Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 12, 2007, pp. 18-21.

[5] MACIEL, Marco. Treze Anos da Lei de Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 23, 2009, pp. 9-18.