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Kamchatkas: memórias de um ‘gabinete de crise’

Nesses dias correntes cheios de espinhos quiçá seja bom lembrar que na justiça eleitoral havia uma Rosa no caminho

Divulgação TSE

O resgate da memória é essencial para olhares e sentidos do interrogante presente. Por isso, acedi prontamente ao convite da Ministra Rosa Weber para deixar por escrito lembranças enraizadas no pretérito eleitoral recente: bem o fez a Presidente em buscar o registro desse tempo, pois hoje, mais que sempre, é fundamental (não apenas no campo das eleições periódicas como também na seara da democracia) lutar contra o esquecimento, as formas de borrar os vestígios do passado, e o descaso dos discursos e das práticas tributárias da barbárie, do engodo e das representações políticas salvacionistas.

Escrevo esse texto em tempos de isolamento social e distanciamento involuntário no tempo da pandemia que está a afligir o País e os sete cantos do mundo. A pedagogia do exemplo é a maior amostra educativa de fazer o que é correto. À crise dos gabinetes de hoje quero contrapor uma memorabilia de um gabinete de crise, sem colapsar às tensões, porquanto despido de convulsão, anomia deficiência do espírito público.

No curso do período eleitoral de 2018, em momentos que precederam as eleições, bem como durante o lapso entre primeiro e segundo turno, e ainda em eventos logo após ao pleito, integrei, a convite da Presidente Ministra Rosa Weber, um colegiado interinstitucional em reuniões constantes e de modo contínuo, sob a coordenação da Presidência do TSE.

Tratou-se, visivelmente, de uma demonstração da gestão da Ministra Rosa Weber que se pôde haurir da experiência que foi cognominada de “gabinete de crise” durante as eleições pretéritas. Difícil era a situação ali vivenciada pois no páreo estavam mentes ordenadas pela diluição dos partidos, da justiça eleitoral e da própria democracia. Resistir foi preciso dentro do TSE e dali para todo o País.

As sucessivas reuniões expressaram um diálogo construtivo e permanente entre a Justiça Eleitoral e setores representativos dos demais Poderes, de entidades relevantes da sociedade, como a Ordem dos Advogados do Brasil, e de autoridades que, sem predisposição histórica para resistir aos ataques à democracia, restaram por comungar como partícipes e mesmo testemunhas. Guardo em mim o zelo e o compromisso que marcaram interlocuções abertas, plurais e republicanas, especialmente para assegurar lisura e legitimidade ao procedimento eleitoral. Desse colegiado temporário adveio a percepção de que o Brasil pode alcançar resultados profícuos quando pessoas e instituições se congregam para a preservação do Estado de Direito democrático e de seus respectivos instrumentos, aí situadas, inequivocamente, a alternância no poder governamental e as eleições periódicas.

Em um ambiente de invariável ataque à condução do processo eleitoral, a partir de uma rede organizada de disseminação de desinformação (que parece não ter fim), com o nítido propósito de erodir a legitimidade do pleito, a reação do TSE foi a de não se ensimesmar. Ao contrário, abriu suas portas e convidou setores estratégicos de informação e ação, tanto no setor público quanto privado, para juntos (e orientados pela defesa da democracia) conferir à sociedade um ambiente saudável e confiável, em momento tão sensível.

A ocasião exigia flexibilidade e rapidez, de modo que as reuniões eram orientadas e organizadas no ritmo das necessidades urgentes.

Não houve ato formal de criação e os nomes de seus membros muito eram. Lembro-me de presenças frequentes, além, por óbvio, da dirigente (e diligente) da Corte, Ministra Rosa Weber. Todos os seus ministros integrantes acudiram ao chamado: Luís Roberto Barroso, Jorge Mussi, Og Fernandes, Admar Gonzaga, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, Carlos Horbach e Sergio Banhos. Eu estive presente quase em todas as reuniões. Servidores de áreas afins e estratégias da Casa também tomaram parte nas discussões, como a Secretaria de Tecnologia da Informação (STI), a Assessoria de Gestão Eleitoral (AGEL), a destacada e importante Assessoria de Comunicação (ASCOM) e o Assessor Especial da Presidência, Rogério Galloro.

De minha memória, mesmo correndo o grave risco de olvidar outras importantes participações, permito-me fazer referência ao ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Sérgio Etchegoyen, ao ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, à procuradora-geral da República Raquel Dodge, à advogada-geral da União Grace Mendonça, ao presidente da OAB Claudio Lamachia e aos representantes das plataformas de mídia social Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Google.

Ainda que o motor principal das reuniões tenha sido a intensa e injusta propagação de notícias falsas sobre o processo eleitoral, especialmente em relação ao modo de votação e apuração das eleições, por meio das urnas eletrônicas, a atenção se voltou para a garantia da lisura do pleito como um todo.

Do que recordo e depreendo, tributário do muito que ali se discutiu, dentre várias medidas, o TSE aparelhou seu sítio na internet, de modo a permitir a unificação de notícias e esclarecimentos institucionais sobre eventuais desinformações e também obrou junto ao Centro Integrado de Comando e Controle Nacional (CICCN), com a presença de técnicos do TSE auxiliando na identificação e atuação diante de ilícitos potencialmente nocivos às eleições. Creio que também se pode mencionar a estrutura equivalente que foi criada para monitorar, em tempo real, as ocorrências relativas às eleições, com o objetivo de dar respostas rápidas e, por consequência, eficientes, em um mundo em que a mentira do dia é ofuscada e suplantada pela mentira da noite que o sucede. O chamado Centro Integrado de Comando e Controle das Eleições (CICC) reproduz, de forma singularizada para a arena eleitoral, a ideia de esforço concentrado, coordenado e cooperativo do CICCN, reunindo representantes de quatorze instituições e órgãos parceiros, com o propósito comum de reduzir o tempo de resposta para casos urgentes, relacionados a ilícitos eleitorais.

Via de acesso privilegiado para a desinformação, especialmente pela facilidade de disseminação e por operar em larga escala, as plataformas de aplicativo Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp e Google se apresentaram no combate às fraudadas notícias ou informações. De igual modo, empresas de checagem de notícias mantiveram parceria estreita com o TSE, reforçando o compromisso público de oferecer ao cidadão um maior acesso à verdade dos fatos. Os desafios que a nova ágora impõe são proporcionais aos enigmas que se acaçapam em suas tecnologias e seus algoritmos, mas a Justiça Eleitoral não pode desconsiderar seus impactos que, se até então, não eram totalmente conhecidos, são de há muito, ao menos, cognoscíveis.

Tenha-se presente: checagem e denúncia de notícias falsas jamais podem dar margem à censura: no limite, melhor informação ruim do que a ditadura do silêncio.

Tudo isso está a revelar que, mesmo se tratando de um “gabinete de crise”, a instabilidade não conseguiu vaga no TSE. A Ministra Rosa compôs um gabinete sem crise, souber ouvir, haurir e agir. A gestão compartilhada de temas e problemas eleitorais graves permitiu seu enfrentamento a partir de visões plurais que, pela diferença, se somaram. À Justiça Eleitoral, como garante da democracia, não basta tomar medidas corretas, pois dela se exige, juntamente com a adequação, a transparência reveladora de sua impessoalidade.

Com isso, o TSE se alinha às diretrizes contidas no Código de Conduta para uma Administração Eleitoral Ética e Profissional, elaborado pelo International IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance, organização intergovernamental, do qual o Brasil é membro, cujo objetivo é promover o aperfeiçoamento e a consolidação dos processos eleitorais democráticos em todo o mundo, que conta, desde 2003, com o status de “observador”, concedido pela Assembleia Geral da ONU. O documento ressalta que a legitimidade e a aceitação geral de uma eleição dependem de muitos fatores, dentre eles a integridade de sua administração que deve estar assentada em cinco princípios: a) respeito à lei; b) independência e neutralidade; c) transparência; d) minuciosidade; e) orientação de serviço ao público.

Tenho a convicção que o TSE cumpre, com folga, esses parâmetros, o que se reflete no alto grau de confiabilidade no processo eleitoral no Brasil. Assim, ultrapassando as recomendações de transparência, consistentes em permitir às partes interessadas acesso às informações, documentos e bases de dados essenciais, utilizados no processo eleitoral, o TSE fomentou o compartilhamento de ideias e ações, em forma de parceria, de modo a subsidiá-lo na tomada de decisões. Aliou à legitimidade do procedimento a pluralidade das partes que o compõem, mediante abertura de diálogo direto entre instituições plurais em prol de interesses republicanos.

Já foi salientado por muitos que a democracia, mais do que um regime de acordos, é uma forma de permitir a convivência em condições de profundo e persistente desacordo. Além disso, a democracia é um sistema político que gera decepção. A democracia, em síntese, é o espaço da crítica, da vigilância, da queixa, e precisamente por isso também da decepção.

Se ela reúne tantas imperfeições, seria de se perguntar por que ainda a desejamos e a protegemos. E a resposta não é tão difícil, pois a democracia é o único regime que assegura voz e oportunidade para todos. Em um mundo sem política democrática, a grande questão é saber quem irá escolher por nós. Se ela produz decepções é porque a vida nunca será capaz de satisfazer todas as nossas ilimitadas necessidades. Se as decisões não são impecáveis é porque não conseguimos nos livrar de nossa condição humana. Dissenso, respeito e tolerância são pilares da democracia; inaceitável é aquilo ou é quem queira acabar com a democracia, os diluidores institucionais que se mantém de plantão nesse presente abismal.

A iniciativa do TSE, mesmo ciente desses desacordos, evidencia a existência de uma vontade comum de preservar as condições para a experiência pacífica do dissenso, fim último de um regime democrático. Se o período eleitoral é marcado, em essência, pela coexistência de forças que se tensionam, é louvável a disposição de encontrar soluções no seio da diversidade, considerando olhares que lhe são estranhos.

Ressalto, por fim, que a aproximação de um novo pleito, com a excessiva atomização das disputas por todo País, típica das eleições municipais, amplia a necessidade desse esforço conjunto de toda sociedade na defesa da democracia. O controle do ilícito eleitoral em uma eleição que envolve mais de 5.500 municípios é uma tarefa que só se torna viável pelo somatório de um conjunto de forças. À imensa quantidade alia-se a extrema desigualdade socioeconômica e política dos municípios, o que impede a formulação de estratégias homogêneas pelo órgão central.

Nesse panorama, a necessidade de parcerias potencializa-se e reafirma o acerto da criação de um gabinete que, a despeito de sua denominação, permitiu a condução do processo eleitoral de forma serena. Se na crise é que atuam as forças criativas, pode-se afirmar que o engenho humano de sua presidente deu nascimento a uma nova forma de relacionamento do TSE com a sociedade. A crise ficou no passado, entretanto, a experiência espargiu sementes e deu frutos.

Deplorável que no momento em que coloco no papel essa pequena coleção de fatos mais que dignos de lembrança, o apropriado exemplo de diálogo, respeito e serenidade sejam remédios em falta para combater a doença das mentes autoritárias, do desrespeito e intemperança.

Lições não podem ser esquecidas. Num filme sobre o período que assolou e estraçalhou a argentina, pai e filho, no entorno da família, da resistência, da violência do autoritarismo do Estado e seus cúmplices, e das contradições da sociedade, aprendem no lúdico possível o sentido simbólico imenso da palavra “Kamchatka”, no jogo TEG (WAR como se usa aqui e alhures); o nome de uma península no extremo oriente se torna um lugar na estrutura de sentidos. Nunca desistir, sempre resistir à desesperança, mesmo nas mais ferrenhas dificuldades. A democracia e a memória do passado, que não pode ser esquecido nem ser por isso mesmo duplamente vitimado, reconhecem esse modo de ser.

A indesejável hostilidade humana converte, na solidária tenacidade, ambientes de vivência, como aquele retratado na narrativa do filme a que me referi, lugares de resiliência. Assim é (e deve ser) no trabalho e em nossas casas.

Na experiência do TSE, guardadas todas as diferenças de contexto e gravidade, e de tempo e espaço, relembramos esse significado dentro de uma instituição a serviço da justiça, da sociedade plural e aberta, e da democracia.

Nesses dias correntes cheios de espinhos quiçá seja bom lembrar que na justiça eleitoral havia uma Rosa no caminho.

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