Ivar A. Hartmann
Professor e Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Público pela PUC-RS. LL.M pela Harvard Law School. Ex-coordenador do projeto Supremo em Números.
A resposta parece ser negativa. E uma das razões é a ineficiência de alguns magistrados, inclusive no Supremo Tribunal Federal, na sua tarefa de produzir precedentes claros, informativos e operacionalizáveis, que orientem a sociedade e inclusive os próprios juristas. Sem esses precedentes, não há como saber quais efetivamente são os limites ao direito de manifestação e liberdade de imprensa impostos pela honra e privacidade, especialmente em processos cíveis.
Nossa principal motivação é contribuir com estudos empíricos que avaliem a performance do Judiciário nessa função. Os pesquisadores devem isso à sociedade civil. Não basta, no entanto, que juristas pincem decisões judiciais isoladas, escolhidas exatamente porque confirmam sua interpretação prévia sobre a liberdade de expressão, construindo ensaios nos quais defendem uma tese como quem defende um cliente. Prática jurídica e academia não são a mesma coisa.
Ao produzirem petições, juristas inevitavelmente agem com grande grau de deferência aos magistrados. Essa deferência não é um elemento necessário da pesquisa quantitativa, com rigor estatístico, sobre o papel do Judiciário ao definir o direito brasileiro sobre liberdade de manifestação. Se objetivo é contribuir para produzir esse retrato descritivo, então a obrigação dos juristas é de deferência ao método empírico.
Compilamos aqui alguns de nossos trabalhos empíricos recentes. Seus resultados, quando analisados em conjunto, parecem permitir uma resposta possível para a pergunta título desse texto. Revelam uma realidade largamente ignorada com três elementos relevantes sobre a maneira como nosso Judiciário lida com a liberdade de expressão.
Primeiro, a grande aposta do constitucionalismo brasileiro na decisão caso a caso dos conflitos envolvendo liberdade de expressão parece ter falhado no Brasil. Experimentos apontam que essa solução, normalmente chamada de "ponderação", não permite resultados previsíveis e coerentes ao longo do tempo.
O primeiro estudo, intitulado “Liberdade de Expressão e Direito à Honra: Medindo Atitudes e Prevendo Decisões”, apresenta os resultados de experimentos realizados pelo Grupo de Pesquisa sobre Liberdade de Expressão (PLEB) da PUC-Rio. Os participantes – ligados ao Direito ou não – eram instados a decidir casos concretos envolvendo manifestação e honra.
O direito deveria ser igual para todos, mas os participantes decidiram os mesmos casos de maneira muito diversa. Em muitos experimentos, os resultados eram semelhantes entre o grupo de participantes da área do Direito e o grupo de participantes de fora do campo jurídico. Isso sugere ao menos duas coisas igualmente preocupantes: que o conhecimento jurídico sobre a matéria talvez seja indiferente e que o julgamento é ainda mais subjetivo do que se imagina.
Além de decidirem os casos apresentados, os participantes eram instruídos a responder se concordavam ou discordavam com algumas afirmações como “defender a honra dos cidadãos é um dos mais importantes deveres de um Estado de direito” ou “a liberdade de expressão tem uma posição preferencial face ao direito à honra”. As posições prévias dos participantes sobre esses direitos permitiam prever como eles decidiriam, mesmo no caso dos juristas.
Isso ocorre porque os participantes do experimento decidiam casos com ajuda de dispositivos constitucionais vagos, que protegem tanto a liberdade de expressão como o direito à honra.
Na ausência de regras, o experimento mostrou que as decisões são fortemente influenciadas pelas convicções individuais do julgador.
Outra conclusão apontada em estudos jurídicos é a grande concentração de sentenças de primeira instância que não jogam qualquer luz sobre a definição dos limites da liberdade de expressão e contribuem para mais incerteza quanto a tais limites ao inclusive rejeitar escolhas do Legislativo.
O estudo “A Liberdade de Expressão na Primeira Instância do TJRJ” analisou uma amostra aleatória representativa de 3 anos de decisões cíveis da justiça estadual fluminense sobre o conflito entre manifestação, honra e imagem. Uma em cada três decisões não cita nem livros ou artigos acadêmicos, nem precedentes judiciais e nem sequer adota a estrutura de ponderação de direitos em conflito prevista para decisões desse tipo.
São baseadas nas normas abstratas e no bom senso do magistrado. Perto de metade das decisões não segue essa estrutura nem se apoia em alguma decisão judicial anterior para resolver o caso difícil. O principal norte do Judiciário brasileiro em decisões sobre conflitos de direitos fundamentais é supostamente o Supremo Tribunal Federal. Apenas 6% das decisões no estudo citavam precedentes do Supremo.
Este quadro torna-se ainda mais problemático se considerarmos processos que se originam a partir de publicações ou comentários feitos na internet, onde são frequentes as manifestações ofensivas à honra, imagem ou privacidade. Qual é a responsabilidade de plataformas como Google e Facebook por conteúdos gerados por usuários? Na ausência de regras e diante de indefinições sobre limites à liberdade de expressão, a partir de que critérios essas empresas devem decidir qual manifestação está ou não protegida? Devem ser condenadas a pagar danos morais por não terem removido um conteúdo ofensivo quando os próprios magistrados divergem a este respeito? Se a plataforma não remove o conteúdo, pode violar o direito à honra do ofendido; se remove, pode estar violando a liberdade de expressão do ofensor.
O Marco Civil da Internet pôs fim a esta questão ao estabelecer, em seu artigo 19, que as plataformas só podem ser forçadas a restituir danos morais se descumprirem ordem judicial de remoção. A lei é cumprida?
Aparentemente, não. A pesquisa intitulada “Por que juízes não aplicam o art. 19 do Marco Civil da Internet?” analisou 79 sentenças dos Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro em 2017 e 2018, em processos movidos contra o Facebook. Nenhum dos pedidos de indenização preenchia o requisito legal, pois em nenhum dos casos a empresa havia sido ordenada pelo Judiciário a remover conteúdo e descumprido a ordem. Ainda assim, um a cada três desses pedidos foi acatado. Das decisões que descumpriam essa regra legal explícita, 85% sequer reconhecia a própria existência do art. 19 do Marco Civil, citando-o.
Pode-se imaginar que ao menos nas sentenças que negaram a indenização os juízes aplicaram o art. 19 do Marco Civil, o que seria razão suficiente para julgarem improcedente o pedido de indenização. No entanto, a pesquisa revelou que apenas um terço dessas decisões citava a lei aplicável. Isso sugere que, nos demais casos, os juízes decidiram pela improcedência por outras razões, sem compromisso com a lei, gerando grande imprevisibilidade sobre os limites da liberdade de expressão online.
O terceiro elemento revelado pelos estudos empíricos é que o Supremo não desempenha seu papel necessário nesse contexto, deixando de oferecer precedentes que poderiam configurar os limites da opinião em casos de danos morais. O estudo intitulado “A Crise dos Precedentes no Supremo: O Caso dos Precedentes sobre Liberdade de Expressão” analisou todas as 572 decisões desse tipo em 20 anos.
Verificado o número de citações feitas pelos próprios ministros a essas decisões, foi possível descobrir que apenas 11 delas recebiam 70% das citações. Aparentemente, as 11 mais importantes e informativas contribuições do Supremo para nortear a difícil tarefa de resolver o conflito entre expressão e reputação.
Analisadas uma a uma, essas decisões não oferecem qualquer orientação para magistrados ou para os cidadãos em geral sobre onde termina a liberdade e começa o dano moral. São decisões que focam questões meramente processuais ou indicam que o magistrado na primeira instância deve fazer o melhor que puder a cada caso.
A resistência à ideia de tomar uma posição normativa mais concreta sobre conflitos entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, sob o argumento de que tais conflitos deveriam ser resolvidos casuisticamente, não resiste a um olhar para a postura de Cortes Constitucionais em outros países. Já passou da hora de o Supremo assumir o papel que lhe cabe, definindo de forma mais concreta os limites à liberdade de expressão.
Para muitos juristas, essa realidade de como o Judiciário lida com a liberdade de expressão é diferente das suas impressões a partir da prática forense. Isso ilustra a relevância de estudos, feitos por juristas, cujos métodos estatísticos permitam um retrato representativo do todo e não de olhares isolados. A pesquisa acadêmica no Direito brasileiro ainda produz muitos ensaios com defesa do direito de manifestação em abstrato ou com comentários elogiosos da atuação de juízes para quem o autor irá pedir uma liminar no dia seguinte.
O país necessita de mais pesquisas que testem com métodos científicos empíricos, especialmente quantitativos, se juízes estão sinalizando com clareza, para as partes no caso e para a sociedade civil, os limites da liberdade de expressão e de imprensa no Direito brasileiro.
Qual a decisão mais problemática no caso André do Rap, de Marco Aurélio ou de Fux? Podcast do JOTA discute o fato de o plenário do STF ter gastado 2 sessões para resolver problema que a própria Corte criou. Ouça: