Canto da sereia

Intervencionismo do Estado em contratos particulares em tempos de pandemia

Não se pode lançar mão em expedientes judiciais ou legiferantes para sobrepor e inverter a lógica constitucional

débitos tributários
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

Revela-nos o livro Odisseia de Homero, que a Ulisses teria sido imposto um complexo desafio, desfrutar da tentação de ouvir o canto da sereia, ser mitológico metade mulher e metade peixe, e não incorrer no desfecho trágico de mergulhar no mar, embriagado pela beleza do canto e ser devorado por elas.

No enredo trazido, Ulisses pediu a seus homens que o amarrassem no mastro do navio e não lhe dessem ouvidos, pois somente assim, a travessia poderia ser feita e teria ele desfrutado de ouvir tão bela sinfonia.

O presente momento aparenta-nos como um terreno fértil para o surgimento de novos cantos, ora disfarçados de projetos de lei bem intencionados, como os de número 1.744/2020 e 1.746/2020 em trâmite na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que tratam da redução de alugueis e mensalidades, ambos privados, em razão da pandemia.

Em regra, são questões bem postas e com um discurso bem aceito, como da solidariedade ou baseados em princípios metajurídicos como a justiça, ou mesmo em questões de valores como a moral.

A nós, esta conduta revela traços que sobressaltam os cuidados, sob risco de sermos devorados pela boa vontade legislativa.

O primeiro ponto que se ressalta é pela eventual inconstitucionalidade destes projetos, haja vista que a Ordem Econômica constitucional é fundada na livre iniciativa, tendo a propriedade privada como um de seus princípios.

O segundo ponto que se merece a atenção diz respeito a possível ocorrência de um fenômeno conhecido como problemas de agência, isto é, quando um agente mandatário defende políticas baseadas no interesse próprio, e não daquele que é o titular do poder e o delegou.

O terceiro ponto a ser destacado diz respeito aos riscos sistêmicos trazidos pelo intervencionismo, como as falhas de mercado, as assimetrias posicionais e mais a retração ainda maior da demanda, já que os proprietários dos imóveis buscarão outras formas de se monetizar pelo uso de sua propriedade, o que também é legítimo.

Por fim, o quarto ponto a se criticar desta conduta é a total ausência de utilização da ferramenta conhecida como AIR – Análise de Impacto Regulatório, que desmistificará, o quão benéfico é para economia esse intervencionismo.

A solução então que se apresenta como justa e equânime para alguns desses problemas seria aquela conhecida como endoregulação, especificando-se na utilização das estatais para impor condutas comportamentais, uma espécie de nudge.

O nudge é um termo britânico utilizado pelo prêmio nobel da economia, Richard Thaler, e diz respeito a um “cutucão”, um “empurrão” para que alguém veja algo. Poderia assim, os bancos públicos se valerem de empréstimos sem juros, de redução dos pedidos de garantia para financiamento ou mesmo de uma política de risco mais afrouxada para o particular, o que, em última instância, estimulariam os bancos privados a competir.

De tal forma, haveria uma preservação dos direitos dos proprietários de receberem seus alugueis e as escolas suas mensalidades, já que seus inquilinos e clientes estariam capitalizados pelos bancos, em modalidades especiais de financiamento.

Certamente que há de haver e haverá espaço para transações e concessões, situação esta que naturalmente surge quando são retiradas as amarras burocráticas para o acordo, naquilo que ficou conhecido como o teorema de Coase, Estruture o Direito de modo a remover os impedimentos aos acordos privados.

Registre-se que é de toda oportuna, necessária e premente a ajuda estatal, contudo, ela já será feita por meio dos mecanismo existentes e postos à sua disposição (apoiando-se decisivamente a endoregulação e poder normativo das estatais), sendo a nossa opinião e oposição a “caridade com o chapéu alheio”, isto é, utilizar de um aparato institucional para impor aos particulares uma nova pandemia, agora do cerceio de sua liberdade econômica.

Frente a isto, não se pode, em tamanho momento de inquietude, lançar mão em expedientes judiciais ou legiferantes (técnicos por excelência) para sobrepor e inverter a lógica constitucional.