Filosofia do Direito

Inteligência artificial: o ‘garfo de Copenhague’ e o ‘moscardo de Atenas’

Releitura para sobrevivência num mundo em transformação por robôs e inteligência artificial

Imagem: PIxabay

Søren Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague em 5 de maio de 1813 e viveu num período rico da cultura dinamarquesa, conhecido por “Era de Ouro Dinamarquesa”, que abrangia a primeira metade do século XIX. Entre os intelectuais que lhe eram contemporâneos se encontram o autor de contos de fada Hans Christian Andersen, o Físico Hans Christian Orsted e o escultor Bertel Thorvaldsen. Copenhague era uma cidade pequena à época, com aproximadamente 115.000 habitantes, o que significa que todos os cientistas, escritores, poetas e artistas importantes se conheciam pessoalmente e alimentavam a cultura e obras uns dos outros. [1]

O apelido de Kierkegaard, quando criança, era “o garfo”. Esse apelido se consolidou depois que lhe perguntaram o que ele queria ser quando crescesse, pelo que respondeu: um garfo, já que assim poderia espetar qualquer coisa à mesa do jantar. O jovem Søren já respondia a eventuais provocações “espetando as pessoas”, com ironia. Ele era um provocador desde a infância.

A característica de provocador se tornou mais intensa depois que Kierkegaard frequentou a Escola da Virtude Cívica, de Copenhague, onde aprendeu latim, grego clássico e se apaixonou pela literatura grega, sendo influenciado por alguns dos diálogos do filósofo Platão, mais especificamente Eutífron, a Apologia e Críton, além de Memorabilia, de Xenofonte, o que lhe proporcionou um amplo conhecimento do pensamento de Sócrates, filósofo pelo qual seria fascinado durante o resto de sua vida e cujo pensamento seria determinante para o desenvolvimento das suas obras, principalmente “O conceito de ironia”[2], que foi escrito como sua dissertação de mestrado na Universidade de Copenhague.

Em “O conceito de ironia” o ponto focal era o pensamento de Sócrates, por meio do qual Kierkegaard deixa claro que o filósofo grego não tinha uma teoria pronta sobre os assuntos que abordava, mas, pelo contrário, buscava desconstruir as teorias apresentadas ou postas e, a partir dessa desconstrução, obrigava os autores dessas teorias a repensar o seu ponto de vista. A filosofia de Sócrates era negativa, não no sentido de pessimismo, mas no sentido de que não entrega nada pronto, obrigando todos a repensarem e desconstruir suas conclusões sobre determinado assunto.

O procedimento discursivo que Sócrates utilizava para desconstruir ideias de seus interlocutores era constituído de 3 (três) fases: (1) na primeira fase Sócrates alegava nada saber e, com isso, ficava livre para questionar o seu interlocutor sobre o assunto que esse interlocutor se considerava perito; (2) na segunda fase Sócrates admitia que seu interlocutor era perito no assunto, enchendo-o de confiança e estimulando essa pessoa a dissertar longamente sobre sua crença. Num determinado momento Sócrates passa a questioná-lo sobre o tema, até as últimas consequências; (3) na terceira e última fase, o interlocutor, depois de questionado de forma profunda, parece nada mais saber, entrando em estado de confusão ou aporia. Esses três pilares ou fases do discurso constroem o conceito de ironia em Sócrates, que fascinava Søren Aabye Kierkegaard.

A autoproclamada ignorância se Sócrates tinha um duplo sentido: (1) libertava e convidava seus interlocutores a chegar à sua verdade, individual, mas que em algum momento poderia se conectar à verdade do outro, criando uma verdade não universal, mas intersubjetiva; (2) era irônica, pois o filósofo grego de fato sabia muitas coisas sobre o mundo ao seu redor, omitindo isso com o propósito de lançar mão de sua doutrina negativa, que instigava pessoas a buscar a sua verdade.

Sócrates questionava o que via, fazendo com que seus interlocutores reconsiderassem suas opiniões, que jaziam em fracos fundamentos. Kierkegaard adotou o mesmo estilo, buscando desconstruir argumentos postos por seus contemporâneos, sem, no entanto, substituir esses argumentos por outros, ou seja, mantendo a ausência de uma doutrina positiva, com o objetivo de fomentar que as pessoas estabelecessem a sua concepção de determinado assunto, de forma mais profunda, buscando a verdade dentro de si.

O fato de Sócrates ter desenvolvido o método de questionar as pessoas irritou alguns de seus concidadãos, que se sentiram humilhados, principalmente quando o filósofo os contradizia na frente de uma multidão. Sócrates então se intitula o moscardo de Atenas, que exercia uma função irritante, mas benéfica, de evitar que as pessoas caíssem na mesmice, fazendo com que elas se mantivessem despertas sobre a necessidade de refinar seu próprio conhecimento em busca da sua verdade. Ele não interrogava as pessoas porque gostava de fazê-lo, mas porque entendia que era o correto, era a sua missão. Referida imagem era reverenciada por Kierkegaard, que entendia poder fazer o mesmo, tornando-se o moscardo ou garfo de Copenhague.

O processo de construção do pensamento desenvolvido por Sócrates há mais de dois mil anos e retomado por Kierkegaard durante a primeira metade do século XIX nunca foi tão atual, principalmente num mundo em constante transformação, em que o pensamento individual está sendo solapado constantemente por uma vontade universal, construída a partir de algoritmos que leem nosso comportamento passado, tratando-o e projetando como deve ser o nosso futuro.

Estamos sendo convencidos de que não precisamos mais pensar e nem tomar decisões, relegando isso a robôs ou à inteligência artificial, que em tese poderiam fazer isso de forma melhor e mais precisa do que o ser humano. O resultado é que essa mesma inteligência não humana, comandada por poucos, cada vez mais nos diz o que devemos fazer, como devemos pensar, o que devemos consumir, direcionando até mesmo resultados de eleições presidenciais. Pensamos que temos liberdade, mas nunca fomos tão escravos daquilo que julgamos possuir ou construir. Somos reféns de um conceito cada vez menos humano e menos individual de verdade, muito distante do pensamento do moscardo de Atenas e do garfo de Copenhague.

Acessando e interagindo incessantemente com a rede mundial de computadores, abastecemos robôs e inteligência artificial, entregando nossos rostos, informações pessoais e modo de pensar, sem nem mesmo percebermos. Tudo é processado, entendido, modificado e devolvido no nosso dia-a-dia, por meio de anúncios e indicações subliminares do que precisamos comprar, o que precisamos ter ou conhecer, como precisamos ser e, até mesmo, qual é o nosso candidato ideal em determinadas eleições.

Não sabemos mais quais são os nossos pensamentos, se são nossos, ou se são o resultado do que nos foi coletado ou tomado, processado e sutilmente devolvido de forma pronta, com um subliminar direcionamento do próximo passo que devemos dar em nossa vida. Nunca foi tão urgente conhecer e rever esse padrão. As leis de proteção de dados e privacidade, por si só, não são capazes de nos blindar da invasão da nossa consciência por informações que a todo momento aceitamos quase involuntariamente. Essas leis mais validam e alimentam esse processo, quando observadas.

Um dos grandes pilares das leis de proteção de dados é o consentimento das pessoas para serem lidas pelos algoritmos, o que não é uma grande barreira, já que essas mesmas pessoas só podem ter acesso ao conteúdo pretendido se derem o seu consentimento. Observe-se que, antes de consumirem as informações, sem mesmo conhecerem o conteúdo a que terão acesso, na íntegra, e como serão processados os seus dados, as pessoas são obrigadas a consentirem com a captura da sua privacidade.

Registrado esse consentimento, todos estão novamente à mercê da leitura de robôs e inteligência artificial, que facilmente poderão cumprir de forma automática outros requisitos das leis, como de fato já cumprem, tais como: emissão de relatórios às pessoas e órgãos regulatórios.  No contexto desse ensaio tudo indica que as leis mais legitimam a leitura da nossa privacidade por robôs e inteligência artificial, o processamento desses dados e a devolução de outros, com o objetivo de direcionar nossas ações, do que necessariamente defendem nossa privacidade.

Parece correta a assertiva de que um retorno à filosofia nesse momento histórico se torna mais que necessário para preservar a nossa intimidade e para construir uma identidade mais próxima possível ao nosso conceito de verdade. Essa é a última barreira contra uma ditadura dos algoritmos, robôs e inteligência artificial. E a filosofia desenvolvida por Sócrates e levada a cabo por Kierkegaard ainda nos mostra um caminho seguro, que pode nos ajudar a desconstruir uma visão fabricada e errônea de mundo. Podemos, a partir de um pensamento que nos convida a não ter medo de descortinar a verdade dentro de nós mesmos, e de não recebê-la pronta e acabada do mundo exterior, questionar a verdade fornecida hoje por uma minoria que detém o monopólio da atuação dos robôs e da inteligência artificial.

Ao relermos Kierkegaard, constantemente referido a Sócrates, podemos nos convidar a questionar: qual a nossa importância na sociedade atual? Qual é o sentido e o valor da nossa vida? Estou fazendo a diferença como pessoa que pensa e busca a verdade dentro de mim? Sou apenas mais um número para que robôs e algoritmos processem informações e devolvam uma visão de mundo pré-estabelecida, para que eu possa consumir e viver de acordo com essa visão, num ciclo ininterrupto? A quem beneficia uma ditadura de ideias pré-concebidas via inteligência artificial e robôs, que cada vez mais solapam a individualidade e colocam em xeque a personalidade do ser humano?

Questionar, questionar novamente, retomar as perguntas, não se conformar, buscar a verdade individual e que possa conectar com uma verdade intersubjetiva, recusar uma visão de mundo pronta e acabada, oferecida por alguns poucos numa ditadura virtual, nunca pareceu tão atual, como faziam o moscardo de Atenas há mais de dois mil anos e o garfo de Copenhague na primeira metade do século XIX.

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[1] STEWART, Jon. Soren Kierkegaard: Subjectivity, Irony, and the Crisis of Modernity. Oxford University Press; Reprint edition (March 4, 2018), 232 pages (essay based on the book and homonymous course).

[2] KIERKEGAARD, Søren. The Concept of Irony. With Continual Reference to Sócrates. Princeton: Princeton University Press, 1989.

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