Direito Penal

Incitação do presidente da República a ingresso ilegal em hospitais

Atitude deve merecer repúdio e medidas apropriadas das autoridades competentes, notadamente do PGR

presidente da república
O presidente da República Jair Bolsonaro. Crédito: Isac Nóbrega/PR

Em transmissão ao vivo realizada em 11 de junho de 2020, o presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou que não houve muitos casos de pessoas que tenham morrido durante a pandemia de covid-19 por falta de respirador ou de leito de terapia intensiva (UTI).

Sugeriu que as pessoas fossem a hospitais de campanha e a hospitais públicos e “arranjassem uma maneira de entrar e filmar”, “porque muita gente está fazendo isso”, para mostrar “se os leitos estão ocupados” e “se os gastos são compatíveis” (não disse com quê).

A fala do presidente merece críticas em diferentes âmbitos. No institucional, ela dissemina e alimenta desconfiança da população nas autoridades locais responsáveis pela instalação de hospitais temporários criados em razão da pandemia de covid-19 e também pelos responsáveis por hospitais públicos em geral, uma vez que a incitação os abrangeu.

Essa manifestação se insere em um contexto de conflito político permanente que o presidente da República adotou com os governadores desde o início da pandemia e só contribui para degradar o ambiente político e interinstitucional entre o governo federal e os governos estaduais.

Prejudica em larga medida o papel que a União deveria desempenhar de coordenação de esforços na gestão da pandemia e da vigilância epidemiológica, como lhe determina a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990), nos arts. 15, inciso XIII, e 16, inc. III, alínea c, e inc. VI, entre outros.

No plano sanitário, a incitação a invasões formulada pelo presidente é de profunda irresponsabilidade e inconsequência. Defender que pessoas “arranjem uma maneira” de entrar sem autorização em áreas restritas de hospitais durante uma pandemia significa (a) atentar contra a regularidade do serviço desses estabelecimentos; (b) expor os pacientes a infecção (pois, evidentemente, não se imagina que os invasores seguirão protocolos de segurança hospitalar, sobretudo portando telefones celulares não higienizados para filmar instalações, segundo a orientação do presidente) e a sobressaltos que podem interferir em sua recuperação; (c) gerar conflitos de segurança entre os funcionários dos estabelecimentos e os invasores; (d) expor os próprios invasores a contaminação pelo novo coronavírus, que circula nesses ambientes com maior concentração, pela própria natureza do local e o decorrente risco biológico.

Chega a ser inacreditável que uma autoridade, mesmo a da mais baixa hierarquia, tenha a ideia de externar uma sugestão desse nível de irresponsabilidade. Em se tratando do chefe do Poder Executivo, o espanto é ainda maior.

Na esfera jurídico-penal, sem levar em conta neste texto possível cometimento de crime de responsabilidade e sem considerar o desrespeito ao direito a imagem dos pacientes internados (protegido expressamente no art. 5.º, incs. V e X, da Constituição), a fala do presidente da República configura crime comum, contra a paz pública, definido no art. 286 do Código Penal como “incitação ao crime”: “Art. 286. Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.”

O presidente da República cometeu a infração penal ao agir com vontade livre e consciente e estimular pessoas a ingressar sem autorização em áreas restritas de estabelecimentos hospitalares, onde se encontram leitos, até mesmo os de terapia intensiva.

Essa infração penal se insere no Título IX do Código Penal, que relaciona os quatro tipos de crimes contra a paz pública (ao lado da apologia de crime ou criminoso, da associação criminosa e da constituição de milícia privada).

Esses delitos têm em comum, como aponta Nélson Hungria em seus conhecidos Comentários ao Código Penal, o fato de criar alarma na coletividade, quebra do sentimento geral de tranquilidade, abalo à consciência de segurança do direito (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958. vol. IX (arts. 250 a 361), p. 163-4).

Esse crime somente ocorre quando a incitação se faz de forma pública, o que aconteceu no caso, pelo fato de o presidente da República havê-la feito em uma publicação ao vivo na internet (uma live), como costuma fazer toda quinta-feira, com grande alcance de público, dada a própria condição de sua autoridade. O delito consuma-se mesmo que ninguém atenda à incitação.

Infelizmente, devido a seu poder de influência, a incitação do presidente já causou efeitos nocivos um dia depois de verbalizada. Em 12 de junho de 2020, um grupo de ao menos seis pessoas invadiu o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência no tratamento da Covid-19 no Rio de Janeiro, para verificar a suposta existência de leitos ociosos.

A incitação ao crime praticada pelo presidente Jair Bolsonaro consiste no fato de que orientar pessoas a ingressar sem autorização em áreas de circulação restrita de hospitais públicos é estimulá-las a cometer o crime de atentado contra serviço de utilidade pública, descrito no art. 265, caput, parte final, do Código Penal, o qual dispõe: “Art. 265. Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa. […]”

“Atentar” significa perturbar, importunar. É conduta que pode ser praticada de várias maneiras. Segundo Nélson Hungria, “é todo ato tendente a perturbar, de modo mais ou menos extenso, os serviços mencionados no texto legal” (idem, p. 86).

Quando uma pessoa (ou, pior, um grupo) ingressa em áreas não autorizadas de um estabelecimento público de saúde, sobretudo durante uma pandemia de doença infectocontagiosa, sem dúvida causa perturbação e importunação ao serviço essencial que ali se desenvolve, pelas razões já expostas, tanto pela afetação da prestação normal do serviço quanto pelos riscos que criam aos profissionais de saúde que ali trabalham (já em situação de estresse exacerbado pela carga de trabalho, pelo ineditismo e incerteza da situação e pelos riscos conhecidos da Covid‑19), sem contar os conflitos físicos que essa invasão acarreta, entre os invasores, servidores, guardas-civis e empregados de segurança.

Conquanto os cidadãos e cidadãs em geral tenham papel muito relevante no controle social dos atos da administração pública, isso, obviamente, não pode realizar-se de forma voluntarista e de acordo com critérios, interesses e idiossincrasias individuais.

Nem todo espaço dos prédios públicos pode ser objeto de livre acesso das pessoas. Áreas de tratamento de saúde de hospitais estabelecimentos congêneres são exemplo evidente disso. Se procedesse a orientação do presidente, qualquer pessoa poderia também “arranjar uma maneira” de ingressar no Palácio do Planalto ou no Palácio da Alvorada, independentemente de autorização, para fiscalizar os atos do chefe do Executivo.

A reprovabilidade do ato do presidente é muitíssimo mais grave do que se o delito fosse praticado por pessoa comum, não ocupante de cargo público, muito mais ainda em se tratando do cargo mais importante do Poder Executivo federal, como é o de presidente da República.

Ele é (ou deveria ser) o maior responsável, ao lado das demais autoridades de cúpula dos demais poderes e do chefe do Ministério Público Federal, por manter a paz pública. Seu papel é o de velar por manter o cumprimento das leis, jamais o de incitar pessoas a descumpri-la, como fez.

Essa inconcebível incitação é também profundamente reprovável por ocorrer no meio de uma pandemia sem paralelo nos últimos cem anos, depois da epidemia de gripe de 1918-1919.

Ao recomendar prática de invasões a hospitais em plena emergência de saúde pública de importância internacional (conforme reconheceram expressamente a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional), o presidente da República estimula perturbações a serviços de saúde já sobrecarregados com pacientes de uma doença mortal, a qual, na data de seu infelicíssimo e ilícito pronunciamento, já atingira, em números oficiais, 802.828 pessoas, das quais 40.919 vítimas fatais (há estudos segundo os quais os números reais podem ser de até 16 vezes maiores do que os oficiais).

A atitude negacionista e conflituosa do presidente da República no curso da pandemia, a demonstrar desprezo pelas vítimas, inclusive as fatais, tem sido fator de agravamento adicional desse evento.

Com a recente incitação à invasão de hospitais, mais uma vez o chefe do Executivo federal revela sua despreocupação com a saúde das vítimas e com o bem-estar e a atuação dos profissionais de saúde, que literalmente se sacrificam para atender à população.

Essa injustificável atitude de quem deveria ser o líder maior da nação, ao ferir também leis penais, deve merecer repúdio e medidas apropriadas das autoridades competentes, notadamente do procurador-geral da República, que tem atribuição funcional para processá-lo criminalmente.

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