
Introdução
O presente artigo versa sobre a tese firmada em repercussão geral no RE nº 723.651, que trata sobre a incidência do IPI em bens importados para uso próprio.
Contudo, antes da análise do RE nº 723.651, é necessário abordar sucintamente o RE nº 203.075, que inaugurou alguns fundamentos jurídicos posteriormente superados pela Corte Suprema.
No RE nº 203.075 se discutia a incidência do ICMS na importação de veículo automotor por pessoa física para uso próprio. Na ocasião, o STF concluiu que o imposto não é devido pela pessoa física importadora.
A ratio decidendi foi a de que a pessoa física que importa para uso próprio não exerce atos de comércio de forma constante nem possui “estabelecimento destinatário da mercadoria”, conforme art. 155, § 2º, IX, “a” da CFRB.
Em caráter obiter dictum, foi suscitado que não é possível se exigir o pagamento do ICMS na importação de bem por pessoa física, dado que, não havendo circulação de mercadoria, não há como lhe aplicar o princípio constitucional da não-cumulatividade do imposto.
Posteriormente a EC 33/01 alterou a redação do art. 155, § 2º, IX, “a” da CF, superando o entendimento do Supremo, para fazer incidir o ICMS sobre produtos importados por pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes.
Pois bem. Após a decisão no RE nº 203.075, as Turmas do STF passaram a aplicar a mesma lógica para o IPI, entendendo pela não incidência do imposto na hipótese de importação para uso próprio por não contribuinte. Contudo, o Plenário do STF não se manifestou sobre o tema até o RE nº 723.651.
Pontos abordados no RE nº 723.651
No RE nº 723.651, o recorrente pleiteava a importação de veículo para uso próprio sem a incidência do IPI. Para fins didáticos, as questões tratadas pelo Plenário do STF serão tratadas em cinco tópicos.
- Aspecto material do IPI
O contribuinte sustentou em sede de recurso que não praticou ato de industrialização e que, por isso, não se enquadraria na hipótese de incidência do tributo.
O argumento do contribuinte não foi acolhido pelo STF, que entendeu que a importação de produtos industrializados para uso próprio se enquadrava na materialidade do tributo, com fundamento no art. 153, IV, da CFRB c/c art. 2º, I, da Lei nº 4.502/64 c/c art. 46, I, do CTN.
O tratamento constitucional e legal conferido ao IPI estipula, portanto, que o imposto em questão incide sobre o produto industrializado, e não somente sobre a operação de industrialização.
Nestes termos, bem explica o ministro Luís Roberto Barroso em seu voto “que relativamente ao IPI-importação, basta que o bem adquirido seja industrializado. Por outro lado, quanto ao IPI que incide em operações internas, é preciso que o sujeito passivo submeta o bem a processo de industrialização”.
- Aspecto subjetivo do IPI
O contribuinte sustentou que não está sujeito ao IPI em razão de importação de veículo automotor para uso próprio porque, como pessoa natural, (1) não desempenha a atividade empresarial de venda de automóveis e (2) não possui estabelecimento comercial e nem industrial.
A tese do contribuinte não foi acolhida pelo STF porque a Constituição Federal não distingue aquele que se mostra como contribuinte do imposto, podendo ser um nacional, pessoa natural ou pessoa jurídica brasileira, sendo neutro o fato de não estar no âmbito do comércio e a circunstância de adquirir o produto para uso próprio. O mesmo se pode dizer do art. 51 do CTN e do art. 40, parágrafo único, IV, da Lei n. 4.502/64.
- Regra da não cumulatividade
A terceira tese do contribuinte abordada no RE nº 723.651 foi a de que, como a importação era para uso próprio, não seria possível ao importador creditar-se do valor do IPI cobrado nas operações seguintes, nos termos do art. 153, §3º, II, da CFRB c/c art. 49 do CTN, já que estas operações não ocorreriam.
Com efeito, a não-cumulatividade é uma regra que constitucionaliza técnica de tributação específica para os tributos plurifásicos e, portanto, tem aplicação restrita às hipóteses em que se verificam múltiplas incidências em uma mesma cadeia econômica.
Nos recursos extraordinários nº 353.657, nº 370.682 e nº 566.819, o STF decidiu que apenas cabe acionar o princípio da cumulatividade se ocorrer a incidência sequencial do mesmo tributo.
Neste ponto, o min. Luis Roberto Barroso, em seu voto no RE nº 723.651, esclarece que não é sempre que a não-cumulatividade terá aplicação, mesmo nos impostos indiretos por natureza, casos do IPI e do ICMS. Isso porque nem toda cadeia é necessariamente plurifásica.
Portanto, se a função é expurgar imposto pago antes, é porque há mais de uma incidência. Por outro lado, se a operação é única, como no caso dos autos, não existe imposto pago antes e tampouco risco de múltipla tributação sobre a mesma base econômica. Logo, a tese foi rejeitada.
- Ofensa aos princípios da isonomia e da livre concorrência
A quarta questão abordada pelo STF diz respeito à violação aos princípios da isonomia e da livre concorrência caso fosse reconhecida a não incidência do IPI sobre produtos importados para uso próprio.
A Corte Suprema concluiu que a interpretação constitucionalmente adequada do art. 153, IV da CFRB, realizada à luz dos princípios constitucionais da igualdade tributária (150, II) e da livre concorrência (art. 170, IV), conduz à possibilidade de tributação na espécie.
Impedir a tributação no caso colocaria os adquirentes finais de produtos no mercado interno em posição de desvantagem em relação àqueles que compram no estrangeiro, desigualando situações equivalentes e sujeitando o mercado interno a uma concorrência desequilibrada.
- Modulação dos efeitos da decisão
Apesar do art. 927, § 2º, CPC/15 não estar em vigor à época do julgamento do RE nº 723.651, o min. Luis Roberto Barroso defendeu a modulação dos efeitos da decisão em razão da alteração da jurisprudência da Corte.
A questão restou prejudicada porque ao final do julgamento não se alcançou o quórum de maioria absoluta para a modulação dos efeitos da mencionada decisão.
Definição da extensão da tese
A maioria dos Ministros votou pela aplicação restritiva da tese firmada apenas à importação de veículos, que era o produto industrializado objeto de importação no RE nº 723.651. A razão da restrição foi a preocupação com a abrangência da tese abarcar setores sensíveis da tecnologia, tais como a importação de aparelhos médicos.
Aplicação da tese
Apesar do item 3 demonstrar o esforço da Corte em limitar a aplicação da tese de repercussão geral aos automóveis, é possível verificar que o STF está aplicando a tese de repercussão geral aos demais produtos industrializados, inclusive aos equipamentos médicos importados (RE 889509 AgR, julgado em sessão virtual em setembro de 2017 pela 2ª Turma, relator min. Dias Toffoli; RE 1242803 AgR, também julgado em sessão virtual em 16 de junho de 2020 pela 2ª Turma, relatora min. Carmén Lucia).
Deste modo, ao final, por mais que o STF tenha optado por não fazer o papel de “carrasco” dos contribuintes que importam equipamentos médicos, acabou prevalecendo, na prática jurisprudencial, o posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso, de que a restrição da incidência do IPI apenas para os veículos importados para uso próprio era moralmente defensável, porém difícil de sustentar dogmaticamente.