Pandemia

Improbidade administrativa em tempos de coronavírus

Interpretação à luz do princípio da juridicidade

A probidade administrativa tem relação direta com uma Administração Pública honesta que visa a proteção da coisa pública, tanto que a Constituição Federal previu sanções em caso de sua inobservância em diversos pontos do seu texto, desde questões relacionadas a condições de elegibilidade até crime de responsabilidade do presidente da República.

A possibilidade de ressarcimento ao erário em caso de desvios pela prática de atos ímprobos já é prevista na legislação brasileira desde a Constituição Federal de 1824, no entanto, foi a Constituição Federal de 1946 que trouxe maiores avanços acerca do tema, isso porque previu a possibilidade de sequestro e perdimento de bens em razão do enriquecimento ilícito, por influência ou abuso de cargo ou função pública, medidas regulamentadas através da Lei nº 3.164/57 (previu a tutela extrapenal repressiva da improbidade administrativa), da Lei nº 3.502/58 (tratou do sequestro e perdimento de bens) e da Lei nº 4.717/65 (ação popular), sanções que se tornaram mais severas com a promulgação da Emenda Constitucional nº 01/69.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a probidade administrativa se tornou um modelo vinculado ao direito constitucional e administrativo, tendo o art. 37, § 4º, da Constituição Federal elencado as sanções em caso da prática de atos ímprobos, isso no intuito de atender aos anseios da sociedade como forma de combate à corrupção, bem como aos eventuais abusos praticados pelos agentes públicos.

Nesse sentido, Marcelo Bertoncini[1] defende que a probidade administrativa é uma das formas de garantia da execução dos objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal, uma vez que o exercício das funções públicos de modo eficiente e honesto viabiliza a construção de uma sociedade mais igualitária sem discriminações de qualquer espécie que garanta condições dignas de existência. O mesmo autor sustenta ainda que a ideologia constitucional da probidade administrativa deve ainda ser observada em razão da força normativa da Constituição trazida por Konrad Hesse.[2]

Assim, verifica-se que a força vinculante da probidade administrativa é resultado da vontade popular manifestada através das decisões dos seus representantes legitimamente eleitos que sacramentaram na Constituição Federal várias formas de combate à corrupção como meio de se garantir a observância da probidade administrativa, os quais foram reforçados pela ratificação, pelo Brasil, da Convenção das Nações Unidas (ONU) contra a Corrupção[3] em 14 de dezembro de 2005, o que tornou o combate à corrupção não só uma obrigação constitucional, mas também um compromisso internacional.

Dessa forma, ao se imputar sanções pela prática de atos de improbidade administrativa a Constituição Federal buscou punir o administrador público, bem como o particular em colaboração, que age de modo a prejudicar a Administração Pública, para, com isso, criar uma cultura de probidade administrativa.

Dentro desse contexto, aproximadamente quatro anos após a promulgação da Constituição Federal foi sancionada a Lei nº 8.429/92 que dispôs sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional.

No entanto, salvo a previsão expressa no art. 10 da Lei nº 8.429/92, que possibilita a condenação por ato de improbidade administrativa quando praticado por culpa do agente, as demais hipóteses exigem que o réu tenha agido com dolo, ainda que o dolo genérico, como vem admitindo a jurisprudência dos tribunais superiores.

Pelo princípio da juridicidade a Administração Pública não está adstrita apenas à observância do princípio da legalidade estrita, mas sim de todos os demais princípios legitimadores do Estado Democrático de Direito, o que alguns autores denominam de legalidade substancial. Dentro desse contexto, a configuração do ato de improbidade administrativa estrito sensu estaria condicionada à inobservância do princípio da juridicidade;

No que se refere às hipóteses de atos de improbidade administrava previstas nos 9º e 10º da Lei nº 8.429/92 não há maiores celeumas, tendo em vista que seus incisos descrevem as situações que caracterizam a prática de atos de improbidade, já com relação aos atos de improbidade administrativa estrito senso (art. 11, da Lei nº 8.429/92), para que se concretize é necessário apenas que a conduta praticada pelo agente deixe de observar princípio constitucional administrativo, intencionalmente, ou seja, que o referido agente aja impulsionado pela má-fé, consciente do descumprimento do dever insculpido no art. 4º, da Lei nº 8.429/92.

A situação de crise exige dos gestores públicos atuação rápida e o mais eficiente o possível, dentro das condições que estiverem ao seu alcance. Dessa forma, as aquisições de insumos e contratações devem ser rápidas, as medidas em relação aos servidores públicos também devem aliar proteção e produtividade, entre outras.

No entanto, é sabido que as contratações no serviço público possuem um rito procedimental que nem sempre garante celeridade, ainda que se tratem das hipóteses previstas no art. 24 da Lei nº 8.666/93, o que também ocorre em relação às contratações temporárias de pessoal.

Dessa forma, cabe ao julgador, no momento da interpretação acerca da existência de ato de improbidade administrativa, além de verificar a presença do elemento volitivo – o dolo,  levar consideração também as circunstâncias atuais de crise que estamos atravessando, utilizando-se, para tanto de princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, como expressão do princípio da juridicidade.[4]

Assim, a utilização do princípio da juridicidade permite ao julgador que proceda sua análise baseado não apenas no princípio da legalidade, mas em todo arcabouço jurídico vigente, que engloba também os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, ou seja, no “bloco de legalidade” conforme denomina Gustavo Binenbonj, já mencionado.

Dessa forma, não se pretende aqui concluir que o gestor público possui uma autorização para deixar de observar as formalidades previstas em normas e regramentos na sua atuação no combate à pandemia de Covid-19, uma vez que tais regras protegem o próprio cidadão, uma vez que garante uma administração proba, mas sim, que deve o julgador, em todos os casos, realizar sua análise pautada pelo princípio da juridicidade, tendo em vista que tal princípio garante uma análise sistêmica do caso, que ultrapassa a mera análise da legalidade, isso porque interpreta o ordenamento jurídico como um todo, inclusive no que se refere ao contexto no momento em que a conduta atacada foi praticada.

 


[1] FARIAS, Cristiano Chaves de Farias, OLIVEIRA, Alexandre Albagli e GHIGNONE, Lucianos Taques. Estudos sobre improbidade administrativa, em homenagem ao Professor J.J. Calmon de Passos.

[2] “A ideologia constitucional de probidade administrativa na Administração Pública deve ser compromisso finalístico e pragmático do Estado, em todas suas dimensões, e da sociedade contra a cultura de improbidade, em respeito à força normativa da Constituição, à sua “força ativa”, no dizer de Konrad Hesse, que sinteticamente recomenda para a sua manutenção e efetivação, o desenvolvimento de uma ótima prática constitucional.”

[3] Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Disponível em: <www.unodc.org/lpo-brazil/pt/corrupcao/convencao.html>.

[4] BINENBOJN, Gustavo. Uma teoria de direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 137-139. “O princípio da juridicidade é uma inovação evolutiva no direito administrativo, marca o seu nascedouro na proposta de ultrapassar a abrangência do princípio da legalidade, formando um compêndio de obrigações legais e naturais, tais como, um “bloco de legalidade”.