“A justificativa formal foram as denominadas ‘pedaladas fiscais’ — violação de normas orçamentárias—, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso à revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. As violações de normas orçamentárias seriam tão somente “justificativas formais”: o motivo real para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi a falta de apoio político, disse o ministro[1].
Em 5 de julho de 2021, conforme noticiou o JOTA, o ministro dissera: “Não deve haver dúvida razoável de que a ex-presidente Dilma Rousseff não foi afastada por crimes de responsabilidade, nem por corrupção, mas, sim, foi afastada por perda de sustentação política”[2]. Em 2016, quando afastada a ex-presidenta, o ministro Barroso asseverou a parlamentares líderes da comissão que analisava as acusações contra a chefe do Executivo que “o impeachment não é golpe. É um mecanismo previsto na Constituição para afastamento de um presidente da República”[3].
As atuais declarações do ministro reacenderam o debate acerca do impeachment no direito brasileiro. Previsto na Constituição Federal de 1988, carrega aspectos de ordem política, evidenciados por um processo que tramita no Poder Legislativo. Mas a dimensão política não é a única que o caracteriza. Há também elementos jurídicos. Categoria constitucional que é, o impeachment se densifica a partir da dualidade entre direito e política e do necessário diálogo entre ambas.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no sentido de que à Corte compete verificar se, no curso do processo de impeachment, as regras referentes ao procedimento são observadas. O argumento decisivo reside na separação dos Poderes. Compreende o STF que as decisões acerca do processo de responsabilização do presidente da República são de natureza interna corporis. Com esse entendimento, disse o ministro Barroso a parlamentares: “O que os senhores decidirem [sobre o impeachment] na Câmara e depois o que o Senado decidir, é o que vai prevalecer. Quer dizer, o Supremo não tem nenhuma pretensão de juízos de mérito nessa matéria”[4]. Ao STF caberia, como em voto do ministro Barroso, “fiscalizar as regras do jogo”[5]. Afivelado a esse paradigma, o magistrado afirma que “impeachment não é golpe”, pois “é um mecanismo previsto na Constituição para afastamento de um presidente da República”.
Exatamente este é o ponto: sim, o impeachment é mecanismo para afastar um presidente da República. No dizer de Pontes de Miranda, “tem por fito impedir que a pessoa investida de função pública continue a exercê-la”[6]. Mas qual presidente da República deve ser afastado pelo impeachment? A lógica cartesiana responde: aquele que comete crime de responsabilidade. Isto é: o presidente que pratica atos contrários à Constituição em seu conjunto ou contra a própria existência ou estabilidade da ordem constitucional.
A conduta a ser enquadrada no suporte fático das normas que descrevem os crimes de responsabilidade, diante da sua abertura e vagueza semântica, podem acolher diversos comportamentos. Mas, qualquer que seja o comportamento, deve se alinhar minimamente às descrições normativas, isto é, a uma plataforma jurídica que apoia o início do processo de impeachment. Crimes de responsabilidade não podem ser inventados segundo a voluntas política de uma qualquer maioria.
A falta de base política, divorciada da prática de um crime de responsabilidade, não constitui elemento válido para afastar o chefe do Executivo pela via do impeachment. Não em um regime presidencialista. O impedimento presidencial só é legítimo se houver uma denúncia em que há a prática de um crime de responsabilidade. E não pode ser utilizado como uma espécie de moção de desconfiança, típica do parlamentarismo. Querer emprestar esse papel a ele seria amarrar a seus pés uma âncora parlamentarista e subverter o sistema constitucional vigente no presidencialismo. Além de causar a fragilização, diante de forças políticas adversas, do presidente.
Ao contrário, o impeachment é uma resposta jurídica e institucional àqueles governantes que desprezam a ordem constitucional. É uma medida de regeneração do ambiente democrático, corroído pelos crimes de responsabilidade[7]. E não uma ameaça para o chefe do Executivo que perde apoio no Congresso Nacional.
O enquadramento de uma conduta como crime — seja de responsabilidade, seja comum — não se resume a uma consideração estritamente política. Crimes de responsabilidade, ainda que infrações político-administrativas, não são definidos pelo poder criativo de instâncias da política. Ao contrário, tornam presente um aspecto jurídico do impeachment, que confere estabilidade ao sistema presidencialista.
A condenação — ou não — pela prática de crimes de responsabilidade é uma decisão política — e o Parlamento deve arcar com as consequências de sua decisão. Mas a política e seus atores não têm a força para inventar crimes de responsabilidade, sob o risco de se violar “as regras do jogo”. Advoga-se, pois, a competência do STF para julgar se a decisão do Poder Legislativo que abre o processo de impeachment encontra correspondência mínima com o suporte fático dos crimes de responsabilidade.
Tal aferição não é ofensa à separação dos Poderes. É apenas a circunscrição dos atos de um Poder à normatividade constitucional, integrando o próprio sistema de freios e contrapesos. Quando o STF se abstém de apreciar o ato que considera crime algo que não é, permitindo o início de um processo sem base jurídica, promove o efeito de “desconstitucionalização” do impeachment. E abre as portas para o abuso.
As democracias definham, sabe-se, por brechas que o próprio regime concede a seus adversários. Golpes parlamentares, promovidos por aberturas espúrias de processos de impeachment não podem ser desconsiderados. O Poder Judiciário deve se consolidar como uma barreira de defesa da democracia constitucional. Para tanto, deve alterar a sua compreensão do processo de impeachment, ampliando o controle constitucional sobre as regras desde o início do jogo — e não em um momento em que ele já esteja perdido. Sob pena de a democracia ser vitimada por novas pedaladas. Ao fim e ao cabo, não é sobre impeachment: é pela integridade da democracia constitucional.
[1] Cfme https://oglobo.globo.com/politica/impeachment-de-dilma-foi-por-falta-de-apoio-politico-nao-pedaladas-fiscais-afirma-barroso-25379057
[2] https://www.jota.info/stf/do-supremo/barroso-dilma-nao-foi-afastada-por-crimes-de-responsabilidade-ou-corrupcao-05072021
[3] Cfme https://oglobo.globo.com/politica/impeachment-de-dilma-foi-por-falta-de-apoio-politico-nao-pedaladas-fiscais-afirma-barroso-25379057
[4] Cfme https://oglobo.globo.com/politica/impeachment-de-dilma-foi-por-falta-de-apoio-politico-nao-pedaladas-fiscais-afirma-barroso-25379057
[5] Conforme Emb. Decl. na ADPF 378/DF.
[6] Comentários “Constituição da República dos E.U. do Brasil”. T.I. Rio de janeiro: Guanabara, 1937, p.592.
[7] Conforme https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-dever-do-impeachment-26022021