
Após os atos golpistas no Distrito Federal, quando as polícias distritais finalmente começaram a agir, após uma longa omissão que culminou com a invasão das sedes dos Três Poderes, um fato inusitado teria ocorrido durante a noite. Buscando refúgio, bolsonaristas se dirigiram para o acampamento golpista montado há meses em frente ao Quartel-General do Exército Brasileiro.
Até aí, algo previsível. Mas o surpreendente é que os policiais que se dirigiram ao local, sob ordens de, finalmente, desobstruir as vias públicas, teriam sido impedidos de executar a missão. Uma barreira montada por militares do Exército teria impedido a ação legal, obstando, inclusive, que possíveis golpistas fossem presos em flagrante com instrumentos que comprovassem suas participações no crime.
Essa suposta ação dos militares do Exército, obviamente realizada sob o comando de autoridades superiores, demonstra, além de uma intenção mesmo involuntária de dar abrigo a criminosos, uma afronta ao Poder Público constituído, nesse caso, aos Três Poderes da República covardemente atacados.
Mas essa não foi a primeira vez que, nos breves sete dias do governo Lula, as Forças Armadas afrontaram a Presidência da República. A antecipação da passagem de comando dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, bem como a indigna falta do ex-comandante da Marinha na sua própria passagem de comando, são exemplos contundentes de que se as Forças Armadas deveriam ser regidas pela hierarquia e disciplina, essas premissas não estão sendo de forma alguma respeitadas.
Por outro lado, não se pode negar que Jair Bolsonaro sabia lidar muito bem com os milicos. Da exoneração humilhante do general Santos Cruz, acompanhadas das demissões, também desonrosas, dos generais Rêgo Barros e Silva e Luna, culminando com a substituição coletiva dos comandantes das três Forças Armadas – após estes não se alinharem com suas ideias golpistas –, Bolsonaro impôs e demonstrou toda a sua autoridade como comandante supremo dos fardados.
Para Bolsonaro, nunca interessou a vontade dos milicos. Sim, ele soube agradá-los com cargos e aumentos salariais, mas entendia muito bem, por ter sido militar, que esses agentes são regidos pelos pressupostos da obediência aos regulamentos e pelo temor ao Código Penal Militar.
Dessa forma, como preceitua literalmente os estamentos militares, os militares devem acatar as autoridades civis e a sua subordinação é impessoal, visando à autoridade e não à pessoa. Ou seja, não cabe aos fardados um juízo de valor sobre a pessoa ou a ideologia da autoridade civil a que estão subordinados, mas sim cumprir suas ordens nos limites da Constituição e das leis, interpretadas, em seu grau máximo, pelo Supremo Tribunal Federal e nunca por eles próprios. E se não o fizerem, devem ser exonerados e punidos, simples assim.
Com essa percepção, afirmando dia sim e outro também sua autoridade de chefe supremo das Forças Armadas, Bolsonaro colocou os militares, sempre tão resilientes às autoridades civis, docilmente propensos a realizarem todas as suas vontades mais tresloucadas. A única coisa que eles não embarcaram de corpo, já que de alma não podemos afirmar, foi a tentativa de golpe de Estado, pois isso levaria, em caso de fracasso, todos eles à prisão.
Infelizmente, o que vemos desde a transição do atual governo é que os civis ainda não aprenderam a lidar com os militares. Atos de clara insubordinação à autoridade civil, como as passagens de comando ou a resistência na retirada de golpistas da frente de quartéis, vêm sendo tolerados como coisas menores – o que não são.
A escolha pelos próprios militares do seu chefe, o atual ministro da Defesa, José Múcio, que chegou a legitimar os movimentos golpistas, é outro erro crasso de um governo que se mostra fraco e temeroso desde o início para lidar com suas próprias Forças Armadas.
Lula e seu ministro da Defesa, seja ele quem for, precisam entender o alto grau de subordinação que devem exigir de seus militares, mesmo que necessitem trocar o comando das Forças, punir disciplinarmente e indiciar criminalmente os insurgentes. As autoridades governamentais têm em mãos um grande problema: uma tropa que está se autocomandando e tudo sob a ficção de uma subordinação inexistente ao governo civil.
Se o governo não colocar os generais em posição de sentido e fazê-los entender, mesmo que a fórceps, seu lugar no Estado brasileiro, inclusive mudando o sistema de ensino militar que hoje se autocontrola (o qual trata, por exemplo, o golpe militar de 1964 como uma contrarrevolução), ficaremos reféns da boa vontade de uma geração de militares contaminada pela indisciplina e a quebra da hierarquia. E nesse triste cenário, o que nos resta será torcer para não apoiarem um golpe de Estado nos próximos anos.