Coronavírus

Federalismo em tempos de pandemia

É imperativo buscar uma harmonização mais consistente entre os esforços da União e dos demais entes federados

Crédito: Pixabay

Com os crescentes custos advindos do combate ao Covid19, estados e municípios pressionam, política e judicialmente, por mais recursos e mais poderes para tributar e para definir regras locais, em prejuízo da sistemática operacionalizada pela União. O artigo sugere cautela para garantir a eficiência das ações na área de saúde, considerando o histórico de irresponsabilidade fiscal e da falta de consequências concretas para os maus gestores.

O enfrentamento da pandemia não pode servir de salvo-conduto para a adoção de políticas ineficientes.

Toda essa situação tem gerado um tensionamento jurídico entre a União, os estados e os municípios, especialmente em duas áreas. Uma delas é de ordem financeira: a escassez de recursos motiva uma demanda por mais independência econômica, uma vez que estados e municípios não teriam musculatura tributária comparável àquela da União. A outra é política-administrativa: a União quer obrigar estados e municípios a seguirem a política federal na área de saúde, enquanto os entes federados periféricos desejam estabelecer suas próprias regras.

Historicamente, embora o Brasil transite entre posições mais e menos concêntricas, a dispersão da reserva normativa tende a ser limitada. Ao longo do tempo, esse poder legal colide com o poder “real” exercido pelas autoridades locais. Ao poder de fato exercido pelos líderes locais, contrasta a acumulação da legitimidade nas mãos de instituições centrais, ciosas e avessas a renunciarem às suas prerrogativas.

No período colonial, Portugal concentrava não apenas o poder decisório originário, mas também a competência para revisar e reformar decisões locais. Ministro da Justiça de Vargas, Francisco Campos sugeria que o federalismo no Brasil nasceu d´uma necessidade de melhor organização administrativa, ao invés de ter origem num anseio das populações ou das lideranças políticas locais. De todo modo, estados e municípios dependem dos repasses de verbas federais, e muitos dos embates políticos não versam sobre mais autonomia, nem responsabilidade, mas sobre a obtenção pura e simples de mais recursos.

O regime federalista atribui, essencialmente, a essa “figura central” (União) a função de exercer atribuições jurídico-factuais para propiciar o equacionamento dessa estrutura complexa e integrativa.

No campo legal, a Constituição é prolixa, vaga e ambígua o suficiente para acomodar uma série de interpretações sobre o modelo brasileiro de federalismo, segundo as preferências políticas de cada intérprete. O modelo norte-americano, inspirado por James Madison e Hamilton, demanda argumentos por mais autonomia. O Judiciário norte-americano discute muito sobre o dever de os estados-membros da federação executarem leis e ordens da União, isto é, de cederem agentes e outros recursos para executar atividades derivadas de escolhas feitas em Washington, D.C. É o chamado “commandering”.

Ocorre que, normalmente, as demandas por mais autonomia estão dissociadas da responsabilidade por ações imprudentes ou ilícitas. De fato, o pacto federativo é invocado para afastar as consequências de danos ao Erário e à finalidade pública. Funciona como uma espécie de salvaguarda a premiar a irresponsabilidade, fiscal ou administrativa.

Por exemplo, os entes federados conseguem obrigar a União a garantir mútuos internacionais – com dinheiro de toda a nação – mesmo se o estado ou o município pretendente violar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse mesmo tempo, o Estado pode sempre contar com mais uma moratória para deixar de pagar precatórios. No Brasil, parece sempre haver um perdão aguardando logo à frente, na forma de um parcelamento tributário, para os particulares, ou de uma tese para justificar um suposto interesse público, para o Estado.

Como nada se cria, nem se perde (“nihil interit”), a conta da atividade local será paga pela população de todo o país. Por interesse nacional, as demandas por mais recursos necessariamente devem estar associadas à responsabilização efetiva da ineficácia e de desvios.

O professor Bonavides preceitua que essa descentralização executiva representa um traço característico do próprio modelo federativo adotado, todavia, a conta dessa “autodeterminação política”, no manuseio inadequado e irresponsável de recursos advindos de circunstâncias excepcionais, como agora acontece, não deveria ser imputada à União nas hipóteses de má gestão pelos entes locais.

De modo semelhante, é importante tomar cuidado para que as decisões que privilegiem o poder local frente ao poder federal não causem danos à organicidade do combate à pandemia. As ações do Executivo federal podem e devem ser controladas, e o Sistema Jurídico permite essa fiscalização tanto com base em critérios de eficiência como de forma. No entanto, esse controle não pode ter por exclusivo critério determinante o desejo de limitar eventuais escolhas políticas discricionárias, nem de impor-lhe derrotas políticas. Os critérios decisórios devem ser claros e consistentes, sem personalização.

Vivemos num mundo hiper-conectado, com rápido fluxo de pessoas, bens e informações. A logística da própria vida está dispersada, como estão dispersos centros produtores e consumidores. Decisões locais podem afetar adversamente o fornecimento de bens e de serviços de primeira necessidade, como os insumos médicos e os recursos humanos necessários para debelar a crise. Talvez não faça sentido um poder local requisitar toda a produção de máscaras, e somente uma instituição mais abrangente possa entender e coordenar a destinação desses bens como eficiência, considerando toda a coletividade.

O federalismo dualista finda por estimular essa discussão em torno das prerrogativas dos entes locais e regionais em detrimento de uma coordenação sistêmica da União. A forma cooperativa de federação, por seu turno, estimula a colaboração entre as instâncias de poder (governo central e local), sustentando mecanismos de auxílio e repartição de competências constitucionais.

Em todo caso, os estados e municípios não podem utilizar recursos financeiros no aparelhamento de combate ao Coronavírus sem a observância dos princípios que regem a Administração Pública, notadamente quanto à juridicidade dos seus atos (compatibilização com a Constituição Federal) e eficiência de suas ações.

Com efeito, como lembra o Prof. Frederico Seabra de Moura, é imprescindível o respeito ao regramento da legalidade, constantemente desrespeitada pela edição de decretos com inúmeras violações a direitos individuais e coletivos. Acrescentamos, ainda, que é necessária a observância da legalidade material, o “substantive due process”.

O estado emergencial não dispensa, assim, os entes de prestar contas e todas as exceções à Lei de Responsabilidade Fiscal devem ser devidamente justificadas. Em tempos de escassez, toda verba pública deve ser utilizada com mais diligência, razão pela qual urge destacar que a pandemia não enseja qualquer imunidade na malversação desses recursos.

A aquisição de respiradores e construção de hospitais de campanha devem ser compatibilizados com as necessidades locais, mas a coordenação centralizada da União na implementação nacional das medidas seria fruto imediato da forma federativa constitucionalmente assegurada, sob pena de se inverter todo o nosso arcabouço normativo.

O federalismo, assim como as decisões políticas e o cenário atual, tem cunho dinâmico e há de atender ao conjunto de necessidades que organicamente surgem. Mas as opções administrativas possuem um limite: o da legalidade. Lembrado que o conceito de legalidade administrativa é abrangente e inclui outros preceitos, como a moralidade. Ademais, toda ação executada precisa ser proporcional ao problema enfrentado.

Apesar da Constituição Federal regulamentar especificamente a distribuição da receita tributária entre os entes federativos, o doutrinador Bijos leciona que, no que tange à responsabilidade pelo desempenho de determinadas políticas públicas, a competência se revela de maneira concorrente ou comum, o que pode levar a eventuais conflitos e decisões disjuntivas.

O cuidado com a saúde, direito social e fundamental, enseja a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, II, da Constituição Federal). Tal competência, no entanto, não concede aos entes locais a prerrogativa do cometimento de uma conduta calcada em irresponsabilidade fiscal.

Em síntese conclusiva, é imperativo buscar uma harmonização mais consistente entre os esforços da União e dos demais entes federados, amparada pela autoridade dos argumentos em estudos técnicos, e não pelo argumento de autoridade. Qualquer tentativa de mediar eventuais conflitos deve levar em consideração a dimensão nacional e transnacional da logística de combate à pandemia, sem privilegiar decisões locais dissociadas da eficiência técnica e sem levar em consideração as desigualdades regionais.

———————————–

BIJOS, D – Federalismo e estratégias eleitorais. In Revista do Serviço Público. Brasília, v. 63, p. 7-24, jan/mar, 2012.

BONAVIDES, Paulo – Teoria Geral do Estado. 11ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

ISBN 978-85-392-0405-2.

          ; Teoria Constitucional de Democracia Participativa. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. ISBN 978-85-7420-888-6.

MIRANDA, Jorge – Teoria do Estado e da Constituição. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. ISBN 978-85-309-7988-1.