diversidade

Falso dilema no protocolo do CNJ sobre julgamento com perspectiva de gênero

Ou se compreende a heterogeneidade no discurso jurídico ou se assume o caráter não democrático do Direito

PEC Kamikaze
Crédito: Unsplash

O discurso jurídico, embora postule a neutralidade como uma de suas bases, não é imune à performatividade da língua. Basta estar viva, vivo ou vive para perceber que a comunicação não se dá por meio de uma única linguagem, mas por um heterodiscurso, cujas variações incluem modos de falar de grupos, jargões profissionais, diversidade dos gêneros de escrita, diferentes articulações separadas por gerações, as tendências e os partidos, as modas passageiras, as interferências temporais nas palavras de ordem, no vocabulário, as dissonâncias individuais[i].

Decidir sem considerar que o Direito é construído a partir de formulações linguísticas e sem realizar um processo de decisão, que observe as dissonâncias individuais e as diferenças sociais, restringe a operação jurídica a um universo particular, ignorando, desse modo, a multiplicidade de interações que se verifica na realidade concreta da sociedade.

A interpretação tradicional ignora as pessoas destinatárias do Direito como uma multiplicidade diversa de indivíduos cujas realidades são diferentes.

Operar a normatividade a partir de simples subsunção do caso a uma moldura legal pré-estabelecida ou à guisa de ponderação de valores faz derruir o sentido do Direito, orientado deontologicamente para construir resultados de índole civilizatória a partir de um conjunto de linguagens que desafia uma análise dinâmica e múltipla de todo esse plurilinguismo[ii] [iii].

Nesse sentido, é pobre a apreciação e são estéreis os resultados de uma análise pautada não no conjunto de vozes sociais, mas tão-somente numa abstração concebida a partir de um indivíduo em particular (homem branco, de classe média, heterossexual), que nem mesmo representa a maioria numérica da sociedade.

Esse tipo de comportamento, em vez de proporcionar uma análise neutra e universal, limita o Direito a um viés, substituindo a análise jurídica por uma interpretação partidária de determinado grupo específico, de modo a ignorar a totalidade da representação postulada pela ciência jurídica.

Esse método (apenas aparentemente neutro) separa os casos concretos do âmbito de aplicação do Direito e dissocia-se do postulado central da universalidade.

As características da generalidade e da abstração do Direito não devem servir de pretexto para que se relativizem, no seu âmbito de aplicação, os diversos grupos com as variações próprias de uma sociedade plural.

O Direito, enquanto sistema que rege as relações de toda a sociedade, aí incluídas todas as identidades e individualidades, não deve ser dirigido para uma operação que extraia de seu conjunto de normas um único e padronizado modelo peculiar.

É contrário ao próprio Direito a individualização que lhe retire o caráter democrático, de modo que a unidade do Direito não deve girar em torno da extração de um único enunciado possível, mas da normatividade adequada a partir dos casos concretos (múltiplos e diversos)[iv].

São premissas do Direito no Estado Democrático a abrangência da heterogeneidade social e o respeito à dissonância individual. Análises que ignorem essa heterogeneidade social são inadequadas porque partem de uma visão que não contempla toda a sociedade no seu âmbito de atuação.

Em termos práticos, a incapacidade do método tradicional para interpretação e aplicação do Direito resultou evidenciada pelo lançamento, recentemente realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do protocolo para julgamento com perspectiva do gênero[v].

Embora muitas pessoas sejam resistentes a rever os métodos de julgamento ou sequer reconheçam as contradições existentes do modelo predominante, o CNJ não se esquivou de reconhecer o problema da opressão guiada por gênero e suas interseccionalidades e propor as bases de uma solução.

É falso o dilema entre aplicar o julgamento com perspectiva de gênero e aplicar um Direito neutro e universal.

Rever com urgência os métodos tradicionais incorporados pela praxis jurídica de modo a concretizar o Direito é que é o desafio para quem pretende uma concepção do Direito como instrumento da democracia.

O dilema, longe daquele sugerido, evidencia-se de outra maneira: ou se compreende a heterogeneidade como partícipe do discurso jurídico ou se assume de vez o caráter não democrático do Direito.

Se as raízes do Direito se introduzem em meandros obscuros de apropriação do discurso para a proteção de grupos privilegiados, suas bases epistemológicas orientam para um instrumento de justiça social, sendo, portanto, necessário afastar as meras descrições e interpretações particulares e associar-se aos princípios que afirmam o Direito centrado na dignidade humana.

Nesse contexto, o protocolo do CNJ para julgamento com perspectiva de gênero tende a ser uma bússola a reconhecer a estratificação de estereótipos no discurso jurídico e orientar para horizontes em que haja a concretização do Direito de forma igualitária.


[i] No dizer de Cattoni de Oliveira: “… Toda comunicação implica intepretação, não no sentido de que seja preciso desvendar um pretenso verdadeiro sentido, ou seja, aquele sentido que o emissor quis ou intentou expressar, mas porque interpretar implica atribuir sentido, atribuir significações, compreender o que se comunica, sob o pano de fundo de tradições e mundos da vida plurais. ” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, p. 46).

[ii] “Não há um método ou métodos capazes de revelar a verdade de uma norma jurídica – e nisso concordamos com Kelsen. Mas também não há métodos capazes de revelar ou descrever o quadro de verdades objetivas, a-históricas e descontextualizadas, pois nenhum método é instrumento neutro capaz de superar a sua própria condição de obra humana, histórica, datada, contextual. ” (Idem, ibidem).

[iii] Várias críticas podem ser feitas ao raciocínio da ponderação de valores. Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou, então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita?

Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual, numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, p. 256).

[iv] A normatividade, segundo a teoria de Friedrich Müller, está necessariamente conectada à realidade. A norma (que não se reduz ao texto) é estruturada por partes interligadas que, levando em conta a ideia normativa orientadora contida no enunciado (“programa da norma”), conecta o texto com a realidade, produzindo a “normatividade”. O jurista separa, assim, a normatividade da “estrutura da norma”, que designa o nexo entre as partes conceituais de uma norma (programa da norma – âmbito da norma). O “âmbito da norma” é justamente a conexão entre fatos (elementos da realidade social) que se encontram pré-formados (MÜLLER, 2008, p. 39-40).

[v] Esclarece o prefácio: “Este instrumento traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e também um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos.” (CNJ, 2021. Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN nº 978-65-88022-06-1).

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Processo Constitucional. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; 3ª ed. rev. e ampl.; Belo Horizonte: Fórum, 2016.

Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico] / Conselho Nacional de Justiça. — Brasília : Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo : PDF 132 páginas). Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br e ISBN nº 978-65-88022-06-1.

MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Friedrich Müller; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.