Análise

Eterno retorno em tempos de pandemia: aumentos de preços

Análise sobre a (re)criminalização de determinadas práticas comerciais

novas formas para o uso de precatórios
Crédito: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas

Recentemente, o JOTA publicou artigo intitulado de “Aumento de Preço Pode Ser Passível de Sanção Penal em Época de Pandemia?” Na ocasião, os autores Miguel Pereira Neto e Clara Moura Masiero, além de reconhecerem ser natural eventuais elevações de preços em razão de aumentos de demanda, também afirmaram que “a mera atribuição de preço a um produto não é criminalizada per se.”

Tais afirmações, com as quais o presente artigo está alinhado, decorreram da análise de dispositivos penais da Lei de Crimes Contra a Economia Popular (Lei nº 1.521/1951), da Lei de Crimes Contra as Relações de Consumo e as Ordens Econômica e Tributária (Lei nº 8.137/1990) e também do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Nesse sentido, destacam-se algumas considerações quanto a tais dispositivos:

  1. O art. 3º, VI, da Lei nº 1.521/1951 criminaliza eventuais aumentos de preços relacionados tão somente a condutas enganosas e/ou fraudulentas;
  2. O art. 4º, “b”, também da Lei nº 1.521/1951 dispõe que aumentos de lucros relacionados, estritamente, à prática de usura constituem crime, em linha com o que também é disposto pelo art. 7º, V, da Lei nº 8.137/1990; e
  3. A Lei nº 1.521/1951, a Lei nº 8.137/1990 e a Lei nº 8.078/1990 não estabelecem quaisquer outros tipos penais relacionados a elevações de preços de produtos e/ou serviços.

Como é patente, o ordenamento jurídico pátrio, atualmente, só define como crime eventuais aumentos de preços que estejam relacionados a condutas enganosas e/ou fraudulentas ou à prática de usura.

A inexistência de tipos penais sobre aumentos de preços em outras situações além das descritas acima, deu margem à propositura de dois projetos de lei em curso no Congresso Nacional que visam justamente (re)criminalizar eventuais práticas de elevações de preços, tema que será ora explorado.

Com efeito, o Projeto de Lei nº 734/2020 propõe criminalizar eventuais elevações de preços em tempos de pandemia a partir de alterações no Código Penal e no Código de Defesa do Consumidor. No mesmo sentido, o Projeto de Lei nº 771/2020 também visa a criminalização de eventuais elevações de preços em tempos de pandemia ao propor alterações à Lei de Crimes Contra as Relações de Consumo e as Ordens Econômica e Tributária.

A partir dos referidos projetos de lei, parece ser intenção do atual legislador preencher uma eventual “lacuna legislativa” que permita repreender – penalmente – práticas comerciais envolvendo elevações de preços.

Haveria, contudo, uma “lacuna legislativa” a ser efetivamente preenchida? As alterações legislativas propostas pelos referidos projetos de lei seriam capazes de gerar benefícios certos e líquidos se e quando aprovadas?

Tudo indica que não. A criminalização de práticas relacionadas a aumentos de preços não é solução legislativa criativa, tampouco inovadora. Além disso, projetos de lei em tal sentido parecem ignorar algumas importantes questões que devem ou, pelo menos, deveriam ser levadas em consideração.

Em primeiro lugar, considerando que a aplicação do Direito Penal, em regra, traz consequências à liberdade do indivíduo e, portanto, representa o grau máximo de intervenção estatal nas liberdades individuais; é evidente que ele não deve ser utilizado pelo legislador como prima ratio, devendo ser apenas a ultima ratio legislativa. Isto é, o Direito Penal só deve ser legislativamente invocado nas hipóteses em que outras normas sejam incapazes de tutelar o bem jurídico cuja proteção é pretendida.

Em segundo lugar, deve-se relembrar que eventuais práticas envolvendo elevações de preços eram, até o início desta década, passíveis de configurar crime contra a ordem econômica, nos termos da antiga redação do art. 4º da Lei nº 8.137/1990. Contudo, as alterações legislativas promovidas pela Lei nº 12.529/2011 em tal artigo afastaram tal possibilidade.

A esse respeito, é importante esclarecer que as referidas alterações legislativas foram pontualmente debatidas pelo legislador naquela ocasião,[1] visando, além de garantir maior segurança jurídica à atuação empresarial, alinhar a legislação brasileira às melhores práticas adotadas por ordenamentos jurídicos de outros países e defendidas pela doutrina, que consideram que a criminalização de práticas restritivas à concorrência deve estar reservada àquela mais danosa, sem quaisquer efeitos líquidos positivos ao mercado[2] e única que pode, em determinados casos, ser considerada ilícita pelo seu objeto e analisada sob a regra per se, ou seja, à prática de cartel.

Em terceiro lugar e relacionado ao que é tangenciado acima, também deve ser ponderada a insegurança jurídica que reveste o que é proposto pelo Projeto de Lei nº 734/2020 e pelo Projeto de Lei nº 771/2020.

Tais projetos de lei podem reintroduzir no ordenamento jurídico pátrio um tipo penal – proposital e recentemente – afastado pelo legislador, além de serem capazes de tornar ainda mais arriscada a atividade empresarial, a qual já é demasiadamente desafiadora tendo em vista o emaranhando de normas legais e infralegais que regulam seu desenvolvimento. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, que, para discorrer sucintamente sobre o tema ora proposto, o presente artigo precisou referenciar, pelo menos, quatro diferentes diplomas legais atualmente vigentes no país.

Em quarto lugar, não podem ser afastados os eventuais impactos econômicos na oferta de bens que as alterações legislativas propostas nos referidos projetos de lei podem causar. Apesar de buscarem criminalizar apenas eventuais elevações de preços sem justa causa, a indefinição do que poderia configurar “justa causa” endossa a insegurança jurídica dos referidos projetos de lei em curso no Congresso Nacional.

Nesse sentido, a criminalização de eventuais elevações de preço vinculadas a um fator discricionário e subjetivo pode, principalmente em tempos de pandemia – revestidos, notadamente, de diversas indefinições –, desincentivar os agentes econômicos a ofertar determinados produtos e/ou serviços em face da necessidade de ajustar seus respectivos preços – a qual pode surgir, simplesmente, em razão de choques de demanda.

Por último, deve ser reconhecida a capacidade das alterações propostas pelos projetos de lei em tela atingirem pequenos e médios comerciantes – na contramão, provavelmente, do que é almejado. Como amplamente divulgado neste período de pandemia de Covid-19, boa parte do varejo nacional – elo que interage diretamente com os consumidores finais – é composto justamente por pequenos e médios comerciantes.

Por essas razões, é possível concluir que a (re)criminalização, de fato, não parece ser a melhor solução para atacar eventuais elevações de preços em tempos de pandemia. Ao contrário, trata-se de “solução legislativa” que suscita sérios riscos que devem ser necessariamente avaliados e, além disso, que esquece os outros meios já existentes para investigação e repressão de tais práticas comerciais.

Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, o art. 39, X, do Código de Defesa do Consumidor que já dispõe ser vedado a fornecedor “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”, bem como legitima diversos agentes para assegurar a defesa dos direitos e interesses dos consumidores, dentre os quais o próprio consumidor, este, inclusive, com prerrogativa de foro em seu domicílio, facilitando e garantindo o seu acesso à justiça.

Por último, também é válido destacar que diversas das “soluções legislativas” que têm surgido neste período de pandemia têm sido ativamente analisadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), o qual vem desempenhando um importantíssimo papel ao avaliá-las com viés crítico e, principalmente, pró-competitivo.

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[1] Nesse sentido: BRASIL, Câmara dos Deputados – Comissão Especial em Defesa da Concorrência. Relatório do Deputado Ciro Gomes ao Projeto de Lei nº 3.937, de 2004. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FE2C51B804780E18A06CF65143BDA016.proposicoesWebExterno1?codteor=518696&filename=Tramitacao-PL+3937/2004>. Acesso em 09 de jan. de 2019.

[2] SOKOL, D. Daniel. Reinvigorating Criminal Antitrust, 2018. Disponível em: <https://poseidon01.ssrn.com/delivery.php?ID=339119017068084098071000095121111006099039071063064018087114126025126094088103007098102118004001052027117106098114002001122077109094092045027121071121095066126105009082045078087092000116117121094121079066089029115108005083016118115008088125127092116&EXT=pdf>. Acesso em 09 de jan. de 2019.

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