Encerrada a eleição presidencial, o colapso do teto de gastos resgatou o debate sobre medidas para comportar despesas públicas no Orçamento. Na dinâmica que conduziu o debate eleitoral, ficou evidente que havia muitas promessas para pouco espaço fiscal. Também ficou claro que os candidatos pretendiam garantir a estabilidade das contas públicas – ao menos segundo os vagos planos de governo que foram apresentados. É chegado o momento de conciliar uma coisa com outra. Por óbvio, nem sempre é possível chegar a uma solução ótima. De todo modo, surge uma oportunidade para iniciar um debate sobre a revisão das regras fiscais, uma vez que elas deixaram de ser críveis.
Fato é que o arcabouço fiscal se tornou inoperante no médio prazo. Temos hoje regras empilhadas, mas nenhuma garantia de estabilidade fiscal sustentável de médio e longo prazo. Não há dúvidas de que o país precisa restabelecer uma âncora fiscal, mas o desafio reside em encontrar uma que seja resistente ao tempo e às idiossincrasias de uma sociedade Estado-intensiva. Esse é um aspecto que não diz respeito a um ou outro governo, mas ao nosso modelo de sociedade e às suas demandas legítimas.
Em 2016, a fragilidade da regra das metas de resultado primário evidenciou a necessidade de estabelecer uma regra para o crescimento máximo dessas despesas. Como não havia possibilidade de recorrer a um novo aumento da carga tributária para fazer frente ao recorrente avanço das despesas públicas, duas propostas surgiram à época.
A primeira era criar uma regra no Plano Plurianual (PPA) que conferisse liberdade a cada governo eleito, em articulação com o Congresso, para estabelecer condições para o crescimento das despesas ao longo dos próximos quatro anos. A norma vedaria qualquer alteração no último exercício fiscal, de forma a blindar as demandas eleitorais que naturalmente surgem no derradeiro ano de governo. Sua virtude era garantir a prerrogativa de que as demandas da sociedade fossem acomodadas a cada ciclo eleitoral. Na leitura do mercado, porém, ela não eliminava as incertezas fiscais.
A segunda era fixar, na Constituição Federal, a inflação passada como limite para o crescimento máximo das despesas nos próximos 20 anos. A regra seria passível de revisão no décimo ano, para adaptar situações não previstas ao longo desse horizonte temporal. Sua vantagem era se apresentar como uma regra simples, duradoura, de fácil comunicação e que suprimia as incertezas fiscais em um horizonte relevante. Por outro lado, era uma inserção na Constituição e, portanto, qualquer mudança exigiria a aprovação de uma nova emenda constitucional.
Não vem o caso aqui resgatar as condições e o contexto da época, mas, ao final desse debate, optou-se pela segunda proposta, que resultou na Emenda Constitucional 95/2016, que criou o dispositivo que ficou conhecido como teto de gastos. Passados seis anos de existência, o que se depreende dessa escolha é que a regra mostrou-se eficiente no curto prazo, mas foi incapaz de resistir ao correr do tempo, perdendo credibilidade à medida que aumentava a pressão pelo aumento de gastos públicos.
É certo que houve uma pandemia, mas o instrumento modificativo, que deveria ser algo excepcional, passou a ser normalizado, enquanto, em paralelo, a capacidade de gestão do Orçamento pelo Poder Executivo foi diluída. A medida de eficiência da regra pode ser verificada pelo comportamento da curva de juros. No período de 2016 a 2018, os juros reais ex ante ficaram constantemente acima dos juros reais ex post; de 2018 até a pandemia, ficaram equilibrados; depois da pandemia, a situação se inverteu completamente, sinalizando dúvidas quanto ao vigor e rigor da própria regra.
Sem entrar no mérito dos motivos que levaram ao crescimento do gasto público, bem como as escolhas que o motivaram e a legitimidade dessa decisão, fato é que o teto colapsou e, no momento, o país não dispõe de uma âncora fiscal crível. A origem da perda de credibilidade está na constante edição de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) para autorizar um waiver, ou seja, uma licença para gastar acima do teto. Ora, se para cumprir uma regra é necessário usar um artifício para driblá-la, a norma em si mesma deixa de transmitir credibilidade – ainda que ela formalmente continue a existir e não altere significativamente os humores do mercado.
O que importa não é a regra em si, mas se ela é crível ou não. E isso tem a ver com o ambiente institucional de cada país no conceito de Douglass North, para deixar bem claro o emprego de tal termo neste espaço (seria necessário um outro artigo para explicá-lo). Os últimos seis anos revelaram que nosso ambiente institucional não é compatível com uma regra rígida e de longo alcance para o crescimento dos gastos públicos – seja devido à arena política, seja devido às constantes demandas sociais. A isso, soma-se a inexistência de instrumentos eficientes de controle e revisão dos gastos públicos, que até avançaram no papel, mas não alteraram nosso ambiente institucional.
Diante desse cenário, um possível caminho a ser percorrido para restabelecer a credibilidade e a perenidade de uma âncora fiscal passa, em primeiro lugar, por desconstitucionalizar o teto de gastos, evitando que PECs se transformem em um instrumento orçamentário. Emendas constitucionais, afinal, são normas para lidar com situações não recorrentes, com fins muito específicos e objetivos devidamente identificados como escolhas da sociedade. O que se assistiu no período recente, no entanto, foi à banalização do teto e da própria Constituição – algo impensável à época em que o instrumento foi aprovado, dado que sua existência e cumprimento estavam vinculados ao acionamento de gatilhos.
Em segundo lugar, é necessário adotar uma regra legal com flexibilidade controlada, que sinalize ao mercado a possibilidade de alterações a partir de parâmetros cíclicos e anticíclicos preestabelecidos, considerando objetivos fiscais de médio prazo. Dessa maneira, além de não haver surpresas, as demandas da sociedade seriam devidamente acomodadas a cada ciclo eleitoral.
Em terceiro lugar, é fundamental assegurar eficiência aos instrumentos existentes para o controle e a revisão dos gastos públicos – que embora tenham avançado nos últimos anos, ainda não tiveram o poder de virar a chave da formulação de políticas públicas. Lamentavelmente, elas continuam a ser aprovadas uma atrás da outra, sem a devida estimativa de seus impactos e a avaliação de seus resultados. O governo federal, no entanto, dispõe de um quadro técnico que há muito se dedica a essa temática, de forma que o início do próximo governo pode ser uma excelente oportunidade para colocar este trabalho em prática.
Em suma, estabelecer um arcabouço fiscal de médio prazo, como já vem sendo adotado por vários países, torna possível alocar as demandas cíclicas ao Orçamento e, ao mesmo tempo, emitir sinais críveis de sustentabilidade fiscal. Nesse sentido, a proposta que acabou por ser preterida em 2016 pode ser um ponto de partida para uma necessária discussão que se avizinha em 2023.