Combate à pandemia

Empréstimo compulsório para o combate ao coronavírus

Possíveis inconstitucionalidades do PLP 34/2020

subvenções
Crédito: Raphael Ribeiro/BCB

A pandemia de Covid-19 tem gerado enorme impacto sobre a economia de todos os países, que são obrigados a lidar com gastos extraordinários na área da saúde, na proteção de trabalhadores e empresas, dentre outros. Diante disso, o orçamento inicial e ordinariamente planejado e aprovado pelo Congresso Nacional requer ajustes, mormente por meio da abertura de créditos extraordinários “para atender a despesas imprevisíveis e urgentes” (art. 167, § 3º, da Constituição). Ademais, ainda em face da crise em curso, há sucessivas quedas na arrecadação de tributos. Como decorrência natural, aparece no debate público a questão de fontes de financiamento, inclusive como preocupação com o equilíbrio fiscal.

É neste contexto que surge a preocupação, sempre sensível, com projetos de lei com o objetivo de aumentar a arrecadação tributária para fazer frente aos custos estatais do combate à pandemia. Contudo, a vedação constitucional à cobrança de tributos em geral imediatamente após sua instituição – sem a necessidade de observância do princípio da anterioridade – reduz drasticamente o leque de opções do legislador para gerar novas receitas ainda em 2020.

Uma das alternativas explicitamente previstas na Constituição para atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública é a instituição de empréstimo compulsório, por meio de lei complementar, nos termos do art. 148, inciso I, da Constituição. Nesse caso, a aplicação dos recursos provenientes do tributo deve ser vinculada à despesa que fundamentou sua instituição, devendo a lei complementar fixar o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate.

Nessa linha, está em discussão no Congresso Nacional o PLP 34/2020, de autoria do Deputado Wellington Roberto, que “[i]nstitui o empréstimo compulsório para atender às despesas urgentes causadas pela situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus (COVID-19)”. De acordo com a proposta, seriam sujeitos passivos do tributo as pessoas jurídicas domiciliadas no país com patrimônio líquido igual ou superior a R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais) na data de publicação da lei complementar, conforme o último demonstrativo contábil (art. 2º, caput, do PLP). O empréstimo compulsório seria de “até 10% (dez por cento) do lucro líquido apurado nos doze meses anteriores à publicação desta lei” (art. 2º, § 1º, do PLP).

O PLP prevê prazo para pagamento de 30 dias, a contar da publicação da lei (art. 2º, § 2º), podendo ser parcelado em até três meses, se for superior a R$ 1 milhão (art. 2º, § 4º). O PLP delega ao Ministério da Economia a definição da alíquota relativa a cada setor econômico (art. 2º, § 3º) e estabelece o prazo de quatro anos após o fim da calamidade para a devolução ao contribuinte dos valores efetivamente utilizados para combater a pandemia (os valores não utilizados devem ser devolvidos em 60 dias).

Numa análise estritamente jurídica do PLP 34/2020, sem adentrar nos seus aspectos econômicos, constata-se que incorre em inconstitucionalidades bastante sensíveis, além de apresentar problemas técnicos que dificultariam sobremaneira o cumprimento das normas nele previstas.

Com efeito, chama atenção que o fato gerador do tributo e a base de cálculo correspondam a situações anteriores à vigência da Lei: ter auferido lucro nos 12 meses anteriores à publicação da Lei Complementar. Ainda que o princípio da anterioridade clássica/anual não se aplique ao empréstimo compulsório previsto no inciso I do art. 148 da Constituição (já que apenas o inciso II faz menção ao art. 150, III, “b”), o tributo proposto parece pretender alcançar fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que vier a instituí-lo. De fato, o empréstimo compulsório previsto no PLP 34/2020 tem por base o lucro auferido anteriormente à sua instituição, potencialmente violando o princípio da irretroatividade da lei tributária (art. 150, III, “a”, da Constituição).

Além disso, o fato de ter obtido lucro no passado não revela, necessariamente, capacidade contributiva no presente. Isso porque a empresa já poderá ter distribuído o lucro do ano anterior a seus acionistas e, no momento atual, estar sendo gravemente afetada pela crise econômica decorrente da própria calamidade pública. Assim, o PLP parece desafiar também o princípio da capacidade contributiva.

Outro aspecto problemático da proposta é a definição do “percentual aplicável a cada setor econômico para cálculo do valor do empréstimo compulsório” pelo Ministério da Economia, o que parece indicar malferimento ao princípio da legalidade. A despeito de sua singularidade, o empréstimo compulsório tem natureza tributária, de modo que a fixação de suas alíquotas deve ser efetuada por meio de lei (complementar, no caso), em observância ao princípio da legalidade (art. 150, inciso I ”, da Constituição).

Deve-se destacar, ainda, que o critério para definição do sujeito passivo (aquele que revela “patrimônio líquido” superior a R$ 1 bilhão) parece ter pouca relação com a própria base de cálculo do empréstimo compulsório (lucro líquido). De fato, uma empresa pode ter patrimônio líquido alto e, ao mesmo tempo, ter lucro líquido baixo. E o oposto também pode ocorrer.

Por fim, importa observar que o PLP 34/2020 não especifica se a base de cálculo para a cobrança do empréstimo compulsório é o lucro contábil ou o lucro fiscal. Note-se: o lucro fiscal (lucro real) é o resultado líquido apurado na escrituração comercial, ajustado pelas adições, exclusões e compensações admitidas ou exigidas pela legislação tributária. De acordo com a Lei n. 9.430, de 1996, o lucro fiscal (real) da pessoa jurídica é apurado trimestral ou anualmente, ainda que possa haver recolhimento mensal, por estimativa (art. 2º). Assim, o período de apuração do lucro líquido previsto no PLP “doze meses anteriores à publicação desta lei” (§ 1º do art. 2º) parece não coincidir com a forma de apuração usual do lucro contábil, tampouco do lucro real, o que pode trazer sérias dificuldades de cumprimento da obrigação pelos contribuintes e uma exigência a mais de custo de conformidade.

Em conclusão, não obstante necessária e imprescindível a preocupação com o equilíbrio das contas públicas, a geração de novas receitas através de um empréstimo compulsório, abstraída a sensível memória que o mecanismo desperta, exigiria observância dos limites estabelecidos pela Constituição para rigoroso respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes. O PLP 34/2020, em razão das fragilidades jurídicas acima apontadas, parece não cumprir os preceitos constitucionais pertinentes, podendo gerar, ao contrário, grande litigiosidade, além de não acenar com a efetividade no controle orçamentário pretendido.