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Emergência, Constituição e pandemia: o caso da PEC do ‘orçamento de guerra’

É preciso mover esforços para impedir que o vírus contamine também a democracia

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

É de uma verdadeira guerra que se trata”. Com essa frase, o Presidente da República de Portugal qualificou a atual situação de anormalidade causada mundo afora pela pandemia do coronavírus e justificou a decretação, em 18 de março de 2020, de estado de emergência em todo o país. O combate à pandemia tem gerado medidas extremas por parte de diversos órgãos e autoridades públicas. Seu resultado, por certo, enseja ambiente institucional atípico, impondo restrições de caráter excepcional a direitos e liberdades constitucionais, além de desafiar o próprio funcionamento regular do poder público. Diversos pleitos eleitorais programados para 2020 já foram adiados em vários países, como Sérvia, Áustria, França, Bolívia, Etiópia e Suíça.

A gravidade do momento com a excepcionalidade das providências sanitárias, econômicas e sociais exigidas levou diversos governantes a recorrer aos mecanismos de emergência contemplados em suas constituições. Muitos textos constitucionais admitem a instauração de regimes jurídicos extraordinários de modo a dotar o poder público do instrumental adequado a enfrentar cenários anômalos de elevada gravidade política e social.

Em determinados casos — como os das Constituições de Brasil, Espanha e Portugal —, são contempladas mais de uma modalidade de regime de emergência, diferindo, sobretudo, em face da natureza da situação de crise e da magnitude dos poderes a serem confiados às autoridades públicas. Tais fórmulas constitucionais autorizam, em distintos níveis e graus, limitar, restringir e, até mesmo, suspender disposições constitucionais, em caráter excepcional e temporário, alcançando, inclusive, direitos e garantias fundamentais. O modelo constitucional brasileiro conta, nesse sentido, com o estado de defesa e o estado de sítio, fórmulas ainda não experimentadas após a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988.

O estado de emergência em Portugal, renovado em 3 de abril de 2020, introduziu normas que restringem atividades econômicas, determinam confinamento compulsório e limitam cultos e cerimônias religiosas. Promove o regime decretado, portanto, limitações extraordinárias a direitos e liberdades constitucionais em função da crise gerada pela pandemia. Procedimento semelhante foi adotado em outros países.

Na Espanha, foi decretado, em 14 de março de 2020, estado de alarme: o mais brando dos três regimes de emergência contemplados no texto constitucional. Em 17 de março de 2020, o Presidente da Colômbia, seguindo a mesma orientação, decretou estado de emergência, mecanismo que — juntamente com o “estado de guerra exterior” e o “estado de comoção interna” — foi instituído pela Constituição com vistas a fazer frente a cenários de grave anormalidade política e social.

Sérvia, Chile, Hungria, Equador e diversos outros seguiram o mesmo caminho. O tema tem sido, ademais, amplamente debatido e avaliado em vários países que, ao menos até o presente momento, optaram por não empregar mecanismos constitucionais de mesma natureza. Enquanto jornais e periódicos norte-americanos repercutem a possibilidade de se decretar lei marcial, na França, fala-se abertamente na imprensa sobre o uso dos poderes de emergência inscritos no art. 16 da Constituição.

Cuida-se de matéria sensível que reclama máxima cautela. Abrir mão de garantias e limitações constitucionais, sobretudo em períodos de crise, pode fazer aflorar indesejáveis inclinações autoritárias.

Os primórdios da era republicana no Brasil revelam, segundo retratam os livros de história, experiências elucidativas sobre o uso desses mecanismos para amparar medidas arbitrárias de viés autocrático. A ponto de Rui Barbosa, ao ponderar sobre o emprego do estado de sítio naquele período, ter asseverado que “elle não salvou a constituição: enthronizou a ditadura”.

Justamente para refrear excessos do Poder Executivo nesses momentos críticos, os regimes de emergência, como regra geral, confiam à esfera parlamentar considerável poder de controle. Assim, ao Poder Legislativo são atribuídas, como regra geral, competências para decidir sobre sua decretação e a prorrogação de suas medidas, bem como intervir para fazer cessar sua vigência.

No Brasil, tem-se trabalhado com alternativa, no mínimo, heterodoxa. Na última semana, foi aprovada na Câmara dos Deputados a PEC n. 10/2020, voltada a estabelecer “regime extraordinário” específico para “enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia internacional”. Popularmente, vem sendo apelidada de “orçamento de guerra”. Dedica-se a proposta expressamente a flexibilizar limites fiscais, financeiros e administrativos para viabilizar tais ações de “enfrentamento”. Para isso, institui mais um órgão colegiado no âmbito do Poder Executivo, matéria que caberia ser veiculada por mero decreto, competente para aprovar o tal “regime extraordinário”. Apesar de contar com integrantes de outras esferas da federação, não detêm eles qualquer direito a voto, submetendo-se o “regime extraordinário” apenas à aprovação de Ministros de Estado e do Presidente da República.

O art. 2º da PEC n. 10/2020, por seu turno, considera “convalidados os atos de gestão praticados desde 20 de março de 2020”. Tomando-se em conta a referência a “atos de gestão” constante do art. 1º, § 1º, da Lei n. 8.443/1992, tal expressão alcançaria amplamente atos normativos como leis e decretos, além de outros de inferior estatura hierárquica.

Ou seja, tal disposição validaria todos os “atos de gestão” praticados pelo Poder Executivo, ainda que ostentassem vício flagrante de inconstitucionalidade ou ilegalidade.

O texto, nesse ponto, não esclarece se é aplicável apenas à esfera federal ou extensível a “atos de gestão” praticados em âmbitos estadual e municipal. Também não foi estipulado termo final aos efeitos saneadores da cláusula, permitindo-se cogitar, por conseguinte, de convalidação de vícios durante toda a vigência do regime extraordinário. Não seria, ainda, despropositado especular sobre sua projeção em âmbito criminal.

Caso tal disposição venha a prosperar, estimulará iniciativas diversas, sobretudo na iminência da promulgação. Imaginem-se atos que, à guisa de gestão dos recursos, determinem a suspensão ou a retenção de proventos e benefícios previdenciários para direcionar recursos a ações de saúde ou de garantia de renda. Suponha-se, de outro lado, a imposição de exigências que contrariem as orientações sanitárias de distanciamento e isolamento social, de modo a reabilitar a economia e a arrecadação. Avalie-se, ainda, a determinação de contratação pelo poder público apenas com empresas cujos proprietários tenham contribuído com determinada campanha eleitoral. Eventuais decretos com conteúdo semelhante a tais conjecturas estariam, porventura, convalidados em face da promulgação da Emenda? A redação do texto proposto parece dar margem a respostas positivas.

De outra parte, a PEC n. 10/2020 estabelece que, com exceção de despesas permanentes, os “atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentamento de calamidade, e vigência e efeitos restritos ao período de duração desta, ficam dispensados do cumprimento das restrições constitucionais e legais quanto à criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita”.

A dispensa, em caráter amplo e geral, das restrições constitucionais e legais é motivo de evidentes preocupações. Seu texto sugere, portanto, a licitude de decretos que, por suposição, estipulassem isenções fiscais ou o pagamento de subvenção apenas a empresas que tenham determinados agentes públicos como sócio. Afinal de contas, a atos como esses não haveria de se aplicar restrições constitucionais como a impessoalidade ou a legalidade.

Tais atos, ademais, sequer se submeteriam ao controle parlamentar. Esse controle somente teria cabimento, segundo explicitado na mesma proposição, “em caso de irregularidade ou de extrapolação aos limites” de suas próprias disposições. Ora, se descabe aplicar as restrições constitucionais e legais ou havendo convalidação constitucional, estreitadas seriam, em tese, ambas as hipóteses de controle descritas no texto.

A proposição, nesses termos, constitui verdadeira “carta branca” ao Executivo, abrindo-se mão de robusta supervisão parlamentar sobre o mérito das medidas que, como se viu, é elementar nos regimes extraordinários de emergência.

O mesmo cabe dizer em face da atuação do controle financeiro e orçamentário levado a efeito por intermédio do Tribunal de Contas da União. Segundo o texto da PEC n. 10/2020, “o Congresso Nacional, por intermédio do Tribunal de Contas da União, fiscalizará os atos de gestão do Comitê de Gestão da Crise, bem como apreciará a prestação de contas, de maneira simplificada”. A esse propósito, cumpre observar, de um lado, que tal disposição se limita aos atos do referido Comitê, não alcançando outros atos do Poder Executivo voltados a fazer frente ao estado de crise. Haveria, de outro lado, significativo esvaziamento desse controle externo à medida em que a PEC remove os principais parâmetros sobre os quais ampara-se tal atividade, em virtude da convalidação constitucional proposta e do aludido afastamento de restrições constitucionais e legais.

Sendo verdade que o texto constitucional exibe denso arcabouço normativo quanto às finanças públicas, cuja flexibilização se faz indispensável para fazer frente às necessidades prementes da crise ensejada pela pandemia do coronavírus, seria possível cogitar de alternativas mais seguras e apropriadas.

Poder-se-ia, por exemplo, introduzir cláusula no regime constitucional do estado de defesa ou em instrumento paralelo instituído à sua semelhança, determinando que de sua decretação constassem as ressalvas às imposições de direito financeiro — constitucionais ou legais — que o Executivo entende indispensáveis em face da crise. Essas ressalvas poderiam entrar em vigor de imediato, juntamente com o restante do decreto, ou produzir efeitos apenas após a indispensável aprovação, integral ou parcial, do Congresso Nacional. Cuidar-se-ia, de fórmula mais segura e controlada que, ademais, aperfeiçoaria o atual regime de emergência instituído na Constituição.

Além disso, tal sistemática manteria a atuação do Executivo durante a crise sob o controle e a vigilância do Legislativo, exigido seu consentimento quanto à decretação e à prorrogação do regime emergencial, bem assim sua atuação de ofício, a qualquer tempo, para suspender seus efeitos.

Enquanto governantes estrangeiros debatem a adoção dos regimes de emergência consolidados em seus sistemas constitucionais, opta-se, no Brasil, por erigir, em meio a crise, instrumental novo e singular, que, ante situação de calamidade, elimina importantes limitações a abusos e arbitrariedades.

Ademais, esboça essa proposição modelo mitigado de controle parlamentar, amortecendo o sistema de freios e contrapesos inerente à separação dos Poderes. A célere aprovação da PEC do “orçamento de guerra” com tais permissivos sui generis reafirma o temor que justifica a cláusula constante do § 1º do art. 60 da Constituição Federal. Emendar a Constituição em momentos de grave crise reclama cuidados redobrados, pois pode dar suporte jurídico a indesejáveis movimentos e ações de cunho autoritário. É preciso mover esforços para impedir que o vírus contamine também a democracia.

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