Coronavírus

Efeitos jurídicos do direito à revisão da opção fiscal por lucro presumido

Situação sem precedentes alterou a realidade de todo o planeta e que exigirá a formação de uma jurisprudência apropriada

calculadora e dinheiro
Crédito: Pixabay

Nas chamadas “economias de opção” ou “opções fiscais”, o legislador conscientemente oferece ao contribuinte mais de uma sistemática para a apuração de seus tributos. Garante-se ao contribuinte a liberdade para escolher o caminho que lhe parecer mais adequado, seja por praticidade ou simplesmente para pagar menos tributos.

Tais escolhas em nada se assemelham a jogos de azar. Uma característica marcante das diversas opções fiscais existentes no sistema brasileiro é a previsibilidade quanto às consequências da escolha realizada, inclusive como forma de dar vida à segurança jurídica das relações tributárias.

As pessoas físicas, por exemplo, podem apurar o imposto de renda pela sistemática simplificada ou completa. No caso dessa opção fiscal, o contribuinte apenas escolhe uma dessas sistemáticas após o software disponibilizado pela Receita Federal para a entrega da DIRPF calcular qual opção efetivamente proporciona menor imposto a ser recolhido ou mesmo maior restituição a ser recebida.

Outro exemplo de economia de opção diz respeito às variações cambiais, em que a lei permite às pessoas jurídicas optar pelo regime de caixa ou de competência para o reconhecimento do respectivo resultado tributável pelo IRPJ e CSLL. A opção fiscal por um desses regimes deve ser exercida no início de cada ano, com a entrega da primeira DCTF.

Contudo, embora as opções fiscais sejam fortemente baseadas na previsibilidade, a COVID-19 e toda a crise gerada por essa doença nos opõe a questão quanto aos efeitos jurídicos do imponderável. Afinal, quem poderia imaginar que esse turbilhão de incertezas assolaria todo o planeta?

Nos dois exemplos citados, atinentes ao IRPF e à tributação da variação cambial, não há maiores problemas para a preservação do princípio da segurança jurídica.

As pessoas físicas apenas precisarão exercer a opção pelo regime simplificado ou completo quanto aos eventos ocorridos em 2020 em meados de maio de 2021, considerando suas despesas efetivamente incorridas. Se o indivíduo ou algum de seus dependentes incorrer em despesas médicas relevantes para o tratamento da COVID-19, por exemplo, a opção pela DIRPF completa possivelmente se mostrará mais vantajosa.

Quanto à tributação de variações cambiais, a lei prevê que, se em qualquer momento do ano houver oscilação da taxa de câmbio do dólar superior a 10% em um único mês, o contribuinte poderá rever a sua opção fiscal e reconhecer suas receitas variação cambial pelo regime de caixa. Como em março deste ano o Banco Central do Brasil apurou variação positiva do valor de venda do dólar de 13,54%, as pessoas jurídicas podem rever a opção realizada e passar a tributar o seu resultado de variação cambial pelo regime de caixa. A possibilidade de revisão do regime de reconhecimento das variações cambiais decorre justamente da essência das opções fiscais: previsibilidade quanto ao ônus tributário a ser suportado, pavimentando caminhos seguros para a economia de opção.

No entanto, essa imponderável pandemia poderá gerar um sério desequilíbrio às empresas que tenham optado pela sistemática do “Lucro Presumido” ou mesmo do “Simples Nacional”.

Para as pessoas jurídicas que preenchem os requisitos para optar por regimes diversos do Lucro Real, prevê o legislador que essa escolha pode ser realizada anualmente e, uma vez exercida, a opção se tornaria irretratável para todo o ano-calendário. Diferente do que ocorre com o imposto de renda da pessoa física, em que a opção entre um dos regimes existentes é exercida após a ocorrência do fato gerador, no caso das pessoas jurídicas a escolha deve ser realizada com antecedência.

Tal como um contrato de adesão, no Lucro Presumido o contribuinte concorda em não ser tributado conforme a sua efetiva capacidade contributiva, com a adoção de margens de lucratividade estanques durante todo o ano. Como esse regime não conduz à averiguação cuidadosa da “renda” do contribuinte, a sua validade constitucional reside justamente em seu caráter opcional, garantindo-se a cada empresa a liberdade para aderir (ou não) após equacionar as consequências ao seu caso concreto.

Essa metodologia parte da concepção de que as empresas realizam as suas projeções no início de cada ano e, assim, poderiam prever qual dos regimes seria o mais pertinente. As expectativas de faturamento, rentabilidade, variações sazonais e outros fatores poderiam ser ponderadas anualmente com considerável segurança para boa parte das empresas, permitindo a decisão consciente quanto à adesão (ou não) ao Lucro Presumido.

A COVID-19, contudo, tornou imprestável qualquer projeção realizada no início deste ano. A sucessão de eventos absolutamente imponderável que estamos presenciando exige novas projeções ou, ainda, impede que qualquer projeção seja realizada com razoável grau de certeza.

No Lucro Presumido, empresas que se dedicam à venda de mercadorias, por exemplo, estão submetidas à margem de lucratividade presumida de 8% para a apuração de IRPJ, bem como de 12% para a apuração da CSLL. No caso da prestação de serviços, por sua vez, essa margem pré-determinada é geralmente de 32%. Tais margens presumidas, contudo, podem se mostrar surreais diante da severa paralização do mercado imposta pelas autoridades governamentais para o combate à pandemia. Folha de salários, aluguel e outros custos e despesas fixas podem tornar esses percentuais de lucratividade inalcançáveis. Na verdade, muitas empresas enfrentarão prejuízos neste ano.

Nesse caso, em que a nova expectativa de lucratividade se mostre inferior aos 8% e 12% citados, a opção pelo Lucro Real se mostraria mais apropriada, pois conduziria ao recolhimento de menos tributos ou mesmo à inexistência de tributos a serem pagos caso a atividade seja deficitária em 2020. Por outro lado, mesmo que amargue prejuízos, a opção pelo Lucro Presumido obrigará a empresa a recolher IRPJ e CSLL: em tal sistemática os custos e despesas efetivamente incorridos são desconsiderados em nome de uma presunção de lucratividade a partir das receitas operacionais obtidas.

O Congresso Nacional não está inerte frente à pandemia e tem editado uma série de medidas tributárias para adequar o sistema ao seu enfrentamento. Em meio a tais medidas, é urgente que legislador permita às empresas a excepcional revisão da opção fiscal quanto à sistemática de apuração do IRPJ, da CSLL, permitindo, inclusive, a adoção do regime de caixa.

Caso o legislador não promova esse rearranjo para o socorro das empresas em geral, caberá ao Poder Judiciário restabelecer a segurança jurídica individualmente, garantindo àquelas empresas que o procurem o direito à revisão da opção fiscal pelo lucro presumido. Além de uma série de princípios constitucionais que dariam suporte a esse pleito, o Poder Judiciário também poderia se basear na conhecida cláusula rebus sic stantibus, de aplicação ampla.

Vale observar que se trata de uma situação excepcional, que não se confunde com o mero desejo de um contribuinte em rever a qualquer momento sua opção fiscal por ter projetado os seus resultados de maneira displicente. Trata-se de uma situação sem precedentes, que alterou a realidade de todo o planeta e que exigirá a formação de uma jurisprudência apropriada à COVID-19.