Pandemia

E quando o futuro começar?

Uma análise sobre o direito no pós-pandemia

Crédito: Pixabay

Direito e mudança

Revoluções tecnológicas como as invenções da escrita, da imprensa, dos meios de comunicação de massa e, mais recentemente, da   Internet e da inteligência artificial, cada novidade ao seu tempo, exigiram renovação completa ou criação de institutos jurídicos inéditos. Modalidades inclusivas de organização da sociedade — como a popularização do acesso à escola e ao sistema político (sufrágio universal) – impulsionaram a passagem de perspectiva marcadamente individualista do mundo do Direito para visões sociais da ordem jurídica. Abalos “sísmicos” mundiais, como as crises econômicas de 1929 e 2008 ou as duas Grandes Guerras do século XX, apenas para dar outros exemplos, modificaram profundamente as formas de percepção, utilização, interpretação e aplicação do Direito.

Todos esses eventos determinaram e foram determinados pelo direito. As grandes navegações foram decisivas para a estabilização de figuras jurídicas como o mútuo bancário, o contrato de seguro e os títulos de crédito. Engenhocas como bússolas, trens, aviões, elevadores, câmeras fotográficas portáteis e aparelhos celulares criaram novos ramos do direito ou redesenharam a relevância de antigos institutos, como os direitos marítimo e aeronáutico, a questão dos monopólios, o condomínio em edifícios ou os direitos à privacidade, proteção de dados e intimidade.

Em todos esses casos, foram escolhas sociais que orientaram as expectativas sobre o futuro, inclusive aquelas jurídicas. A pandemia do coronavírus expõe a imaginação jurídica a desafio relativamente diverso. Não houve movimentação, impulso ou deliberação social que tenha – pelo que se sabe até o momento – forjado os obstáculos sociais desencadeados pelo vírus.

Não estamos face a conflitos sociais e técnicas de controle moldadas em razão das nossas próprias opções. O coronavírus foge aos nossos domínios. Enfrentamos inimigo oculto. Se a racionalidade humana, aí incluída a razão jurídica, é limitada para domar problemas complexos gerados pelos homens, o que dizer das respostas a problemas ainda desconhecidos, criados pelo ambiente e que, possivelmente, sequer decorram de escolhas sociais deliberadas?

A experiência histórica e os constrangimentos do presente permitem intuir que o futuro do direito, após a pandemia, exigirá não só esforços de adaptações das categorias metodológicas da Ciência do Direito e da reflexão teórica e filosófica sobre a racionalidade jurídica, mas, também, construções práticas dos juristas em resposta às demandas concretas da reconstrução da economia, da regulação do sistema financeiro, do crédito e da inadimplência, da interpretação  e da aplicação do direito em condições de incerteza.

“Direito de Guerra” e “Direito de Exceção”

A pandemia entreabriu a incapacidade dos Estados nacionais de agirem de modo articulado e, na medida em que cada um tomou as medidas de saúde pública que consideravam necessárias, isso acabou representando um baque numa economia globalizada.

A preocupação dos governos com o desemprego e com a crise econômica levou os Estados nacionais a adotar medidas anticíclicas protetivas, tensionando, com isso, o padrão de governança mundial vigente nas últimas décadas.

Descrever criticamente esse cenário e apontar para a previsível instauração de uma espécie de “direito de guerra”, no plano econômico, enquanto durar a pandemia, e um tipo perverso de “direito de exceção”, no período pós-pandemia, significa que os dilemas da ordem constitucional econômica – que, no caso brasileiro, pressionavam o STF antes mesmo da Covid-19 –, exigirão esforços ainda maiores da Corte Suprema.

Bancos, moeda e crédito

No campo da gestão da moeda e do crédito, os novos desafios surgem quando ainda mal se concluía a avaliação da reforma regulatória legada pela crise de 2007-2009. Treinadas pela crise anterior, as autoridades monetárias buscam agora garantir a liquidez do sistema para viabilizar os empréstimos indispensáveis à sobrevivência das empresas e das famílias. Além disso, o sistema bancário funciona como centro de distribuição da moeda necessária à assistência emergencial de renda mínima, especialmente para quem atuava na economia informal ou precarizada.

A ajuda econômico-financeira revela-se um requisito para a sobrevivência física: só pode ficar em casa e cumprir a quarentena quem possui alguma forma de renda. O quadro dramático chega a ressuscitar uma velha questão, agora num mundo invadido por moedas digitais: até que ponto – e por quanto tempo – é sustentável para o governo emitir moeda para o auxílio emergencial, enquanto não vem a vacina?

E mais: o quão sustentável – e por quanto tempo? – é o nível de endividamento das empresas e das famílias necessário para manterem-se vivos até a volta à normalidade? Se todos (com notórias exceções) sairemos da crise sanitária mais pobres e mais endividados do que nela entramos, como será possível reconstruir a vida econômica e social?

É nesse contexto de insuportáveis incertezas que o pensamento jurídico teórico e prático se defronta, no campo financeiro, com dois conjuntos de questões: (i) no plano da decisão jurídica – interpretação e aplicação do direito –, como os dilemas da gestão macroeconômica tecnocrática e os imbróglios decorrentes dos contratos inexequíveis poderão ser processados pelos mecanismos convencionais de resolução de conflitos?; (ii) no plano do desenho institucional jurídico do sistema financeiro, estaremos diante de uma janela de oportunidade (mais uma!) para repensar a relação entre a economia real e as finanças?

Interpretação do Direito

A pandemia provocada pelo Covid 19 criou um novo contexto social, econômico e político que tem sido denominado de “nova normalidade”. São enormes os impactos desta normalidade para o direito, em particular, para a interpretação do direito. Para compreendê-los é necessário ter presente as distinções entre normalidade (e seu caráter sociológico e cambiante), normatividade (a capacidade de constituir-se em fundamento e regra) e a legalidade (uma forma institucionalizada particular de criação de normas jurídicas).

No âmbito do direito privado, o surgimento de novas normalidades gera impactos, tanto substantivos (com a mudança de critérios de justiça e de consequências para a aplicação e interpretação do direito), como metodológicos, na medida em que tanto a “nova normalidade”, como também o próprio olhar para as consequências no momento da aplicação do direito afetam a forma e o método de interpretação do direito.

Risco e incerteza

Há mais de um século, quando o economista Frank Knight chamou a atenção para a diferença entre risco (com probabilidade mensurável) e incerteza (que não pode ser medida), não poderia antever que suas ideias pudessem ser tão duradoras e atuais, não apenas por anteciparem aspectos centrais de economias baseadas na inovação tecnológica disruptiva, mas também por abrirem sendas relevantes para a reflexão sobre as escolhas sociais e a teoria da decisão jurídica.

Com a pandemia, os tribunais são forçados não só a decidir (“non liquet”), mas a tomar posições diante de situações de risco e incerteza elevadíssimos. Modificações de baixa previsibilidade e, hoje, difícil controle – como o coronavírus –, e consequências absolutamente imprevisíveis dessas mudanças – os efeitos da pandemia – sobre múltiplos “futuros” abertos e ignorados, agravam as dificuldades inerentes à tomada de decisão em condições de risco e incerteza radical.

O que significa aplicar o direito sob condições assim adversas? Quais os procedimentos, as provas admissíveis em juízo e a conceitualidade jurídica capazes de garantir um mínimo de estabilidade na aplicação do Direito, em meio a turbulências tão intensas? É possível medir os efeitos da pandemia? Prever as mudanças iminentes? Imaginar as consequências de longo prazo? No plano das relações jurídicas, mais do que a realização de justiça material, é enorme a probabilidade de que a administração de justiça se transforme em máquina de distribuição de riscos, não propriamente de direitos.  Como obter “confiança” – forma institucional de tratamento de riscos – em Cortes que devem administrar Justiça?

Risco e perigo

Outra diferença que reemerge durante a pandemia e permanecerá no período que a ela se seguir é aquela entre risco e perigo. Quando começará o futuro? Quais os vínculos do presente com o chamado “novo normal” dos próximos anos? Ainda que o futuro sempre seja incógnito, há importante distinção entre eventos futuros danosos e incômodos, inerentes ou decorrentes das nossas próprias decisões, e eventos causados por fatores absolutamente externos às nossas escolhas.

Se tomamos parte das escolhas, estamos diante de situações de risco; se, ao contrário, somos destinatários passivos de eventos para os quais não concorremos minimamente, a hipótese é de perigo. A explosão de uma usina nuclear ou de um depósito de nitrato de amônia é um risco. A queda de um meteoro ou a viralização da Covid-19 é um perigo. As consequências jurídicas de uma ou outra figura são muito diversas em termos de responsabilidade civil, direito das obrigações ou cumprimento de políticas públicas. Como decidir nesses casos, em especial quando se está obrigado a decidir, como no caso dos tribunais?

Aplicação do Direito e Contingência

Quando se está diante de elevadas possibilidades de escolha, costuma-se dizer que a decisão é exposta à contingência. Se as alternativas à disposição de quem decide são reais, isso equivale a uma boa margem de dúvida ou mesmo completo desconhecimento entre o que é verdadeiro ou falso. Decide-se em condições de ignorância, racionalidade limitada ou “não saber”.

Em entrevista à imprensa italiana, no auge da pandemia do coronavírus naquele país, o chefe do mais importante laboratório da Universidade de Milão revelou que, todas as manhãs, ao começar o trabalho, reunia a equipe e perguntava: “O que não sabemos hoje? ” Isso é contingência. Excesso de possibilidades. Necessidade de que algumas alternativas sejam descartadas. Ativação de outras possibilidades. Chance sempre aberta de que tudo poderia ser diferente daquilo que é: contingente.

Deixemos de lado as pesquisas e incógnitas – “não saber” – da ciência. Problema análogo ocorre com o Direito. O pós-pandemia provocará judicialização ou arbitrabilidade de incontáveis questões para as quais as respostas da dogmática jurídica convencional serão pouco adequadas. Novamente, “não saber”! Refletir sobre o processo decisório em condições de elevada contingência será um desafio filosófico para o processo de tomada de decisões jurídicas do futuro próximo.

Com o objetivo de refletir a respeito destes tópicos desafiadores e para os quais as respostas ainda são bastante especulativas, a Fundação Arcadas, de apoio à Faculdade de Direito da USP, convidou os autores deste artigo a oferecer curso, entre os dias 24 e 27 de agosto, no qual todos esses temas serão examinados.

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