Pandemia

É possível emendar a Constituição via deliberação remota durante a calamidade pública?

Em meio à pandemia, questão de fundo do MS n. 37.059 passou despercebida

Ministro Gilmar Mendes durante sessão plenária por videoconferência. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Como noticiado no último dia 13 de abril, o Ministro Ricardo Lewandowski negou seguimento ao mandado de segurança impetrado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), questionando a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição – PEC n. 10, de 2020, apelidada de “PEC do Orçamento de Guerra”, aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 03 de abril, o que resultou no encaminhamento das discussões para o Senado Federal.

Ao negar seguimento ao writ, vislumbrando se tratar de questão interna corporis, a decisão deixou passar despercebido o cerne do questionamento feito no MS n. 37.059: É possível aprovar uma PEC pelo Sistema de Deliberação Remota (SDR) durante o estado de calamidade pública?

Viu-se que o SDR foi desenvolvido para evitar paralisia institucional e preencheu a importante lacuna do texto constitucional, já que a Constituição de 1988 não traz qualquer hipótese de “fechamento” do Poder Legislativo (mesmo durante o estado de sítio, por exemplo, o Congresso Nacional funciona ininterruptamente, conforme o art. 137, § 3º). Simplesmente não havia – até então – previsão de deliberações online. Assim, é graças ao SDR que o Poder Legislativo tem podido funcionar para colaborar com a resolução da crise acarretada pela pandemia da Covid-19.

Levada ao extremo, a argumentação do impetrante de que o SDR é inconstitucional conduziria a impedir todos os trabalhos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário por videoconferência (as próprias sessões virtuais do Plenário do STF), o que seria um absurdo, impossível de se admitir no atual cenário de pandemia e distanciamento social. O Poder Legislativo precisa continuar ativo e responsivo às demandas da população (até mesmo para tocar um processo de impeachment via deliberação remota).

Justamente porque o SDR assegura o pleno funcionamento do devido processo legislativo constitucional, não faria sentido, nem seria razoável distinguir entre as espécies legislativas que podem ser aprovadas por essa sistemática e as que não. Todas as espécies legislativas de atos normativos primários elencados no art. 59 da CF são aptas a serem deliberadas pelo SDR.

Para poder funcionar plenamente, o Parlamento precisa aprovar quaisquer medidas que forem necessárias para combater a pandemia, inclusive, se for o caso – como mostra ser o presente – uma emenda à Constituição.

A pretensão do impetrante de barrar a tramitação da PEC n. 10, de 2020, além de não encontrar amparo no texto da Constituição, implicaria deixar o Poder Legislativo de mãos atadas, impedido de atuar por prazo indeterminado (já que não se sabe por quanto tempo a crise da Covid-19 durará).

Ora, o Congresso Nacional não pode ser colocado em situação que o impeça de funcionar normalmente, com autorização somente para aprovar determinadas espécies legislativas, mas não outras. A soberania popular e o exercício da competência legislativa ou são plenos ou não existirão. Não cabe qualquer supressão ou gradação das atividades parlamentares, sob pena de ofensa ao Estado Democrático de Direito.

Tampouco as atuais circunstâncias da pandemia importam proibição a que se emende a Constituição. Como sabido, o art. 60, § 1º, estabeleceu como limitações circunstanciais – em que é vedada a alteração do texto constitucional – somente a vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio, em decorrência da gravidade e da anormalidade institucionais. Fora dessas situações, não há que se reputar impedida a reforma constitucional, de modo que a PEC n. 10, de 2020, pode perfeitamente seguir seu curso. O texto constitucional não deixou espaço para limites circunstanciais implícitos à reforma da Constituição.

As hipóteses constitucionais referidas no art. 60, § 1º, da Constituição, têm caráter exaustivo e não podem ser aplicadas analogicamente ao estado de calamidade pública. A própria Constituição escolheu sua gramática para lidar com os diversos níveis de crise e não é possível deturpar os vocabulários e seus significados, sob pena de tratar igualmente situações claramente diferentes.

Os efeitos práticos decorrentes do estado de calamidade pública diferem das consequências envolvidas na decretação de intervenção federal, estado de defesa ou de estado de sítio. Há uma clara gradação nos estados de crise.

O reconhecimento da situação de calamidade pública se dá por iniciativa do Poder Executivo e reconhecimento por parte do Congresso Nacional, no âmbito da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios.

Nessa situação, de acordo com a LRF, art. 65, serão suspensas a limitação de empenho, a contagem de prazos e disposições referidas nos arts. 9º, 23, 31 e 70 da LRF. Na prática, isso significa a possibilidade de descumprir determinadas metas e limites de despesas públicas. Além disso, o estado de calamidade pública permite a abertura de crédito extraordinário, nos termos do art. 167, § 3º, da Constituição, e autoriza a instituição de empréstimo compulsório, conforme o art. 148, inciso I, da Constituição.

Dessa forma, pode-se dizer que o estado de calamidade pública contempla uma situação de anormalidade, em que a capacidade de atuação do poder público está comprometida, mas em um nível que ainda não se equipara aos estados de exceção referidos no art. 60, § 1º, da Constituição, quais sejam, a intervenção federal (art. 34), o estado de defesa (art. 136) e o estado de sítio (art. 137), o mais grave de todos na escala da crise.

Seguindo por essa linha de raciocínio, as medidas constitucionais mais extremas (com todas as consequências nelas implicadas) somente podem incidir diante de situações fáticas de ainda maior excepcionalidade que a situação de calamidade pública. E a avaliação do presente contexto – que culminou na decisão de, ao menos por enquanto, não decretar ou solicitar as medidas citadas no art. 60, § 1º – é privativa do Presidente da República.

Assim, a partir do momento em que a própria Constituição disciplinou de forma diferente os diversos níveis de intensidade das crises, não cabe atribuir as consequências normativas da intervenção, estado de defesa e estado de sítio ao estado de calamidade pública, que é um minus em relação às primeiras. Não se pode subverter a ordem constitucional posta, sustentando impedimentos inexistentes à reforma constitucional, pois, longe de salvaguardar os direitos, isso os prejudicaria ainda mais.

No writ, o impetrante ainda argumentou que faltaria justificação à PEC n. 10, de 2020. No entanto, a PEC n. 10, de 2020, conta com justificação suficiente. O próprio CPC, art. 374, inciso I, positivou que não dependem de prova os fatos notórios. De forma inquestionável, vive-se uma crise e a matéria trazida na PEC é necessária para enfrentar a pandemia, facilitando os atos de gestão e conferindo salvaguarda jurídica aos envolvidos.

Além disso, a PEC trouxe uma cláusula expressa de vigência temporária, prevendo sua revogação automática com o encerramento do estado de calamidade pública, de modo que não afeta o núcleo dos compromissos constitucionais de forma permanente.

A mera circunstância de a motivação não ter sido registrada formalmente nos documentos que instruem a tramitação (processado) perante a Câmara dos Deputados não quer dizer que a medida careça de motivação. Em primeiro lugar, porque os modos de fundamentar decisões judiciais e decisões legislativas são diferentes, e não é possível exigir dessas últimas o grau de formalização necessária para a validade das primeiras.

A justificação dos atos legislativos se dá pela deliberação parlamentar, ou seja, pela confrontação pública de razões para modificar (ou não) o ordenamento jurídico, conforme a argumentação legislativa levada a cabo nas sessões das comissões e do plenário, documentado pelas atas taquigráficas e diários das sessões, que representam a fonte por excelência das razões legislativas.

Haverá justificação legislativa se presente o debate parlamentar, como de fato vem ocorrendo para a aprovação da PEC n. 10, de 2020, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal, cujas sessões legislativas por videoconferência são públicas, transmitidas em tempo real, garantindo-se a necessária transparência e publicidade a todos os atos que vêm sendo praticados, inclusive quanto às discussões e ao emendamento.

Em segundo lugar, deve-se levar em consideração o contexto de crise acarretada pela pandemia, que torna a suposta exigência de saturar a motivação ainda menos razoável diante das capacidades institucionais e da própria redução de funcionários que assessoram e auxiliam nessas tarefas de formalizar nos papéis e documentos as razões que estão sendo apresentadas oralmente durante os debates parlamentares.

Além disso, somente é possível avaliar com precisão uma argumentação legislativa ao final do processo de elaboração normativa. Dado o seu caráter dinâmico, com frequência razões eventualmente ruins são substituídas por melhores, e a evolução dos debates tende a se refletir em emendas e aperfeiçoamento da versão final do texto aprovado.

Pretender analisar a motivação de um projeto de lei apenas pelo que consta de sua justificação (por ocasião da iniciativa) equivale a considerar somente os argumentos da petição inicial em um processo judicial: assim como não há garantia de que serão aceitos pelo juiz, as razões aduzidas em momento tão embrionário não permitem saber o que de fato servirá de fundamento à aprovação da lei.

No último dia 14 de abril o impetrante apresentou agravo regimental contra a decisão do Ministro Lewandowski, insistindo nos argumentos da petição inicial, notadamente o de que o SDR a não se aplicaria à aprovação de emendas à Constituição e que faltaria justificação à PEC n. 10, de 2020.

Com isso, podendo se manifestar novamente nos autos MS n. 37.059, o Ministro Lewandowski terá a oportunidade de assentar a resposta a essas três questões que, mais cedo ou mais tarde, chegarão ao plenário do STF, e afirmar desde já que:

1) o SDR se presta à aprovação de todas as espécies legislativas elencadas no art. 59 da Constituição; 2) o art. 60, § 1º, da Constituição, não se aplica analogicamente ao estado de calamidade pública, de forma que é constitucional a tramitação da PEC n. 10, de 2020; e 3) a avaliação da justificação legislativa somente é possível ao final do processo legislativo, sob pena de indevida e precoce ingerência nas discussões parlamentares, as quais devem seguir seu próprio curso sem interferência judicial.