Série Voz

Diversidade não é suficiente; justiça é

Debate sobre raça e direito no Brasil precisa ir além da celebração da pluralidade, senão as estruturas racistas persistirão

Crédito: Pexels

Não é somente por conta da falta de negros e negras nos círculos tradicionais do Direito – apesar de avanços recentes[1] – que se fala pouco de racismo. Pouco se fala sobre racismo nos círculos jurídicos porque se pensa que as grandes questões do Direito – da reforma tributária à seletividade penal à jurisdição constitucional – são racialmente neutras.

Explico: ao ler este breve artigo, leitor, podes presumir que se trata de um jurista negro descrevendo – a partir de um certo lugar de fala – questões que afetam pessoas negras. Tem-se, portanto, a concepção de que a questão racial no Direito seria a seguinte: como o Direito explicitamente trata ou destrata negros e negras, hoje e historicamente. É isso também, mas não somente.

Ao espremer a questão racial entre dois extremos, de um lado a celebração da pluralidade quando 1% dos nossos[2] chegam ao topo da carreira jurídica, e de outro limitar o tema do direito e raça somente a casos de flagrante racismo quando agentes do estado nos pisoteiam, perde-se de vista a principal forma de perpetuação do racismo no direito: ignorar o racismo.

A principal arma da perpetuação do racismo no Direito é o apagamento do aspecto racial das relações jurídicas. Privilégio branco no Direito é, portanto, dar-se ao luxo de discutir grandes questões do Direito sem por no seu cerne a questão racial.

Não se pode debater reforma administrativa sem levar em consideração o impacto nos servidores de educação e saúde, duas áreas centrais para mobilidade social de negros e negras. Não se pode debater direito penal e pandemia sem debater a seletividade penal da magistratura em ignorar pedidos de soltura com base na resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Não se pode debater reforma tributária sem levar em consideração que, ao privilegiar onerar consumo, mulheres negras são as que proporcionalmente mais pagam impostos no Brasil. Não se pode falar sobre liberdade religiosa e antiterrorismo no Brasil sem considerar a intolerância religiosa contra religiões de matriz africana, nos alerta Adriana Cruz em artigo nesta série Voz no JOTA.[3]

Não se pode falar sobre reforma trabalhista sem considerar trabalhadores informais precarizados, em sua maioria negros. Não basta incluir tímida diversidade[4] nos painéis de debate e nas carreiras jurídicas sem promover a justiça – inclusive racial – no Direito, colocando raça no cerne de qualquer grande debate jurídico.

Apagamento do racismo no Direito permite, por exemplo, normalizar que, apesar de discutirmos por décadas sobre constitucionalismo participativo no Brasil, somente com a ADPF nº 635 – de que trata Wallace Corbo[5] em seu artigo aqui nesta série no JOTA – jovens negros periféricos puderam exprimir sua voz no Supremo Tribunal Federal.

Decisão do ministro Fachin cita expressamente pela primeira vez ativistas como René Silva, Buba Aguiar e Raul Santiago que estão na linha de frente diariamente para tornar real o estado de direito que nunca chegou às periferias brasileiras. Pela primeira vez, neste caso, coletivos de favela foram aceitos como amici curiae na mais alta corte contando, com a sua própria voz, as atrocidades policiais. Normalizar estas ausências e ainda celebrá-las como constitucionalismo participativo é ignorar disparidades raciais no acesso aos tribunais superiores no país.

Jurisprudência nos EUA chama esta perspectiva limitante de “colorblindness”.[6] A fonte jurisprudencial da neutralidade racial nos Estados Unidos é o voto dissidente do juiz Harlan em Plessy v. Fergusson,[7]  um caso decidido em 1896, em que a maioria da Corte manteve a constitucionalidade da doutrina racista “separados, mas iguais” nos EUA.

Para Harlan, no entanto, “em vista da Constituição, aos olhos da lei, não existe neste país nenhuma classe de cidadãos superior, dominante. Não há casta aqui. Nossa Constituição não vê cor.” Embora o daltonismo[8]  originalmente na lógica de Justice Harlan em Plessy significasse que a Constituição se aplica a todos da mesma maneira, independentemente da cor da pele, isso significa algo muito diferente nos debates jurídicos de hoje: que ignorar cores de pele diferentes na aplicação da igualdade pode perpetuar a discriminação, em vez de enfrentá-la.

Seis décadas após Plessy, a dissidência do juiz Harlan em Plessy inspirou a Suprema Corte dos EUA a derrubar a segregação na educação pública no conhecido caso Brown. Hoje, o argumento de neutralidade racial, por vezes, assume a ideia de uma sociedade pós-racial, inclusive na atual composição da Suprema Corte dos EUA.[9]

Nela, racismo desapareceria quando parássemos de falar sobre raça, sem perceber que é justamente por refletir sobre desigualdade racial que poderemos, quem sabe um dia, viver numa sociedade onde o direito não seja mediado por tais inequidades raciais.

Debates ousados ​​sobre justiça racial e os remédios judiciais adequados para sua realização simplesmente não estão à mesa nos casos que tratam da raça a partir de hoje, argumentam muitos teóricos críticos da raça. A teoria crítica da raça (Critical Race Theory ou CRT) começou como um movimento de estudantes e professores(as) de algumas das mais prestigiadas faculdades de direito dos Estados Unidos, como a de Harvard Law nos anos 80 e a Universidade da Califórnia em Berkeley desde os anos 60,[10] buscando desafiar racismo institucional em pelo menos duas frentes.

Primeiro, procuraram incorporar mais equidade racial nas universidades, inclusive no nível dos professores sêniores. Segundo, consequentemente, eles queriam ser expostos a visões alternativas sobre o Direito, em particular visões críticas que poderiam fornecer uma explicação diferente sobre o papel que a raça e o racismo desempenham nas leis e na sociedade americanas. Combinando esses dois fatores, a gênese da CRT foi extraída tanto da política (protestos estudantis) quanto do exercício intelectual de uma crítica da perspectiva racialmente neutra dos estudos jurídicos. [11]

Teoria crítica racial nos ensina que incluir o debate sobre questões raciais no panteão dos grandes debates do Direito não implica simplesmente conceder espaço para juristas negros e negras. Significa, igualmente, beneficiar a todos e todas juristas, ao sofisticar o próprio debate sobre o Direito.

Reforma tributária sem justiça distributiva é floreio, repensar seletividade penal sem desmantelar encarceramento em massa é ignorar a realidade, litigar constitucionalmente sem fazer com que os direitos se tornem realidade para todos os negros e negras é perpetuar um contrato social racialmente míope. Juristas negros querem, portanto, não somente diversidade: querem justiça no debate jurídico para que as “nossas” questões sejam vistas como temas centrais da disciplina jurídica ou esta disciplina de pouca valia será.

Diz-se que racismo é estrutural não para abstraí-lo das relações, inclusive jurídicas, que o reproduz diariamente. Ao contrário, racismo é estrutural porque impregna até as mais comezinhas relações sociais de poder mediadas pela raça. Impregna e as normaliza. Cabe a juristas, brancos inclusive, reverter este racismo cotidiano no Direito, pondo-o no centro da mesa.

 


[1] Ver, por exemplo: <https://www.instagram.com/juristasnegres/>.

[2] Disponível em: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/pesquisa-empirica/negros-maiores-escritorios-21032019>.

[3] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/intolerancia-perseguicao-religiosa-e-a-cegueira-do-direito-15072020>.

[4] Para uma visão crítica sobre diversidade, ver: ALVES, Mario Aquino; GALEAO-SILVA, Luis Guilherme. A crítica da gestão da diversidade nas organizações. Rev. adm. empres.,  São Paulo,  v. 44, n. 3, p. 20-29,  Sept.  2004.

[5] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-direitos-mais-baratos-do-mercado-22072020>.

[6] Reva B Siegel, “From Colorblindness to Antibalkanization: An Emerging Ground of Decision in Race Equality Cases,” The Yale Law Journal 120 (April 1, 2011): 1278; Charles R Lawrence III, “Epidemiology of Color-Blindness: Learning to Think and Talk about Race, Again, The,” Boston College Third World Law Journal VO – 15, 1995; Ian F Haney Lopez, “Is the ‘Post’ in Post-Racial the ’Blind” in Colorblind?,” Cardozo Law Review 32 (January 1, 2011): 807.

[7] THE UNITED STATES, US Supreme Court, Plessy v. Ferguson, 163 US 537 (1896).

[8] Bell, Derrick A. “‘Colo-Blind Constitutionalism: A Rediscovered Rationale.’” In Race, Racism, and American Law, 131–54. Gaithersburg, {MD}: Aspen Law & Business, 2000.. Ver masi aqui: Siegel, “From Colorblindness to Antibalkanization: An Emerging Ground of Decision in Race Equality Cases”; Lopez, “Is the ‘Post’ in Post-Racial the ‘Blind” in Colorblind?”; Darren Lenard Hutchinson, “Progressive Race Blindness?: Individual Identity, Group Politics, and Reform,” UCLA Law Review 49 (June 1, 2002): 1455.

[9] Sobre pós-racialismo, ver: Cho, Sumi. “Post-Racialism.” Iowa Law Review 94, no. 5 (2008): 1589–1649.

[10] Sumi Cho and Robert Westley, “Critical Race Coalitions: Key Movements That Performed the Theory,” (U.C.) Davis Law Review no. 4 (1999): 1377..

[11] Kimberlé Williams Crenshaw, “The First Decade: Critical Reflections, or ‘A Foot in the Closing Door’,” UCLA Law Review 49 (June 2002): 1343.