Quem observa o crescimento da agenda ESG nas empresas e no mercado em geral não imagina que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem discutido por cerca de 50 anos a relação entre direitos humanos e a atuação de empresas transnacionais. Apesar de desconhecidas para o grande público, as últimas décadas comportaram diversas iniciativas disputando espaço no cenário internacional na busca por estabelecer um marco regulatório para a atividade corporativa com relação aos direitos humanos.
Entre as décadas de 1970 e 1990, tentou-se construir um código de conduta internacional que oferecesse orientações para as empresas de respeito aos direitos humanos, que não obteve sucesso em sua aprovação, sendo sucedido pela proposta de elaboração de normas internacionais vinculantes para os Estados no princípio dos anos 2000, também sem sucesso.
Nesse cenário de iniciativas normativas frustradas e impulsionado pelo sucesso do Pacto Global em articular o setor empresarial ao redor de pautas de direitos humanos, o secretário-geral da ONU à época, Kofi Annan, nomeou em 2005 um representante especial sobre Direitos Humanos, Empresas Transnacionais e Outros Negócios para realizar um mapeamento de iniciativas nacionais e internacionais e boas práticas empresariais no campo dos direitos humanos. O professor da Universidade Harvard e um dos idealizadores do Pacto Global, John Ruggie, foi o escolhido e durante seis anos trabalhou para o desenvolvimento dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (POs).
Partindo de uma visão pragmática das relações entre as dimensões teórica e prática e possuindo natureza voluntária, são 31 os Princípios Orientadores (também conhecidos como Princípios de Ruggie, em homenagem a seu idealizador) divididos em três pilares: o dever dos Estados de proteger os direitos humanos; a responsabilidade das empresas de respeitar direitos humanos; e o acesso a mecanismos de reparação.
Aprovados por unanimidade no Conselho de Direitos Humanos da ONU em 16 de junho de 2011 (Resolução 17/4), os Princípios Orientadores se tornaram o marco normativo internacional de referência sobre empresas e direitos humanos. E, em seus dez anos de existência, contribuíram para impulsionar a mudança no cenário global de violações aos direitos humanos por entes corporativos.
Desde sua aprovação, foi criado um grupo de trabalho sobre o tema na ONU, que vem protagonizando os debates através de fóruns internacionais anuais que ocorrem em Genebra, na Suíça (e virtualmente durante a pandemia), de fóruns regionais, de visitas a Estados e de pesquisas e consultas públicas.
Reunindo importantes nomes da academia, do setor empresarial, da sociedade civil internacional e da atuação governamental, o grupo de trabalho, em suas sucessivas composições, avançou na construção das bases para o desenvolvimento de políticas públicas de respeito e proteção aos direitos humanos nos Estados através de planos nacionais de ação.
Promovendo a integração dos Princípios Orientadores com os contextos nacionais mais diversos para construção de políticas públicas e legislativas, foram elaborados 30 planos nacionais até o presente momento e, apesar de se localizarem majoritariamente em países do Norte global, há precedentes aprovados na América Latina (Chile, Colômbia e Peru), na África (Quênia e Uganda) e na Ásia (Tailândia, Paquistão, dentre outros).
Desde o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), de 2009, o Brasil assumiu o compromisso de avançar com ações para aumentar a participação social nas políticas públicas de desenvolvimento com grande impacto socioambiental (Diretriz 5 — Objetivo Estratégico I) e para afirmar a dignidade da pessoa humana e a equidade como fundamentos do desenvolvimento nacional, com a cobrança às empresas de respeito aos direitos humanos (Diretriz 5 – Objetivo Estratégico II).
Era de esperar que, no transcorrer de mais de uma década desde o PNDH-3, o Brasil tivesse elaborado seu plano nacional de ação com ampla participação popular, o que ainda não ocorreu. O primeiro esboço da incorporação dos Princípios Orientadores ao ordenamento brasileiro se deu em 2018, com a publicação do Decreto 9.571/2018, que institui as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos.
A publicação do decreto gerou importantes movimentações, tanto no setor empresarial quanto na sociedade civil. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) publicou a Resolução nº 5 de 2020, na qual dispõe sobre Diretrizes Nacionais para uma Política Pública sobre Direitos Humanos e Empresas.
Apesar de possuírem natureza voluntária, os documentos normativos influenciaram de maneira determinante a mudança de paradigma quanto à responsabilidade de empresas com relação aos direitos humanos. Existem condenações de empresas em tribunais brasileiros por violações aos direitos humanos com base nos Princípios Orientadores, no decreto e na resolução do CNDH.
Atualmente, encontram-se em andamento algumas iniciativas governamentais que convergem para a construção de políticas públicas nacionais.
Durante o ano de 2021 foi divulgada a elaboração do Plano de Ação em Conduta Empresarial Responsável (Pacer) no Ministério da Economia, em sede da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Durante evento realizado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) em março de 2021, foi informada a existência de esforços para a unificação do Pacer com um Plano Nacional de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos e seu lançamento até dezembro de 2022. Ademais, há, desde fevereiro de 2021, grupo de trabalho constituído no MMFDH para revisão do PNDH-3 e elaboração do próximo Programa Nacional de Direitos Humanos, com expectativas de que contenha determinações expressas quanto à publicação de plano nacional de ação brasileiro.
Desde 2015, surgem na Europa legislações que obrigam empresas a fiscalizar ativamente o respeito aos direitos humanos em suas cadeias de fornecimento — as chamadas leis de devida diligência ou “due diligence”. O movimento que se iniciou com o Modern Slavery Act no Reino Unido já atingiu diversos outros países (França, Holanda, Estados Unidos etc.) e, em 2021, ganhou proporções que certamente causarão impactos consideráveis às empresas brasileiras.
No último ano, a Alemanha aprovou sua legislação de devida diligência, com plena entrada em vigor em 2023, obrigando as empresas alemãs a fiscalizar sua cadeia de fornecedores — independente da localidade das empresas que a compõem — com relação ao respeito aos direitos humanos e às normas ambientais, sob pena de sanções que incluem multas milionárias.
No mesmo sentido, está sendo preparada uma proposta legislativa na Comissão Europeia para estabelecer diretrizes de devida diligência obrigatória com relação aos direitos humanos e ao meio ambiente que afetarão as empresas de todos os países da União Europeia e demandarão a realização do mesmo processo por empresas brasileiras que possuem negócios na UE ou com empresas europeias.
A responsabilidade empresarial por violações aos direitos humanos cometidas nas cadeias produtivas já é uma realidade no Brasil quando se trata de trabalho análogo à escravidão. Há ao menos 26 casos de responsabilização judicial de empresas por trabalho escravo na cadeia de fornecedores, mesmo sem a existência de vínculo empregatício entre a empresa responsabilizada e os trabalhadores.
E o mercado, diante da necessidade de maior transparência com relação aos direitos humanos, tem se posicionado no sentido de exigir a divulgação de informações relativas aos aspectos ESG. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou em dezembro de 2021, após consulta pública, a Resolução CVM nº 59, que alterou a Instrução CVM nº 480 e estabeleceu normas de divulgação de informações de caráter ambiental, social e de governança corporativa (ESG ou ASG) para emissores de valores mobiliários.
As exigências impostas pela CVM estão em consonância com as resoluções do Banco Central (BC) e do Conselho Monetário Nacional (CMN) publicadas a partir de setembro do último ano e que estabelecem impedimentos “sustentáveis” à contratação de crédito rural, regulamentam a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC) e a análise e gerenciamento de riscos das instituições financeiras, e determinam obrigatoriedade de divulgação do Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas (Relatório GRSAC) pelas instituições financeiras e seus procedimentos de “disclosure”.
Tampouco as empresas estatais ficaram de fora. Em 2021, foram incluídos pela primeira vez critérios de respeito aos direitos humanos no Indicador de Governança Sest (IG Sest), utilizado pelo governo federal para avaliar a governança das empresas estatais subordinadas à União.
Não há como negar que estamos diante de um cenário de necessária e irreversível mudança global impulsionada pela emergência climática, pelas transformações causadas pela pandemia da Covid-19 e pelo surgimento de um novo regime internacional de regulamentação das cadeias de fornecimento, que demandarão grandes mudanças das empresas brasileiras (sejam grandes, médias ou pequenas) que desejam se inserir no mercado global de maneira competitiva nos próximos anos. Com a certeza de iminente cogência, 2022 é ano chave para as empresas brasileiras engrenarem as mudanças sistêmicas e adequarem suas atividades aos padrões de devida diligência, sob pena de sentirem com severidade as restrições do mercado global.