Coronavírus

Direito ao acompanhante hospitalar de grupos vulneráveis

Impactos da Covid-19 sobre os direitos de crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência internados

Crédito: Pixabay
  1. Introdução

O mundo vem sofrendo os impactos da rápida propagação do vírus causador da Covid-19, doença que, em sua forma mais severa, causa síndrome respiratória aguda grave (SARS), podendo conduzir à morte da pessoa infectada, sobretudo nos grupos de maior risco: pessoas idosas ou, de qualquer idade, possuidora de comorbidades.

Desde a chegada do vírus ao Brasil, os esforços de contenção da doença demonstram a maior preocupação: embora a chance de recuperação dos infectados com Covid-19 seja significativa, é indispensável o atendimento hospitalar em casos mais graves, com a necessidade, inclusive, do uso de respiradores artificiais, recursos esses limitados não apenas nos hospitais brasileiros, como em todas as partes do mundo.

A crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19 tem testado os limites do sistema de saúde de todos os países. A alta contagiosidade do vírus causador da doença exige múltiplas cautelas da sociedade como um todo e dos profissionais de saúde, por meio da utilização de equipamentos de proteção individuais (EPI) e de protocolos de higienização pessoal reforçados. Diante disso, a rotina hospitalar tem sofrido mudanças que visam a garantir o cumprimento das orientações das autoridades sanitárias, em prol da saúde pública e da redução de riscos para a sociedade e para os pacientes.

Em Fortaleza/CE, uma maternidade interrompeu os encontros presenciais de acompanhantes a bebês hospitalizados, para reduzir o fluxo de pessoas, contribuindo, assim, no combate ao novo coronavírus e na preservação da vida e da saúde dos pequenos.[1] Para garantir o contato dos pais com os filhos recém-chegados, o hospital aderiu, então, às videoconferências, que são realizadas periodicamente pela equipe de enfermagem.

Em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo foi instado a decidir sobre liminar que pleiteava a efetividade do direito a acompanhante durante a internação hospitalar à pessoa idosa com suspeita de Covid-19. A liminar foi negada pela juíza de direito competente, sob o fundamento de que “a situação excepcional exige que se respeite as recomendações médicas no presente momento, sob pena de agravar-se ainda mais o quadro de pandemia. A presença de acompanhantes no hospital pode trazer sérios riscos ao acompanhante, ao paciente e a todos os médicos e enfermeiros”.[2]

Diante disso, é pertinente indagar sobre a possibilidade de suspensão temporária do direito ao acompanhante em internações hospitalares de pessoas vulneráveis, como idosos, crianças e adolescentes e pessoas com deficiência, nada obstante a garantia legal prevista nos respectivos diplomas protetivos: o art. 12 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o art. 16 do Estatuto do Idoso e o art. 22 do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

  1. Dever jurídico de cuidado e funcionalização do direito ao acompanhante

O ordenamento jurídico brasileiro reconhece que algumas pessoas merecem uma proteção especial, devido a suas condições psicofísicas, sociais ou econômicas, a fim de que tenham assegurados todos os seus direitos, notadamente, aqueles de natureza fundamental. São as pessoas pertencentes a grupos vulneráveis, entre as quais encontram-se as crianças, os adolescentes, as pessoas com deficiência e os idosos.[3]

Em razão de sua condição específica de vulneração, emerge, em favor dos vulneráveis, o dever jurídico de cuidado, cuja exigibilidade se estende a toda a sociedade, por irradiação do princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º, I, CF/88) e pela necessária observância dos arts. 227 e 230 da Constituição Federal de 1988.

O cuidado associa-se à proteção e promoção dos direitos das pessoas vulneráveis e se manifesta, em sentido jurídico, na prática ou abstenção de atos, a fim de resguardar o melhor interesse da pessoa vulnerável.[4]

Pode-se concluir que o acompanhante, ao qual a pessoa vulnerável tem direito em caso de hospitalização, exerce a função de assegurar a proteção e promoção dos interesses do paciente, amenizando os efeitos negativos que a internação pode causar e que seriam ainda mais deletérios a esse grupo.[5] Embora o apoio emocional seja fundamental, a função do acompanhante, portanto, não se resume a isso.

Outra importante conclusão é que o acompanhante é direito de titularidade da pessoa vulnerável e que deve ser exercido e efetivado em prol de seu melhor interesse. Assim, frise-se, o direito ao acompanhante não é um direito do familiar ou responsável pela pessoa vulnerável.

A partir dessas premissas é possível refletir sobre dois principais casos: i) as pessoas vulneráveis internadas com suspeita ou comprovação de Covid-19 e ii) as pessoas vulneráveis internadas por outros motivos.

Quanto aos casos de pessoas internadas com suspeita de Covid-19, além da recuperação da saúde do paciente, os esforços dos profissionais de saúde voltam-se também para a prevenção da contaminação de pessoas sadias que tenham contato com o paciente infectado. Por isso, a limitação do acompanhante evidencia uma questão de saúde pública.

Com relação às pessoas vulneráveis internadas por outros motivos, entre as quais pode-se incluir os bebês prematuros do hospital de Fortaleza, a rotina hospitalar deve reforçar as cautelas para evitar a transmissão da doença aos pacientes que ali se encontram, pois as pessoas imunodeprimidas sofrem maior risco de complicações pelo novo coronavírus.

No âmbito dos direitos individuais dos pacientes internados, deve-se considerar que a pessoa vulnerável é titular do direito à vida e à saúde, assim como do direito ao acompanhante, o qual deve ser instrumentalizado ao atendimento de seu melhor interesse. Portanto, no contexto pandêmico, a observância do direito ao acompanhante poderia submeter o paciente a mais riscos do que benefícios.

Diante disso, o dever de cuidado, que, repita-se, incumbe a toda a sociedade, pode se manifestar justamente na abstenção do contato físico, em prol da prevenção de uma grave doença de alta contagiosidade, que poria em risco a vida e a saúde da pessoa vulnerável que, por sua internação, já se encontra imunodeprimida.

  1. Conclusão

Os impactos do novo coronavírus atingem todos os setores da sociedade, notadamente quanto aos cuidados dispensados às pessoas vulneráveis imunodeprimidas que, por sua condição, podem ser consideradas, nesse contexto, hipervulneráveis. A proteção especial dedicada a essas pessoas pela Constituição Federal torna-se um desafio diante dos riscos de uma nova doença altamente infecciosa.

Apesar disso, o direito ao acompanhante não deve ser esquecido, mas adaptações são necessárias. Os hospitais podem – e devem – adotar medidas para evitar a propagação do vírus e preservar a vida e saúde de seus pacientes internados e de seus profissionais. Nesse aspecto, o acompanhante pode ser orientado a não deixar o hospital constantemente, ou haver restrição ao rodízio das pessoas que acompanham o vulnerável.

Contudo, mesmo essas medidas talvez não sejam suficientes para preservar a vida e a saúde do vulnerável internado e atender as necessidades de saúde pública, sobretudo em algumas partes do país que já sofrem com a pressão com a escassez de leitos e equipamentos médicos. Mesmo diante desse contexto, não se deve suspender o direito ao acompanhante, mas apenas a sua presença física, e quando estritamente necessário. O direito ao acompanhante deve ser garantido por meios telepresenciais, permitindo-se, o quanto possível, as videoconferências, assim como feito exemplarmente pela maternidade fortalezense.

Pode-se concluir que o melhor interesse da pessoa vulnerável é o vetor interpretativo para a concretização de seus direitos e que, no contexto atual, prevalecem a vida e a saúde – nada obstante o direito ao acompanhante, frise-se, deva ser exercido de forma diversa da presencial.

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[1] https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/04/15/maternidade-de-fortaleza-promove-visitas-virtuais-para-aproximar-maes-e-bebes-internados.ghtml

[2] http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60669&pagina=1

[3] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2 ed. rev., atual., ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Passim.

[4] Segundo Heloísa Helena Barboza, “[o] dever de cuidado nas relações familiares pode ser entendido como o conjunto de atos que devem ser praticados pelos integrantes da família para proteção daqueles que são suscetíveis de vulneração, em razão de suas circunstâncias individuais.” (BARBOZA, Heloísa Helena. Perfil jurídico do cuidado e da afetividade nas relações familiares. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antonio Carlos Mathias (Orgs.). Cuidado e afetividade. São Paulo: Atlas, 2017, p. 184.

[5] Entre os efeitos da internação hospitalar, menciona-se o hospitalismo, designação adotada por René Spitz, psiquiatra e pesquisador austríaco que estudou os efeitos da privação de afeto na primeira infância.  Cf. SPITZ, René. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 2013.