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Deve o trust ser incorporado no direito brasileiro?

Até o presente momento restaram frustradas todas as iniciativas de incorporação do trust como instituto geral

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O interesse pelo trust

Não existe no Brasil o trust. Nada obstante, aparece ocasionalmente na imprensa, associado por vezes ao planejamento patrimonial e sucessório de grandes fortunas, ou, em certas ocasiões, a fraudes e ilícitos. Fato é que não representa mecanismo acessível aos brasileiros em geral, haja vista que sua constituição deve ocorrer necessariamente no exterior, regendo-se por legislação própria, sem prejuízo da observância, conforme o caso, das normas do direito brasileiro eventualmente aplicáveis.

A circunstância de no Brasil não existir o trust, associada ao fato de muitos brasileiros – que têm possibilidade financeira e orientação profissional – instituírem trust no exterior, suscita o interesse pelo estudo desse instituto. Afinal, precisamos do trust no Brasil? O que buscam esses brasileiros com a constituição de trust em outros países? Esses objetivos são legítimos ou violam alguma norma do direito pátrio? Não seria possível alcançar os mesmos resultados pretendidos por meio de mecanismos já consagrados em nosso direito? Essas são as indagações que o presente texto busca, sucintamente, enfrentar.

O que é o trust?

O trust caracteriza-se pelo binômio flexibilidade-segurança. Flexibilidade que decorre de sua notável aptidão funcional, a ponto de já se ter afirmado que o trust serviria para absolutamente tudo.1 Segurança oriunda da proteção patrimonial que proporciona, vez que lhe é inerente o mecanismo do patrimônio de afetação.

A figura do trust encontra suas origens no direito inglês2 e, dentre suas possíveis configurações, pode se estruturar com três personagens: (i) o settlor (fiduciante), que é aquele que institui o trust; (ii) o trustee (fiduciário), o qual recebe do settlor a titularidade de bens para a execução do encargo contido no ato de constituição do trust; e (iii) o beneficiário, que receberá os proveitos da administração patrimonial empreendida pelo trustee.

O trustee, embora seja o proprietário dos ativos transmitidos pelo settlor, deve geri-los em atenção aos interesses dos beneficiários. Por tal razão, é bastante difundido o entendimento de que o trust acarreta a divisão da propriedade em formal e substancial. O desmembramento do domínio em formal e substancial mostra-se, contudo, incompatível com princípios basilares de países da tradição romano-germânica, de modo que esta leitura do trust dificulta sobremaneira a tentativa de sua incorporação pelos ordenamentos da civil law, como o Brasil.

Diante disto e da necessidade cada vez maior de países de tradição romano-germânica lidarem com a figura do trust – tendo em vista o volume crescente de interações negociais, políticas e econômicas entre os diversos Estados –, a Convenção da Haia sobre a Lei Aplicável aos Trusts e sobre o Reconhecimento Deles3 procurou expressar os principais efeitos do trust – que o tornam expediente flexível e seguro na common law – em instrumentos compatíveis com os ordenamentos da família romano-germânica. Como elucida a Convenção da Haia, tais efeitos podem ser alcançados por meio da técnica da titularidade fiduciária associada ao patrimônio de afetação.4

Consoante esclarece a Convenção da Haia, (i) os bens em trust constituem patrimônio separado, que não se confunde com o patrimônio pessoal do trustee; (ii) a titularidade dos bens em trust fica em nome do trustee; (iii) o trustee tem o poder e o dever, do qual deve prestar contas, de administrar, gerir ou dispor dos bens, de acordo com os termos do trust e com os deveres específicos que lhe são impostos pela lei; (iv) os credores pessoais do trustee não podem excutir os bens em trust; (v) os bens em trust não serão arrecadados na hipótese de insolvência ou falência do trustee; e (vi) os bens em trust não integram o patrimônio da sociedade conjugal nem o espólio do trustee.5

Opera-se, como se vê, verdadeira blindagem patrimonial,6 de maneira que os bens em trust ficam insuscetíveis de ataque por aqueles que não têm pertinência com a finalidade do trust. É oportuno destacar, ainda, que os trusts com essa tripla configuração (settlor, trustee, beneficiário) não são perpétuos e têm prazo para terminar, revertendo-se os bens em trust em proveito dos beneficiários ou de quem o settlor determinar.

Países como Luxemburgo, Panamá, México, Porto Rico, Argentina e França já assimilaram os elementos fundamentais do trust a partir da ideia de patrimônio separado, denotando a possibilidade de absorção do trust pela civil law.

As tentativas de incorporação do trust pelo direito brasileiro

Não são recentes os esforços de aclimatação do trust no Brasil. Nessa direção, vale destacar o Projeto de Lei nº. 3.362, de 1957, que buscava instituir o Fideicomisso inter vivos; o Projeto de Código das Obrigações, de 1965, que tratava do Contrato de Fidúcia; o Anteprojeto de Código Civil, que previu a possibilidade de separação patrimonial, o que foi mantido pelo Anteprojeto revisto de 1964; o Projeto de Lei nº. 4.809/1998, que também buscou introduzir o Contrato de Fidúcia; e, mais recentemente, o Projeto de Lei do Senado nº. 487/2013, que cuida do Contrato Fiduciário.

Até o presente momento, contudo, restaram frustradas todas as iniciativas de incorporação do trust como instituto geral. O que há é a aplicação episódica do trust para certas atividades específicas, em relação às quais o direito brasileiro se valeu da técnica da titularidade fiduciária e do patrimônio separado.7 O legislador pátrio tem criado cada vez mais hipóteses de titularidade fiduciária conjugada com a técnica da afetação patrimonial, em eloquente processo histórico de incorporação paulatina dos principais efeitos do trust referido na Convenção da Haia. Cabe destacar, a título ilustrativo, o fundo de investimento imobiliário (Lei nº. 8.668/1993); a incorporação imobiliária, após as alterações introduzidas pela Lei nº. 10.931/2004; a securitização de créditos imobiliários (Lei nº. 9.514/1997); o sistema de consórcio (Lei no. 11.795/2008); o sistema brasileiro de pagamento (Lei no. 10.214/2001); e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários (Lei no. 12.810/2013). Nesse contexto, cumpre indagar quais seriam as vantagens da incorporação do trust, como instituto geral, pelo ordenamento pátrio.

O que mudaria no direito brasileiro com a incorporação do trust?

Muito mudaria. O trust seria importante opção que se somaria aos institutos já existentes, com a vantagem de ser moldável aos interesses e necessidades de cada brasileiro.

Exemplificativamente, no lugar de se pagar um seguro educacional para garantir a educação dos filhos, seria possível transferir ao trustee a titularidade de determinados ativos, que ficariam blindados e totalmente destinados a prover a educação dos filhos. Pode-se pensar, também, na doação de bens a menores. A doação – que é perfeitamente admitida no direito pátrio –, quando efetuada diretamente a menores, representa severo engessamento na administração dos ativos doados. O trust, por outro lado, permitiria que os menores fossem os beneficiários da administração dos bens, mas sem serem donos deles, a possibilitar ágil e eficiente gestão desses ativos, conforme determinado no ato de instituição do trust.

A utilidade de se incorporar no Brasil o trust explica-se, assim, pela conveniência de se criar mecanismo que, por sua versatilidade, seja apto à realização de inúmeras funções, de modo a otimizar a tutela de importantes interesses. Se é verdade que o legislador se utiliza da técnica da titularidade fiduciária e da separação patrimonial toda vez que julga necessário, por outro lado também é verdade que nem sempre o legislador identifica as demandas sociais no devido tempo. Além disso, a incorporação do trust acarretaria maior democratização do instituto, por possibilitar que mais brasileiros, e não apenas aqueles com recursos para constituí-lo no exterior, a ele tenham acesso para realizar finalidades adequadas à sua realidade.

Dada a versatilidade funcional do trust, ele poderia ser utilizado em variados setores, para os mais diversos objetivos, como a maior proteção dos vulneráveis, novas possibilidades de planejamento patrimonial e sucessório, bem como otimização do aproveitamento das garantias fiduciárias hoje existentes.8

Não seria possível alcançar, no Brasil, os mesmos resultados pretendidos com o trust por meio de mecanismos já consagrados em nosso direito?

Não. Nenhum instituto tradicional da família romano-germânica consegue alcançar a mesma finalidade do trust. Em todos eles falta a possibilidade de as partes efetivamente segregarem parte do seu patrimônio, que é justamente o que confere ampla potencialidade funcional e segurança ímpar ao trust.

O trust serviria para burlar normas hoje existentes?

Encontra-se difundido o receio de o trust ser instrumento propiciador de fraudes. Quanto a este aspecto, é de se ressaltar que não há risco específico associado ao trust que seja superior ao já existente pela utilização de outros institutos consagrados. Qualquer instrumento jurídico pode ter sua função desvirtuada e servir para acobertar ilícitos. Um simples contrato de compra e venda pode ser utilizado como fachada para lavagem de dinheiro ou para simular doação proibida. A pessoa jurídica pode acobertar abusos dos seus sócios, a retrovenda pode encobrir juros usurários e assim por diante. Nem por isso se deixa de reconhecer a legitimidade desses institutos, paralelamente ao fomento de instrumentos de controle, de modo a se coibirem todos os tipos de ilicitude.

Nada obstante, há o temor de a admissão do trust facilitar sobremaneira fraudes contra os herdeiros, cônjuge e credores, haja vista a afetação patrimonial que lhe é inerente. Entretanto, a criação de patrimônio separado, como qualquer ato de disposição, sujeita-se a rigorosos controles destinados a aferir sua validade. Nessa direção, há de se verificar se contou com a anuência do cônjuge, nos casos em que a lei o exija; se respeitou a legítima dos herdeiros necessários, em se tratando de alienação gratuita; se o beneficiário do patrimônio separado pode receber os proventos diretamente do constituinte; se houve fraude aos credores, e assim por diante. Aplicam-se ao trust, portanto, todos os preceitos de ordem pública incidentes sobre o concreto regulamento de interesses.

O trust, insista-se, não é diverso de qualquer outro ato de alienação e, portanto, os mesmos controles de ilicitude e abusividade atinentes aos atos de disposição incidem no trust. A blindagem patrimonial, nesse sentido, não surge como meio propiciador de fraude, mas como forma de tornar efetivo o trust, e, em última análise, o ato de alienação que por intermédio do trustee é realizado entre o settlor e os beneficiários.

Desse modo, o trust não carrega consigo qualquer perigo adicional de fraude que pudesse recomendar sua não absorção, em termos gerais, pelo legislador brasileiro. Ao revés, ao possibilitar um diverso aproveitamento dos bens em virtude da técnica do patrimônio separado, constitui o trust mecanismo de grande potencialidade funcional, a justificar sua incorporação pelo ordenamento pátrio.

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1 Se alguém se perguntar para que serve o trust, quase pode-se responder: ‘para tudo’!” (LEPAULLE, Pierre. Traité théorique et pratique des trusts en droit interne, en droit fiscal et en droit international. Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1932, p. 12, tradução livre).

2 DAVID, René aduz: “A noção de trust, desconhecida dos direitos romano-germânicos, é uma noção fundamental do direito inglês e a criação mais importante da equity” (Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 315-316).

3 A Convenção da Haia, que não foi assinada pelo Brasil, é de extrema importância para a compreensão do trust pelos países da civil law, porquanto seu objetivo primordial consiste em traduzir os principais efeitos do trust em instrumentos que possam ser compreendidos e absorvidos pelos ordenamentos de tradição romano-germânica.

4 V. OLIVA, Milena Donato, Desvendando o patrimônio de afetação, publicado no JOTA em 25.10.2017 (https://www.jota.info/artigos/desvendando-o-patrimonio-de-afetacao-25102017).

5 Cf. arts. 2o e 11 da Convenção da Haia.

6 OLIVA, Milena Donato, Desvendando o patrimônio de afetação, publicado no JOTA em 25.10.2017. (https://www.jota.info/artigos/desvendando-o-patrimonio-de-afetacao-25102017).

7 Diverso não é o olhar estrangeiro sobre o sistema brasileiro. V. RODRIGUEZ-AZUERO, Sergio. La fiducie en Amérique latine: une expérience étonnante. In: Trust & Fiducie: concurrents ou compléments, Actes du colloque tenu à Paris les 13 et 14 juin 2007, Academy & Finance: Genève, 2008, p. 109; MALUMIÁN, Nicolás; DIPLOTTI, Adrián G.; GUTIÉRREZ, Pablo. Fideicomiso y Securitización. Análisis Legal, Fiscal y Contable. Buenos Aires: La Ley, 2006, p. 469.

8 Sobre o tema, cf. OLIVA, Milena Donato. Do negócio fiduciário à fidúcia. São Paulo: Atlas, 2014, p. 104-142.

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