Está dada a largada para o ano eleitoral. Com isso, veremos inúmeras retrospectivas sobre os políticos que ocuparam mandatos nos últimos anos, a exemplo deste monitoramento feito pelo G1. Das promessas feitas, quantas delas o político eleito cumpriu?
O apego ao controle de promessas cumpridas é sintomático de nossa pouca tradição de avaliação de resultados medidos tendo por base os resultados que se esperava produzir. Infelizmente, é frequente que nem a etapa de planejamento seja feita de forma racional e criteriosa, que dirá a avaliação retrospectiva. Em contramão a isso, neste artigo vamos propor um outro olhar, que pode ajudar a amadurecer nossa relação com as políticas públicas: e se, em vez de contar promessas cumpridas, contássemos impactos (positivos e negativos) realizados?
Sabe-se que o processo de elaboração de leis e políticas públicas, pela sua própria estrutura e pelos atores envolvidos, é notoriamente político. Tome-se o exemplo do fim do horário de verão, tema que aflora nas pessoas sentimentos semelhantes a uma final de campeonato: alguns são defensores convictos, ao passo que outros o odeiam visceralmente. As opiniões de cada lado se guiam por mais sentimentos pessoais (que candidatos sabem bem explorar) do que por reflexões racionais sobre benefícios e malefícios da medida.
Diferentemente, é dever do gestor público refinar o debate, buscando dados e evidências que amparem a ação estatal. Isso porque, como indicam as diretrizes da Legística, sempre guiadoras das reflexões promovidas pelo Observatório para a Qualidade da Lei no JOTA, uma ação meramente política, ainda que lastreada na boa-fé, não é suficiente para que os efeitos concretos desejados sejam garantidos.
Parece natural que, das promessas feitas em momentos de campanha, várias delas sejam atualizadas e aprimoradas. O candidato em campanha não detém todas as informações necessárias para elaborar uma política pública madura, em virtude de várias limitações. Ele tem conhecimentos limitados sobre os recursos que terá disponíveis, os impactados pela intervenção, a dimensão dos resultados que poderão ser reduzidos (tanto aqueles desejados quanto os negativos, ou efeitos colaterais).
Mesmo o candidato à reeleição sabe que as regras da campanha política vitoriosa são diferentes daquelas que guiam a gestão pública de qualidade. No calor da campanha, porém, muitas vezes os discursos e falas são proferidos para conquistar o eleitor, com pouca consideração para a boa gestão, que se torna problema no ano que vem.
Infelizmente, o eleitor acaba se tornando refém em um cativeiro que ele mesmo cria: ao tentar acompanhar o cumprimento das promessas que escutou, muitas vezes não se atenta para os reais impactos que a intervenção estatal produziu em sua vida.
No Brasil, ainda não existe uma tradição estabelecida de avaliar políticas públicas. Sabe-se que a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) representa um importante marco, ao impor que a criação ou alteração de regulamentos sejam precedidas da realização de análise de impacto regulatório (AIR), com relatório que contenha informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.
Por sua vez, o decreto que regulamenta a AIR (Decreto 10.411/2020) introduziu no ordenamento a figura da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), destinada a verificar os efeitos decorrentes da edição de ato normativo, considerados o alcance dos objetivos originalmente pretendidos e os demais impactos observados sobre o mercado e a sociedade, em decorrência de sua implementação. No entanto, ainda é incipiente a prática das avaliações retrospectivas, ou seja, voltar um olhar para o que a intervenção estatal de fato produziu.
É importante que toda ação pública ambicione ser racional, o que se faz quando se seguem lições fundamentais da Legística: a) conhecer de forma precisa o campo onde se dará a intervenção, bem como sua lógica de funcionamento; b) realizar um diagnóstico explícito da situação que coloque em evidência não somente os objetivos pretendidos, mas também os objetivos que o concretizam; c) elaborar estratégia eficaz, acompanhada pela avaliação tanto prospectiva quanto retrospectiva e, sendo o caso, a realização das correções que se impuserem[1].
Com isso em mente, é preciso notar que uma política pública é um ciclo organizado em torno de três grandes fases: planejar, executar e controlar, como nos explica Élida Graziane Pinto[2]. Nesse entendimento, destaca-se que a promessa de campanha surge antes mesmo do planejamento. Trata-se do vislumbre de um suposto problema, que pode ser antecipado pelo candidato na condição de cidadão, mas não deve ser mantido intacto quando o candidato é elevado à condição de gestor público.
A fase de planejamento de uma política pública, quando realizada de maneira adequada, começa com a identificação de um problema, que deve ser bem delimitado e compreendido. Não deve haver intervenção estatal gratuita, sem motivo, já que a intervenção normativa sempre deve ser motivada por um problema.
A partir disso, será possível pensar soluções que extrapolem a retórica política e se revelem na prática, desenvolvendo a etapa da execução por meio de caminhos viáveis e eficientes para de fato atingir os objetivos pretendidos.
Por fim, tem-se a etapa do controle como constante, para observar os resultados ao longo do tempo e realizar eventuais ajustes. Trata-se de fase muitas vezes esquecida nas discussões — até mesmo porque planejamento e execução já constituem grandes desafios —, porém fundamental para a consolidação de uma política pública adequada. Afinal, por mais que o problema seja estudado e atacado, as variáveis da realidade — sempre mais complexa do que estudos técnicos e opiniões cidadãs — são percebidas juntamente com as variáveis antecipadas, impactando-as e dando aos fatos um contorno diverso do que foi desejado[3].
E, com a avaliação retrospectiva, fecha-se o ciclo, pois apenas com o preciso conhecimento da situação considerada insatisfatória, objeto da intervenção estatal, é possível avaliar a eficácia da política pública[4]. Como saber se os objetivos foram alcançados quando não houve uma boa descrição, na etapa de planejamento desses objetivos?
Retomando o exemplo do horário de verão, trata-se de mecanismo instituído pela primeira vez em 1931, com objetivo de reduzir o consumo de energia elétrica. Segundo estudos do Ministério de Minas e Energia, a economia de energia decorrente da medida se tornou marginal após o deslocamento do pico de energia para a tarde, em razão do aumento do consumo de equipamentos de ar condicionado. Entretanto, o horário de verão impacta muito mais que o consumo de energia. Estima-se que mais tempo de luz ao fim do dia aquece o movimento em bares e restaurantes, razão pela qual a Associação Nacional de Restaurantes pediu a volta do horário de verão em 2021, medida que, sabe-se, não foi atendida.
Assim, o impacto do horário de verão não se limita ao consumo de energia elétrica, ele afeta a rotina das pessoas e a forma como elas organizam suas atividades. Uma boa avaliação de impacto procura enxergar todos esses impactados, para que a decisão seja tomada de forma racional: considerando parâmetros sociais mais amplos, compensa manter o horário de verão? Não nos aventuramos a responder essa pergunta neste artigo. O exemplo é lançado apenas para ilustrar como problemas aparentemente simples podem esconder enorme complexidade, com diferentes atores impactados em diversos segmentos sociais e econômicos.
E, se a real complexidade de um problema é algo impossível de se apreender ainda que contando com diversos dados e insumos, o que dizer da percepção de um candidato? Se promessas de campanhas são pensadas em situações de assimetria de informação com relação à realidade fática, ou mesmo baseadas principalmente por fundamentos políticos, é esperado que essas mesmas promessas amadureçam durante o mandato, ganhando novas perspectivas que podem acabar levando à criação de políticas públicas diferentes daquelas idealizadas a princípio.
Ademais, a análise qualitativa do cumprimento das promessas é mais difícil do que a quantitativa, que poderia ser realizada por meio dos “checklists” utilizados no monitoramento de promessas cumpridas. A análise qualitativa, por sua vez, exige que os dados e números sejam contextualizados dentro do sempre complexo contexto socioeconômico.
Por essa razão, indicar numericamente a quantidade de promessas cumpridas, embora pareça uma forma simples e compreensível de mostrar ou avaliar o serviço, pode ser na verdade bastante prejudicial. Ao fazê-lo, tornamos o candidato — ou mesmo a própria dinâmica das eleições — refém de promessas feitas em campanha, prisioneiro de opiniões e intuições manifestadas sem completo conhecimento do problema. Caso se preocupe com a métrica, o então gestor pode evitar revisar a promessa, amadurecendo-a em virtude de novos insumos informacionais coletados, por receio de não ser representado como aquele que não cumpre promessas.
Além disso, também a forma como acompanhamos os mandatos pode ser repensada em decorrência da pandemia. É importante destacar que algumas das mais importantes ações dos políticos que disputarão as eleições em 2022 ocorreram no contexto de enfrentamento da Covid-19. Nenhuma promessa foi feita, já que a pandemia que assolou o planeta era um cenário impensável nas eleições de 2018. E, não obstante, é preciso avaliar cuidadosamente as intervenções estatais promovidas nesse contexto.
Nesse sentido, até mesmo para contextualizar as análises de (des)cumprimento de promessas feitas anteriormente, em razão da pandemia ou não, os dados são essenciais. É preciso que sejam considerados dados sobre a realidade brasileira e suas nuances, bem como sobre políticas públicas, não apenas para o exercício dos trabalhos dos gestores públicos, como também para o acompanhamento da gestão pelos cidadãos, em prol de uma cultura de avaliação de impacto, na tônica da Legística.
Analisar resultados dos mandatos — o controle — é ainda mais árduo do que verificar se os primeiros impulsos — planejamento e execução — foram tomados. No entanto, parece ser a melhor forma de avaliar os mandatos, bem como de acompanhar as promessas que estão por vir neste ano eleitoral.
[1] FLÜCKIGER, Alexandre; DELLEY, Jean-Daniel. A elaboração racional do direito privado: da codificação à legística. Cadernos da Escola do Legislativo, v. 9, n. 14, p. 35-58, 2019.
[2] PINTO, Élida Graziane. Ciclo das políticas públicas e legitimidade compartilhada das escolhas alocativas: um estudo em busca da vinculação à força normativa do planejamento. In: PINTO, Élida Graziane; SARLET, Ingo Wolfgang; PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; OLIVEIRA, Odilon Cavallari. Política pública e controle: um diálogo interdisciplinar em face da Lei nº 13.665/2018, que alterou a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2018. Cap. 4, p. 105-111.
[3] SOARES, Fabiana de Menezes; KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng. Introdução. In: SOARES, Fabiana de Menezes, KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng (Orgs.). Estudos em Legística. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019. p. 9-14. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/10/Miolo_Estudos-em-Legi%CC%81stica-Final2.pdf. Acesso em: 10 set. 2021.
[4] DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei, introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004.