Direito Societário

Covid-19 e a realização virtual das reuniões e AGs nas associações e fundações

Em tempos de pandemia, o que fazer quando a lei e o estatuto silenciam?

Crédito: Unsplash

Em junho de 2020, como resposta às consequências causadas pela pandemia do Coronavírus, entrou em vigor a Lei nº 14.010/2020, que regulamentou o chamado regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET).

De modo geral, o alcance do RJET foi amplo, ainda que objeto de diversas críticas. Abrangeu, entre outros aspectos, as hipóteses de prescrição e decadência, as relações contratuais, de consumo e de família, os regimes concorrenciais e, até mesmo, as deliberações no âmbito dos condomínios edilícios e de parte do rol das pessoas jurídicas de direito privado, este último elencado no art. 44 do Código Civil.

Sobre tais pessoas jurídicas, dispôs, em seu art. 4º, que as associações, sociedades – simples ou empresárias – e fundações deveriam observar as restrições e as determinações das autoridades sanitárias locais quando da realização das respectivas reuniões ou assembleias gerais presenciais.

Adicionalmente, previu, em seu art. 5º, a possibilidade da ocorrência de ditos conclaves de maneira eletrônica, desde que fosse assegurado ao participante a devida identificação e segurança do voto, mesmo que a realização nesta modalidade não estivesse antecipada nos atos constitutivos da pessoa jurídica. Vale dizer que a vigência do RJET foi expressamente disposta até 30 de outubro de 2020, data em que, em tese, deixaria de produzir efeitos.

Ainda, em julho de 2020, sobreveio a Lei nº 14.030/2020, que disciplinou a realização das reuniões e assembleias gerais ao longo do exercício de 2020 no âmbito das sociedades limitadas, anônimas e cooperativas, bem como das entidades do cooperativismo.

Naquela ocasião, o tema consolidou-se a partir da inclusão, no Código Civil, do art. 1.080-A, referente às sociedades limitadas; da alteração dos arts. 121 e 124, da Lei das Sociedades Anônimas; e da adição do art. 43-A, na Lei das Sociedades Cooperativas. Assim, mesmo quando superada a pandemia, autorizada estava a participação à distância dos sócios, acionistas e cooperados nas reuniões ou assembleias gerais, em conformidade com regulamento do respectivo órgão competente do Poder Executivo Federal a ser posteriormente editado.

Neste ponto, cabe o adendo de que a regulamentação para as sociedades limitadas, anônimas fechadas e cooperativas ocorreu através dos Manuais anexos à Instrução Normativa nº 81, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), enquanto que, para as sociedades anônimas abertas, por meio da Instrução nº 622, da Comissão de Valores Imobiliários (CVM).

Já quanto às associações, fundações e demais entidades não compreendidas sob a forma das sociedades limitada, anônima e cooperativa, a Lei nº 14.030/2020 limitou-se a reforçar as disposições do acima citado art. 5º da Lei nº 14.010/2020, estendendo os seus efeitos para 31 de dezembro de 2020.

Dessa feita, de um lado, a realização virtual das reuniões e assembleias gerais estava pacificada no âmbito das sociedades limitadas, anônimas e cooperativas, ao passo em que a lacuna permaneceu para as entidades do terceiro setor, notadamente as associações e fundações, objeto da presente análise.

Afinal, ante a ausência de prorrogação, para 2021, das medidas de enfrentamento à pandemia originalmente previstas para 2020, e, diante da necessidade de permanente adoção do distanciamento social, devem, as reuniões e assembleias gerais no âmbito das associações e fundações, serem realizadas de forma presencial ou digital?

Em um primeiro momento a resposta pode parecer óbvia ao se pensar nos efeitos nefastos do Coronavírus, seja economicamente, seja socialmente, haja vista o luto que define o País com os seus, hoje, aproximados 300.000 mortos. Em um segundo momento, porém, devem ser sopesados os aspectos legais que regem a matéria e, principalmente, as possíveis formas de enfrentar eventuais consequências negativas, se existirem, quando da inobservância daqueles.

Como regra, o Código Civil, nos inc. V, VI e VII do art. 54, direciona ao estatuto das associações, dentre outros aspectos, a indicação sobre o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos, as condições para a alteração das disposições estatutárias e a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas. O mesmo se aplica para as fundações, cujo funcionamento deve atender às normas previstas por seu instituidor, também via estatuto, ainda que a sua dinâmica, diferentemente das associações, esteja pautada no patrimônio e não na interação entre os seus membros.

Pois bem, quer-se com isso dizer que a lei não obriga que as reuniões ou assembleias gerais das associações e fundações sejam realizadas presencialmente; por outro lado, o quotidiano tornou tal prática um costume, especialmente diante do fato de, antes das revoluções tecnológicas, as interações sociais normalmente acontecerem tête-à-tête ou, se assim fosse autorizado estatutariamente, por meio de carta, telegrama, fax, e-mail ou afins.

Como reflexo, em grande parte dos estatutos ainda não há – ou pelo menos não havia – a previsão para a realização de conclaves digitais, de tal modo que o desrespeito às disposições estatutárias, notadamente quanto à forma de ocorrência das deliberações, poderia ensejar a anulação do ato.

Ou seja, o atual silêncio do legislador fez com que a realização das reuniões e assembleias gerais nas associações e fundações, prevista na legislação cuja vigência não foi ampliada, retornasse ao status quo ante: a ocorrência, como regra, presencial, salvo se outra forma não estivesse adiantada nos atos constitutivos.

Mais afundo, é de se considerar que, por detrás da opção pela realização presencial, encontrava-se preocupação latente: tornar inquestionável a presença de determinado membro e do efetivo exercício dos seus direitos sobre os rumos do objeto trazido para deliberação. Daí as inúmeras formalidades a serem atendidas, a citar desde as regras de convocação, os quóruns de instalação e deliberação, a lavratura da respectiva ata, a assinatura dos livros de registro de presenças, entre outras.

Tendo em vista a abertura legislativa ao não estabelecer uma regra, nem tampouco uma exceção, para a execução do ato, entende-se que a problemática aqui exposta não está propriamente na forma da sua realização, mas sim na necessidade de que se promova a efetiva participação dos membros, bem como de que as suas identidades sejam inquestionáveis, fato que pode ser perfeitamente ajustado sem que o conclave incorra em vícios que o invalidem, ainda que a sua realização na modalidade digital não esteja prevista no estatuto.

Analogamente, tal preocupação também se encontra refletida nos atuais Manuais do DREI para as sociedades limitadas, anônimas fechadas e cooperativas, no sentido de que seja adotado um sistema e uma tecnologia acessíveis aos participantes; haja segurança, confiabilidade e transparência ao longo do ato; ocorra o devido registro da presença dos participantes, do seu voto e demais manifestações; seja oportunizada a visualização de documentos no decorrer do evento; bem como seja, a gravação integral da reunião ou assembleia, arquivada na sede da pessoa jurídica.

Outrossim, soma-se ao ponto de vista acima expressado importantes princípios constitucionais; e, ambos, por sua vez, se aliam às recomendações dos diversos profissionais e órgãos de saúde que, ao diariamente se debruçarem sobre o enfrentamento da pandemia, não podem e nem devem ser ignorados pelo Direito.

Nos termos do art. 196, da Constituição Federal, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, disposição plenamente aplicável ao atual momento do País.

Em um cenário no qual cerca de 2.000 mil brasileiros morrem por dia e a sobrevivência dos demais depende, mais do que nunca, da adoção de medidas rigorosas de contenção do vírus, a realização eletrônica das reuniões e assembleias gerais deve ser compreendida como regra, ainda que, para alguns, às avessas.

Para tanto, além da observância às disposições legais atinentes à matéria e às demais regras estatutárias, que, diga-se, permanecem sendo plenamente aplicáveis, é recomendada a adoção de toda e qualquer ferramenta e mecanismo que privilegie a segurança jurídica, a citar, sem se restringir:

  • obediência aos prazos e regras para a convocação das reuniões e assembleias gerais e, optando-se pela realização virtual, indicar, no edital de convocação, a justificativa da escolha, a plataforma na qual o evento será promovido e a forma de acesso pelos membros da associação ou fundação;
  • respeito aos quóruns de instalação e de deliberação, uma vez que eles independem da forma de realização do ato;
  • disponibilização, aos membros, dos documentos cuja análise depende a deliberação, anteriormente e durante o evento;
  • opção por plataforma de reunião virtual que permita, dentre outros aspectos, a gravação integral do ato, a identificação e o registro dos participantes para fins de monitoramento e de emissão da lista de presenças, assim como a interação em tempo real entre eles.

Dessa sorte, conclui-se que o apego ao formalismo estrito, neste aspecto, em hipótese alguma deve ser privilegiado em detrimento da preservação da saúde, pilar indissociável de uma existência digna, nos moldes dos preceitos constitucionais.

Ao contrário, neste momento, é justamente este desapego, no caso da realização virtual das reuniões e assembleias gerais, que, concomitantemente, promoverá a perenidade destas associações e fundações – que não se tornarão acéfalas ou terão a sua estratégia de governança prejudicada – ao mesmo tempo em que garantirá a integridade dos seus membros, em respeito, sobretudo, ao valor inestimável de suas vidas.

Acredita-se que seja pertinente, diante da omissão legislativa, que as Corregedorias do Tribunais estaduais editem normativas que determinem aos órgãos registrais o dever de registro das atas e documentos que estejam em consonância com as diretrizes sucintamente apresentadas nesse artigo.


O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:


BRASIL. Lei nº 10.406/2002 – Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 15 mar. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.010/2020 – Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm. Acesso em 15 mar. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.030/2020 – Dispõe sobre as assembleias e as reuniões de sociedades anônimas, de sociedades limitadas, de sociedades cooperativas e de entidades de representação do cooperativismo durante o exercício de 2020; altera as Leis n os 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil); e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14030.htm. Acesso em 15 mar. 2021.

DEPARTAMENTO NACIONAL DE REGISTRO EMPRESARIAL E INTEGRAÇÃO. Instrução Normativa DREI nº 81. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/legislacoes-federais/01JUL2020_IN_81_com_ndice.pdf. Acesso em 15 mar. 2021.

BRASIL. Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 15 mar. 2021.

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