Contratos

Covid-19: impactos no adimplemento de obrigações contratuais

Momento requer foco na conciliação amigável das questões impactadas pelos efeitos da pandemia

Crédito: Pixabay

O surgimento da COVID-19 desencadeou, mundialmente, uma crise sem precedentes. Em escala global, a paralisação das atividades econômicas e negócios, para grandes e pequenas empresas, trouxe como consequência imediata a perda de receita. Os impactos afetam a todos, indistintamente. Trabalhadores autônomos, microempresários, profissionais liberais, dentre tantas outras categorias profissionais. Em prol da saúde e da vida, a ordem estabelecida passou a se resumir na frase: “fique em casa”.

Atento aos impactos econômicos da pandemia, o Governo rapidamente tratou de decretar estado de calamidade pública (Decreto Legislativo n. 06, de março de 2020) e, assim, buscou minimizar os prejuízos causados na vida de empregadores e empregados, editando medidas provisórias e projetos de lei. Alguns objetivam o diferimento no pagamento de impostos, outros, possibilitam a redução de jornada e salários.[1]

Apesar das medidas de socorro editadas pelo governo, não foram elas suficientes a mitigar o abalo causado na renda mensal das famílias brasileiras. Sem renda, e receita, o risco de obrigações não serem cumpridas é iminente.

No âmbito do direito privado pessoas estabelecem os mais diversos tipos de contratos, com vistas à celebração dos mais diversos tipos de negócios. Neste contexto, seria possível repactuar estas obrigações contratuais por conta dos impactos causados pela COVID-19? Mais do que isso, caberia ao Poder Judiciário decidir de maneira geral sobre a readequação de obrigações, determinando ser a COVID-19 um fato imprevisível?

O presente artigo trata de responder as perguntas acima, indicando a possibilidade de readequação (e repactuação) de determinadas obrigações contratuais no âmbito do direito civilista, elencando os preceitos trazidos pelo regramento jurídico bem como, entendimento jurisprudencial sobre o tema, apontando, ao final, um caminho possível de ser trilhado.

Pois bem: “as obrigações contratuais existem para serem cumpridas”. Aliás este é um costumeiro princípio do ordenamento jurídico representado pelos brocardos do “pacta sunt servanda” e “rebus sic stantibus”. O primeiro, determina, como já mencionado, que as obrigações existem para serem cumpridas.

O segundo, instrumentaliza a Teoria da Imprevisão a qual se direciona ao equilíbrio de obrigações comutativas, recíprocas e onerosas e objetiva a execução do contrato nas mesmas condições em que pactuado, salvaguardando os contratantes de mudanças imprevisíveis e inesperadas. De maneira simplista traduzem o conceito de que: na celebração de um contrato o que as partes convencionaram deve ser cumprido até seu termo final, a menos que fatos imprevisíveis e inesperados ocorram.

A arguição de fatos imprevisíveis e inesperados, em geral, é invocado pela parte lesada, que requer, à outra, a desoneração no cumprimento da obrigação sem a aplicação de qualquer penalidade.

O teor do artigo 478 do Código Civil determina que, se o cumprimento de uma obrigação para uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá a parte lesada pedir a rescisão do contrato, podendo esta ser evitada se a parte credora da obrigação modificar equitativamente as condições do contrato, na esteira do previsto pelo artigo 479.

Portanto, a aplicação da Teoria da Imprevisão, somente pode ser aplicada se o fato extraordinário e imprevisível, causador de onerosidade excessiva, for aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação. Este foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça em julgamento de Recurso Especial onde foi Relator o Ilustre Ministro Luis Felipe Salomão.[2]

Admitindo-se como certa a chegada da COVID-19 no Brasil, é possível concluir que a imprevisibilidade estaria ligada muito mais a um aspecto temporal.

Se essa fosse considerada imprevisível, o que não parece, caberia invocar os institutos de excludentes de responsabilidade: o do caso fortuito e da força maior. Estes liberariam o devedor do cumprimento das obrigações pactuadas em um determinado contrato, com base na ocorrência de fatos imprevisíveis. Neste sentido, é o que determina o artigo 393 do Código Civil.

Alguns doutrinadores creditam determinadas diferenças entre ambos os institutos, no entanto, seja na ocorrência de um ou de outro, estes mesmos doutrinadores são unânimes em acatar a similaridade nos fundamentos fáticos para sua ocorrência, quais sejam: para que se concretizem, é importante que o evento seja imprevisível, inevitável e externo.

Mas a lei civil além de determinar a imprevisibilidade do fato, também determina que este deve acarretar uma desproporção manifesta ou uma onerosidade excessiva capaz de impedir o cumprimento da obrigação. O que isto quer dizer? Que somente a arguição da ocorrência de um fato imprevisível não desonera o devedor.

O tema carece da análise conjunta de outros artigos do Código Civil, além dos já acima citados, 478 e 479, a dos artigos 317 e 480 do mesmo regramento jurídico.

Assim, “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e a do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-la, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”, é o que estabelece o artigo 317.

Por sua vez, o teor do artigo 478 determina que, se o cumprimento de uma obrigação para uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá a parte lesada pedir a rescisão do contrato, podendo esta ser evitada, na esteira do previsto pelo artigo 479,  se a parte credora da obrigação modificar equitativamente as condições do contrato.

Por último, estabelece o artigo 480 do mesmo regramento jurídico que, se no contrato, as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de se evitar a onerosidade excessiva.

Em vista dos dispositivos legais citados, surgem alguns questionamentos: caberá ao judiciário avaliar a “desproporção manifesta” para valorar o cumprimento de obrigações contratuais em novos patamares como permitido pelo artigo 317? A exemplo disso, seria possível alegar esta mesma “desproporção” para, por exemplo, o locatário inadimplir sua obrigação de pagamento por conta de sua perda (momentânea) de receita? Ainda, seria justo o Judiciário suspender o pagamento do aluguel de locador idoso e cuja renda é exclusivamente à sua própria subsistência?

E mais, no momento atual, seria possível o devedor requerer a resolução (rescisão) de um contrato decorrente de alegada “vantagem para a outra parte” sabendo-se que todos, indistintamente, estão fragilizados com os efeitos da crise causada pela pandemia?  A alegação não parece razoável.

O fato é que, para que possa arguir a imprevisibilidade do evento e como consequência uma onerosidade excessiva capaz de desobrigar o devedor do cumprimento da obrigação, é necessário que este demonstre a impossibilidade integral no seu cumprimento causada pelo evento  e, não apenas, a simples alegação de que a obrigação tornou-se difícil de ser cumprida.

Com isto em mente o pedido de moratória, entendida esta como a concessão de um prazo para cumprimento de uma obrigação, sem prova da efetiva impossibilidade no cumprimento obrigacional pactuado, teve entendimento nos tribunais no sentido de que a moratória deve ser estabelecida através de ato negocial entre partes, não cabendo ao Judiciário decidir a respeito.

Apesar de algumas poucas decisões em sentido contrário, este tem sido o caminho adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Não seria crível admitir-se ser o Poder Judiciário, o ente responsável por decidir sobre as relações de direito privado, sobretudo sob o argumento de que, por conta da diminuição de receita e paralisação de negócios decorrentes da COVID-19, nenhuma obrigação pode ser mais cumprida, e assim, seja por este decretada moratória geral e irrestrita para todos os casos que se apresentem.[3]

Ademais, não se apresenta razoável determinar-se de maneira geral, o que se pode, ou não se pode fazer em contratos celebrados e vigentes, impactados em tempos da COVID-19. Isto demanda o estudo (e análise das provas apresentadas) de cada caso concreto.

O caminho adotado pelo Poder Judiciário Estadual Paulista está alinhado a julgados proferidos no mesmo sentido, antes mesmo dos impactos da pandemia. É possível encontrar julgados de 2019 onde foram aventadas, pelo devedor, a ocorrência dos institutos de caso fortuito e força maior tendo a Corte decidido que estes institutos não se confundem com os riscos inerentes ao próprio negócio e, portanto, não podem estes ser invocados sob o argumento de serem considerados excludentes de responsabilidade, capaz de liberar o devedor do cumprimento da obrigações pela quais se obrigou contratualmente.

Em optando-se pela judicialização, cada caso será analisado segundo suas próprias particularidades. Assim, e diante da incerteza de julgamento favorável, o caminho da conciliação como forma de solução de conflitos evidencia-se como a melhor medida a ser tomada.

Portanto, a readequação de obrigações contratuais pela negociação amigável é medida perfeitamente possível nos tempos atuais. Neste contexto destaque-se que o artigo 360 do Código Civil estabelece o instituto da novação, como forma de se criar uma nova obrigação, substituindo e extinguindo a obrigação anterior diante da repactuação celebrada.

Por último, e com o escopo de renegociação de obrigações contratuais, imprescindível que as partes tenham como premissa à negociação, a boa-fé objetiva, traduzindo-se esta pelo disposto no artigo 113 do Código Civil que preceitua: “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”, e ainda, pelo estabelecido no artigo 422 do mesmo regramento, onde: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Com base em todo o acima aludido, o melhor caminho é (re)negociar os termos e condições anteriormente pactuados, nos mais diversos tipos de contratação, com vistas a torná-la equilibrada e equitativa para todas as partes, da mesma relação jurídica. Outra alternativa, seria o acionamento das câmaras arbitrais e do instituto da mediação, a depender do valor envolvido no litígio, com o objetivo de solucionar amigavelmente a questão.

O momento requer diálogo e empatia, com foco na conciliação amigável das questões impactadas pelos efeitos da pandemia. A imprevisibilidade que se apresenta é a do futuro, pós COVID-19

[1] No âmbito do direito do trabalho, a Medida Provisória n. 936 possibilitou a readequação de contratos vigentes com a redução de jornada de trabalho e salários, ambos com foco na preservação de empregos. Por sua vez, a Medida Provisória n. 927 tratou de diferir o recolhimento do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS pelos empregadores e, ainda, a Portaria n. 7.820 editada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional estabeleceu proposta de acordo para contribuintes cujos débitos já tenham sido inscritos em dívidas ativas da União.

[2] Recurso Especial nº 860.277-GO (2006/0087509-3) EMENTA DIREITO CIVIL E COMERCIAL. COMPRA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. ELEVAÇÃO DO PREÇO DO PRODUTO. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INOCORRÊNCIA. 1. A cláusula rebus sic stantibus permite a inexecução de contrato comutativo – de trato sucessivo ou de execução diferida – se as bases fáticas sobre as quais se ergueu a avença alterarem-se, posteriormente, em razão de acontecimentos extraordinários, desconexos com os riscos ínsitos à prestação subjacente.

Apelação Cível. Onerosidade excessiva – Teoria da imprevisão Ementa: Apelação cível. Revisão das cláusulas contratuais. Onerosidade excessiva. Teoria da imprevisão. Desemprego. Precariedade do cargo. Inaplicabilidade. – A teoria da imprevisão pode ser aplicada, permitindo revisão de cláusulas contratuais, desde que ocorra fato superveniente capaz de tornar excessivamente oneroso o cumprimento do contrato para uma das partes e vantagem excessiva a outra. – O desemprego, em decorrência da exoneração de um cargo em comissão, é passível de acontecer em qualquer tempo, tendo em conta sua precariedade, e tal fato, por si só, não é capaz de alterar as cláusulas do contrato de empréstimo livremente pactuadas com o banco. Apelação Cível nº 1.0344.11.001376-2/001 Relator: DES. MARCO AURELIO FERENZINI

Apelação cível. Ensino particular. Ação de rescisão contratual cumulada com devolução de valores. Material didático e serviço de aprendizagem. Ausência de direito de arrependimento. Resolução por onerosidade excessiva. Impossibilidade. Inexiste qualquer adminículo de prova que tenha havido a denominada venda casada, porquanto o contrato possibilitava a contratação do material didático e do curso separadamente, havendo cláusulas expressas neste sentido. Inexiste abusividade ou ilegalidade na cláusula que não permite o cancelamento da aquisição do material didático.

Com efeito, não se trata de contratação a domicílio, na qual é assegurado ao consumidor o prazo de sete dias para se arrepender, conforme art. 49 do CDC. De outro lado, não há falar em resolução por onerosidade excessiva, pois, a par da análise acerca da previsibilidade ou não da separação, é certo que este fato não trouxe qualquer vantagem à demandada, nos termos do art. 478 do Código Civil” (TJRS, AC 70045420072, Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto, 5ª C.Cív. J. 30.11.2011).

[3]Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de instrumento n. 2063701-03.2020.8.26.0000 de 06/04/20.