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Covid-19 e o tratamento de dados: em busca da cura ou do controle social?

Afinal, qual o destino destes dados ao fim da pandemia?

Foto: Claudio Neves/ Fotos Públicas

As últimas semanas foram marcadas pelo cenário de transformação social, econômica e política. Instabilidade é o que define esta conjuntura, seja no âmbito nacional, seja na seara internacional.

Todos os dias nos deparamos com notícias que versam sobre remédios, vacinas, quantidade de infectados, falecimentos e possíveis curas. Não se medem esforços para combater a pandemia da COVID-19. Em busca de informações, governos e entidades de pesquisa correm contra o tempo com o intuito de frear a disseminação da doença, ante à possibilidade de salvar vidas.

O que mais se destaca diante da situação é a velocidade da propagação das informações (tanto as verdadeiras quanto as fake news) e do desenvolvimento de pesquisas científicas, inclusive com resultados preliminares (ainda em discussão) em relação a vacinas e possíveis tratamentos.1

O desenvolvimento das mais variadas pesquisas científicas sobre o tema depende diretamente de um dos elementos que mais podem auxiliar na eliminação do Coronavírus: os dados.

Este primeiro momento de análise baseia-se nas produções científicas de Yuval Noah Harari, cujo conteúdo expressa a relevância dos dados no século XXI e seus principais impactos. Em entrevista ao programa Roda Viva, Harari afirmou que os dados estão se tornando o capital mais importante do mundo,2 daí surge sua importância para a humanidade que vivencia uma transformação digital. Por outro lado, firmou que nossos mandatários não possuem experiência em regular dados, eis que somente conhecem a regulação de terras, que eram consideradas o bem de maior valor no passado.

Importa destacar que “à medida que o volume e a velocidade que os dados aumentam, instituições veneráveis como eleições, partidos e parlamentos, podem tornar-se obsoletos – não porque sejam aéticas, e sim porque não processarão os dados com eficácia suficiente.”3

Esta exposição inicial demonstra a existência de uma dualidade em relação ao processamento de dados: por um lado, eles propiciam o desenvolvimento, fomentam a pesquisa e alcançaram o patamar de capital de maior valor atualmente; por outro, os impactos do processamento podem ser negativos, à medida que o desenvolvimento tecnológico desenfreado pode trazer riscos sociais e políticos.

O atual cenário de combate à pandemia deixa tal fato em evidência, pois mostra que cada país vem coletando dados sobre seus pacientes, contaminações, sintomas, reação a medicamentos e tratamentos, número de casos, dentre outros dados e informações, com o intuito de extirpar a doença ou ao menos minimizar seus efeitos. Isso demonstra que todas as pesquisas científicas acerca da pandemia dependem do processamento de uma grande quantidade de dados.

Graças ao advento da tecnologia, é possível que qualquer pessoa que tenha acesso à internet acompanhe a disseminação do vírus pelo mundo inteiro, em tempo real.4

Ao contrário do que ocorreu durante a pandemia da Gripe Espanhola de 1918, atualmente a disseminação da informação é tão rápida quanto a do próprio vírus, o que permite uma instrução melhor da sociedade sobre os cuidados de prevenção.

Para além dos fatores biológicos do vírus, os pesquisadores dependem necessariamente da criação de bases de dados capazes de comportar grandes quantidades de informações sobre os pacientes. Assim, as análises comparativas permitem averiguar se houve mutação genética do vírus, por exemplo. Portanto, os dados são imprescindíveis para o conhecimento e controle da pandemia, possibilitando também a busca de novos tratamentos e cura.

Associando-se a tal fato, muitos governos, universidades, hospitais e laboratórios buscam de forma autônoma desenvolver suas pesquisas, apresentando resultados diferentes a cada momento. É certo afirmar que a revolução tecnológica facilitou o acesso à informação e, por consequência, neste momento apresenta impactos extremamente positivos na medicina.

Sem embargo, não se pode olvidar dos riscos que o tratamento de dados em massa pode trazer. Em recente artigo, Harari afirmou que graças à tecnologia, os governos podem monitorar a todos, a todo o tempo, através de algoritmos e sensores onipresentes. O autor menciona o exemplo da China, em que “ao monitorar de perto os smartphones das pessoas, usar centenas de milhões de câmeras que reconhecem o rosto e obrigar as pessoas a verificar e relatar sua temperatura corporal e condição médica, as autoridades chinesas podem não apenas identificar rapidamente os portadores suspeitos de coronavírus, mas também rastrear seus movimentos” (tradução do autor).5

Por fim, Harari denota que a pandemia pode se tornar um divisor de águas em termos de vigilância, não somente por tornar a vigilância em massa um instrumento normal entre os governos, mas também por realizar uma transição da vigilância “sobre a pele” para “sob a pele”. O controle social não é mais somente por câmeras ou drones, mas sim pela obtenção de dados biológicos – tais como pressão arterial, temperatura e histórico médico. Não se pode imaginar que este controle esteja distante de nós: no Brasil, haverá monitorameto dos celulares para controle de aglomeração de pessoas, durante a pandemia.6

Tendo em mente que o intuito principal é combater uma pandemia, não parece tão impactante que um governo detenha inúmeros dados de milhões de pessoas.

Mas, diante da dicotomia do processamento de dados, questione-se: qual é o risco do tratamento de uma grande quantidade de dados por um único ou poucos controladores?

O processamento de uma grande quantidade de dados em um único lugar é mais eficiente do que o processamento distribuído. Por outro lado, este mesmo procedimento coloca a democracia em risco, pois permite que ditaduras se tornem mais eficientes, à medida que uma grande carga de informações – que podem servir de controle de indução de comportamento – estão na mão de poucos.7 Não se trata de um cenário abstrato ou de mera suposição: o documentário “Privacidade Hackeada”, por exemplo, demonstrou de forma contundente como a atuação da Cambridge Analytica pôde interferir diretamente nas eleições dos EUA e na campanha do Brexit, através da captação de dados em massa.8

A partir do momento em que se obtém uma série de dados sobre determinada pessoa, facilita-se a realização de um controle de indução de comportamento, ou seja, torna viável a manipulação da vontade.

Apresenta-se então um dos maiores dilemas éticos diante das pesquisas realizadas por governos e grandes empresas sobre a COVID-19: a utilização destes dados serve, inicialmente, para buscar amenizar ou findar a pandemia, mas podem ser utilizados para outros fins. Afinal, qual o destino destes dados, ao fim da pandemia?

Não se pretende instaurar um cenário caótico e concluir pela má utilização destes dados a fim de realizar um controle social. Por outro lado, faz-se imprescindível dar especial atenção à regulação e controle da utilização de dados pessoais neste momento, mormente diante da transformação da vigilância social para um patamar que se considera, no mínimo, duvidoso.

Sem dúvidas, o que se espera é que todos os dados coletados neste momento sejam utilizados em prol de um bem maior, possibilitando garantir a salvaguarda do direito fundamental à saúde. Sob outra perspectiva, é necessário cautela e discernimento quando se trata, em lado contrário, do direito fundamental à proteção de dados.

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1 Veja-se, a título exemplificativo, a discussão acerca do uso da hidroxicloroquina para combater os sintomas da doença: MOTA, Camilla Vares. Coronavírus: o que a Ciência diz sobre o uso da cloroquina contra a covid-19. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-52067244> Acesso em: 31 de março de 2020.

2 RODA VIVA. Roda Viva – Yuval Harari – 11/11/2019. 2019. (1h23m). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pBQM085IxOM> Acesso em: 16 de março de 2020.

3 HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P. 376.

4 A Microsoft criou um mapa que mostra a disseminação do Coronavírus pelo mundo, em tempo real, que pode ser consultado no site https://www.bing.com/covid.

5 HARARI, Yuval Noah. The word after coronavirus. Disponível em: <https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75> Acesso em: 31 de março de 2020.

6 DIEB, Daniel; GOMES, Helton Simões. Governo vai monitorar celular para controlar aglomeração na pandemia. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/02/para-combater-a-covid-19-o-governo-federal-vai-monitorar-o-seu-celular.htm> Acesso em: 03 de abril de 2020.

7 TED. Why fascism is so tempting – and how your data could power it – Yuval Noah Harari. (2019). (18m22s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xHHb7R3kx40> Acesso em: 30 de março de 2020.

8 PRIVACIDADE HACKEADA. Direção de Karim Amer e Jehane Noujaim. EUA: 2019. (154 min.).

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