Pandemia

Covid-19 e o pagamento de precatórios: existe solução?

Pagamento mais breve possível mitigaria os desastrosos efeitos econômicos do necessário distanciamento social

ponto eletrônico precedentes
Crédito: CNJ/Flickr

Estamos diante de uma crise sanitária provocada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Mas, o que se avizinha é uma gravíssima crise financeira decorrente do distanciamento social necessário para o “achatamento da curva” e à sobrevivência do combalido sistema de saúde brasileiro.

Em situações atípicas como a atual, as Instituições se valem de suas prerrogativas constitucionais para excepcionar o direito, na proporção das dificuldades verificadas, com vistas à mitigação dos impactos negativos na tessitura social. E o Direito Financeiro dada sua importância, não poderia ficar de fora.

Tem-se notícia de que há iniciativa, por parte dos governadores do Sul e do Sudeste, capitaneados pelo governador de São Paulo, para suspender, via Emenda à Constituição e em regime de urgência, a exigibilidade de precatórios[1].

A suspensão ocorreria por 12 meses, prorrogando-se a moratória que terminaria em dezembro de 2024 (artigo 101, caput, do ADCT), até o final de 2025. Além do mais, foi apresentado, no Senado Federal, Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº 116/2020) para sustar a Resolução nº 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamentou o pagamento dos precatórios nos tribunais de todo o país[2].

É inquestionável que, com o advento de uma crise sanitária desse porte e com a perspectiva de gravíssima recessão econômica daí decorrente, os entes federados terão dificuldades para manter um orçamento financeiramente equilibrado e alcançar as metas fiscais estabelecidas nas leis orçamentárias já aprovadas. No entanto, a suspensão do pagamento de precatórios não é uma solução conveniente no atual panorama. É o que passaremos a analisar.

Desde a promulgação da Lei Complementar nº 151/2015 pela então Presidente Dilma Rousseff, considerável parcela dos entes federados não se vale de recursos orçamentários próprios para o pagamento de precatórios, isto porque o referido diploma legislativo autorizou a utilização de até 70% dos depósitos judiciais referentes a processos em que a Fazenda Pública fosse parte para pagamento de precatórios, dívida pública fundada, despesas de capital e recomposição de fluxos de pagamento.

Por sua vez, as Emendas Constitucionais nºs 94/2016 e 99/2017 ampliaram o uso desses valores nos percentuais de 75% dos depósitos judiciais referente aos processos em que a Fazenda Pública fosse litigante e 30% dos depósitos judiciais existentes nas demais demandas. Tal utilização foi, inclusive, ratificada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 5.679), sobrevindo a regulamentação do uso pelo Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 303/2019).

Com a suspensão, via Emenda à Constituição ou Decreto Legislativo, haverá mais uma moratória em favor das Fazendas, em prejuízo dos credores de precatórios. Na conjuntura atual, porém, há um importante detalhe que está passando despercebido da maioria dos gestores públicos: a necessidade de aquecimento da economia.

É evidente que as medidas adotadas pelo Governo Federal, tais como a antecipação do 13º salário aos aposentados, concessão de benefício emergencial aos autônomos, a liberação parcial do FGTS, a facilitação de créditos, dentre outras medidas, estão voltadas à mitigação dos maléficos efeitos econômicos provocados pelo distanciamento social. A crise de agora é sanitária, mas, como visto, a crise econômica será tão assustadora quanto.

Há necessidade premente de que o dinheiro esteja em circulação e não nos bancos. O dinheiro deve estar com o povo, para que ele possa consumir e movimentar a economia. Suspender os pagamentos dos créditos daqueles de que mais necessitam (idosos, enfermos graves e pessoas com necessidades especiais) é, além de desumano, uma verdadeira contradição em relação às medidas de socorro adotadas pelo Governo Federal.

É notório o atraso do pagamento dos precatórios no Brasil. Enquanto que o município de São Paulo está parado na Ordem Cronológica de 2003 (o último pagamento ocorreu em 27/12/2019), a situação da Fazenda do Estado de São Paulo é ainda mais calamitosa: estacionou o pagamento no início da fila da Ordem Cronológica de 2002.

Louve-se a iniciativa do magistrado coordenador da Diretoria de Execução de Precatórios e Cálculos (DEPRE) do TJSP, Wanderley Federighi, ao decidir pela transferência de mais de 2 bilhões de reais que estavam depositados em uma conta especial para fins de acordo (conta nº 02), destinando-os para pagamento da Ordem Cronológica (conta nº 01), uma vez que o Governo do Estado só aceitava propostas de acordo com o absurdo deságio de 40%, que não foram aceitas[3].

É importante observar que, além da possibilidade de utilização dos depósitos judiciais, há previsão constitucional de (i) contratação de empréstimos (cf. art. 100, §19, CF e artigo 101, §2º, III, ADCT) para financiamento de percentual do montante total de débitos de precatórios e requisições de pequeno valor que ultrapasse a média de comprometimento percentual da receita corrente líquida, excetuada dos limites de endividamento previstos no artigo 52, VI e VII, da CF e de qualquer limite de endividamento, não se aplicando, inclusive, a vedação de vinculação de receita prevista no artigo 167, IV, da CF, bem como de (ii) abertura de linha de crédito especial com a União para fim exclusivo de pagamento de precatórios (cf. art. 101, §4º, ADCT). Por que não se valer de instrumentos tão poderosos previstos exatamente para solução dessa problemática?

Percebe-se que o objetivo dos estados e demais entes federativos é o de prorrogar ao máximo o pagamento dos precatórios pelas vias ordinárias (Ordem Cronológica e prioridades por idade ou doença grave), a fim de obrigar o credor, em sua urgência financeira, a aceitar acordo com deságio arbitrado ao talante da Fazenda Pública a (até 40%), diminuindo substancialmente sua dívida.

Caso aprovada a suspensão dos pagamentos proposta pelos devedores, até mesmo os depósitos judiciais deixariam de ser utilizados. Mais um benefício aos Entes Públicos inadimplentes em detrimento dos sofridos credores. Não faz o menor sentido, em tempos de futura (aliás, bem próxima) crise econômica, deixar dinheiro nos bancos públicos, sem circulação, em vez de entrega-los àqueles que darão o impulso de que tanto necessita a economia nacional.

Trata-se da “tempestade perfeita”: com as medidas de distanciamento (necessárias para o “achatamento da curva), tem-se menor giro econômico e, consequentemente, mais demissões, recuperações judiciais de empresas e desemprego.

Isso significa, dentre outros, menor arrecadação de tributos e estagnação, senão recessão, da economia e das cadeias nacionais de produção. O mercado pára e o Governo se endivida. Tanto é verdade que estão em debate e implementação medidas de complementação à renda familiar, como as citadas liberação parcial de FGTS e benefício emergencial, dentre outras.

Nesse sentido, deve-se procurar, de todas as formas possíveis, mecanismos para se colocar, literalmente, dinheiro nas mãos da população. Apesar do precatório constituir dívida do estado reconhecida judicialmente, não é possível ignorá-lo como mecanismo importante de distribuição de renda àqueles que necessitam, mormente os idosos, enfermos graves e pessoas com necessidades especiais.

Este mecanismo, constitucionalmente previsto, deve ser urgentemente utilizado como tal. Tanto é verdade que o Conselho Nacional de Justiça excepcionou, na suspensão de prazos e de trabalhos das Cortes no Brasil, o pagamento de precatórios e a expedição de Ofícios Requisitórios (Resolução nº 313/2020), por considera-los prioritários.

Com o Estado de Calamidade Pública decretado pelo Congresso Nacional ( artigo 1º do Decreto Legislativo nº 06/2020), é evidente que não serão cumpridas as metas fiscais e limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por razões de Justiça Social, não é cabível a suspensão do pagamento dos precatórios. Agora, mais do que nunca, devem ser pagos o mais breve possível a fim de se mitigar os desastrosos efeitos econômicos do necessário distanciamento social.

 


[1] Disponível em: <https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/04/doria-pede-suspensao-do-pagamento-de-precatorios-de-sp-por-12-meses.shtml>. Acesso em 12.04.2020.

[2] Disponível em: <http://tiny.cc/shf6mz>. Acesso em 13.04.2020. Trata-se de proposta teratológica, uma vez que pretende, por vias oblíquas, a suspensão de pagamento constitucionalmente previsto (cf. artigo 100, CF, e relacionados na ADCT), bem como pretende sustar resolução do Poder Judiciário, hipótese não admitida pelo artigo 49, V, da CF.

[3] Disponível em: <http://tiny.cc/jvf6mz>. Acesso em 15.04.2020.