Investimentos

Covid-19 e investimentos em distressed assets

Como boas oportunidades podem ser encontradas e estruturadas em momentos de crise

débitos tributários
Crédito: Marcos Santos/USP Imagens

A crise desencadeada pelo coronavírus é uma das mais devastadoras da história e seu impacto vem sendo sentido na economia, vide a queda do preço dos barris de petróleo do tipo WTI[1] e os graves prejuízos sentidos por setores como turismo, aviação, shows e eventos, além de mercados de startups, venture capital e private equity.[2]

Investimentos privados diminuíram drasticamente, como observado na queda de 30% no Ibovespa em março de 2020[3], e na fuga de capital estrangeiro na ordem de R$ 44,798 bilhões até o início do mesmo mês.[4] Diante desse panorama, fica a dúvida: como encontrar boas oportunidades de investimento e expansão de negócios no mercado privado e estruturá-las de maneira juridicamente viável?

As oportunidades em distressed assets são uma possível resposta, englobando diferentes tipos de ativos ligados a empresas com valor de mercado depreciado. Esses ativos correspondem tanto àqueles de titularidade da sociedade empresária, quanto a eventual participação societária detida por sócios ou acionistas na referida sociedade.

Sua depreciação pode estar relacionada a uma série de fatores, como baixo fluxo de caixa, má performance operacional, alto nível de alavancagem, incapacidade de cumprir com suas obrigações contratuais com credores e demais stakeholders ou mesmo problemas de governança.[5]

De fato, existem fundos especializados em investimento em distressed assets, os vulture funds, que adquirem posições minoritárias de companhias – eventualmente se envolvendo na gestão com vistas à recuperação da saúde financeira da empresa – ou  posições de controle, por meio de ações ou debêntures em quantidade suficiente para influenciar e dirigir o processo de reestruturação da empresa.[6]

Na atual crise, o mercado de M&A de distressed assets dos EUA tem sido ativo, com 28 aquisições, completas ou em andamento, de negócios falidos ou em processo de liquidação, totalizando 1,7 bilhão de dólares.[7]

Da mesma forma, como os negócios brasileiros também têm sido atingidos pelos efeitos da Covid-19, é provável que isso desperte o interesse de investidores para esse tipo de ativo. Em razão disso, reunimos algumas estratégias jurídicas que visam atribuir segurança às operações de aquisição de diferentes distressed assets, tanto sob a forma de participação societária como sob outras modalidades.

Recuperações Judiciais e Falências

Como consequência da promulgação da Lei de Recuperações Judiciais e Falências (Lei nº 11.101/2005 – LFR), surgiram novas oportunidades no mercado brasileiro de recuperação de empresas com a criação de incentivos para se investir em empresas em dificuldade financeira.

Os arts. 60 e 141, II da LFR estabelecem a possibilidade de venda de ativos ou filiais da empresa, de forma isolada (unidades produtivas isoladas – UPI), durante o processo de recuperação judicial, sem que quaisquer ônus ou obrigações anteriores do devedor, inclusive de natureza trabalhista, previdenciária e tributária, recaiam sobre o comprador, desde que tal alienação seja aprovada pela maioria dos credores presentes na assembleia geral de credores.

A LFR não está sozinha ao normatizar questões importantes relativas a distressed assets. O art. 133, §1º, do Código Tributário Nacional (CTN) reforça que os ônus ou obrigações tributárias não são transferidos do devedor para o comprador de UPI’s na recuperação judicial.

A intransferibilidade apenas não se aplica se o comprador for sócio, direta ou indiretamente, da empresa em crise; parente, em linha reta ou colateral, até o 4º grau, de sócio da empresa em dificuldade; ou for identificado como agente da empresa em crise, que tinha como objetivo fraudar a sucessão.

Assim, no Brasil, ainda que com as exceções à intransferibilidade comentadas acima, tanto a legislação falimentar como a tributária favorecem investimentos no mercado de distressed assets dentro do processo de recuperação judicial, ao permitir a aquisição de ativos e filiais de empresas em dificuldade sem que lhes sejam transferidos quaisquer ônus ou obrigações.

Cláusula de efeito material adverso (MAC)

Para além das disposições da LFR, existem ferramentas contratuais aptas a instrumentalizar operações envolvendo distressed assets com mais segurança, a exemplo das cláusulas de efeito material adverso (Material Adverse Effect Clause – MAC), embora sejam destinadas à prática do M&A em geral.

Essas cláusulas preveem a possibilidade de denúncia unilateral da transação pela parte que se sentir prejudicada pela ocorrência de um evento, previsível ou não, que altere substancialmente as premissas ou resultados da operação negociada.

Tal dispositivo é relevante porque em operações de M&A é frequente que transcorra um longo período do início das negociações até a conclusão da transação, atravessando etapas como a assinatura dos documentos definitivos, o fechamento e as implementações de certas previsões no pós-fechamento.

Dessa forma, para operações iniciadas previamente à pandemia, por exemplo, seria possível invocar a cláusula MAC caso uma das partes da transação, comprador ou vendedor, tenham sofrido fortes prejuízos em razão da crise gerada pelo surto viral ou caso os resultados da operação tenham se tornado imprevisíveis.

Contudo, os contratos de algumas transações podem estabelecer exceções à sua aplicação, prevendo sua não incidência em caso de alterações nas condições econômicas gerais ou setoriais (como variações na inflação, nos juros, ou em taxas cambiais).[8]

Assim, para se conferir segurança à inclusão da cláusula MAC em contratos que disciplinam a aquisição de um distressed asset, o método de averiguação de prejuízos ou imprevisibilidades ocasionadas a uma das partes deve estar expressamente previsto, bem como tais fatos precisam ter decorrido efetivamente da pandemia. Essas hipóteses se diferenciam de casos em que a materialização de tais prejuízos já era previsível mesmo antes da crise, tendo apenas sido agravada por ela.

Seguro de declarações e garantias (W&I)

Além das cláusulas MAC, os seguros de declarações e garantias (W&I) configuram outro mecanismo que possuem aplicabilidade para operações com distressed assets.

Contratos de compra e venda em transações de M&A contêm uma extensa lista de declarações e garantias prestadas pelas partes, cujo objetivo é garantir que as informações fornecidas, especialmente pelo vendedor, são verdadeiras.

Tais informações, na forma como prestadas, importam ao valor atribuído ao ativo que se pretende adquirir. Além disso, podem ser utilizadas como base para fixação de indenização caso, ao longo da operação ou após seu fechamento, seja verificado que determinadas declarações ou garantias eram falsas ou muito imprecisas, resultando em prejuízo à outra parte ou na imprevisibilidade dos resultados da transação.

É nesse contexto que surgem os seguros de W&I, que consistem em apólices para tais declarações e garantias em transações de M&A, beneficiando as partes ao mitigar o risco proporcionado pela ocorrência de fatos desconhecidos em cenários incertos.

Nos EUA, de 2008 a 2018, o uso total de seguros de declarações e garantias utilizados cresceu de 40 transações para mais de 1500, totalizando U$ 38.6 bilhões.[9] Na Europa, tais seguros também já encontram considerável aceitação no mercado.[10] No Brasil, apesar de ainda incipiente, o uso desse mecanismo teve alta de 30% em 2018.[11]

Conclusão

O direito brasileiro oferece um conjunto de mecanismos capazes de aumentar a segurança das partes em operações envolvendo distressed assets, permitindo que investidores aproveitem as oportunidades que surgem como alternativa em cenários de crise como a da Covid-19.

Em tais contextos, as ferramentas jurídicas comentadas viabilizam o prosseguimento da operação e mitigam riscos mesmo em cenários de grande incerteza e imprevisibilidade. Apesar de terem ganhado ainda mais relevância, essas ferramentas devem ser utilizadas com cuidado em razão da sensibilidade dos ativos envolvidos.

 


[1] D’AGOSTO, Marcelo. Como o preço do petróleo ficou negativo. Publicado no portal Valor Investe, em 21 de abril de 2020. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/blogs/marcelo-dagosto/post/2020/04/como-o-preco-do-petroleo-ficou-negativo.ghtml>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[2] Estudo avalia setores que ganharam e perderam durante a pandemia. Publicado no portal Startupi, em 26 de abril de 2020. Disponível em: <https://startupi.com.br/2020/04/estudo-avalia-setores-que-ganharam-e-perderam-durante-a-pandemia/>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[3] Paradas, pequenas empresas não têm fôlego nem para um mês. Publicado no portal Pequenas Empresas e Grandes Negócios, em 30 mar 2020. Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2020/03/paradas-pequenas-empresas-nao-tem-folego-nem-para-um-mes.html>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[4] LEAL, Luís Eduardo; DA COSTA, Gabriel Bueno; HOLTZ, Fabiana. Fuga de capital da bolsa é recorde. Publicado no Economia Uol, em 07 de março de 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/07/fuga-de-capital-da-bolsa-e-recorde.htm>. Acesso em: 24 de maio de 2020.

[5] KHOURY, Chris; PEGHINI, Eric. Distressed Private Equity: It’s cheaper if it’s on fire. Publicado Boccono Students Private Equity Club. Disponível em: <https://bspeclub.com/2019/03/14/distressed-private-equity-its-cheaper-if-its-on-fire/>. Acesso em: 05 de junho de 2020.

[6] MILANESE, Salvatore; GOUVEIA, Laysa. O mercado de distressed assets no Brasil: estatísticas, players e operações realizadas. Investimento em Distressed Assets. Organização Salvatore Milanese. – São Paulo: Matrix, 2019; Livro Kindle.

[7] BURNETT, Grace Maral. Analysis: M&A After the Boom. Publicado no Bloomberg Law, em 18 de maio de 2020. Disponível em: <https://news.bloomberglaw.com/bloomberg-law-analysis/analysis-m-a-after-the-boom>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[8] LUZONE, Leandro. A importância da cláusula MAC em fusões e aquisições em tempos de pandemia do coronavírus. Publicado no portal Migalhas, em 23 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/325249/a-importancia-da-clausula-mac-em-fusoes-e-aquisicoes-em-tempos-de-pandemia-do-coronavirus>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[9] Representation & Warranty (R&W) Insurance – Current Market Trends. Publicado no Cooley M&A, em 27 mar 2020. Disponível em: <https://cooleyma.com/2019/12/03/representation-warranty-rw-insurance-current-market-trends/#_ftn1>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[10] MORSE, James. W&I Insurance: A global perspective on a growing product. Publicado no portal Lexology, em 05 jul 20’9. Disponível em: <https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=e888d27f-5c57-4f85-b05a-d56e84efd7a4>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

[11] Procura por seguro para fusões e aquisições (M&A) no Brasil cresce em 30% em 2018, segundo a AIG Seguros. Publicado no portal da Revista Cobertura, em 27 fev 2019. Disponível em: <http://www.revistacobertura.com.br/2019/02/27/procura-por-seguro-para-fusoes-e-aquisicoes-ma-no-brasil-cresce-30-em-2018-segundo-aig-seguros/>. Acesso em: 25 de maio de 2020.

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