Pandemia

Covid-19 e o Direito Urbanístico

Em Paraisópolis, os moradores se organizaram, diante da ausência do Estado, para enfrentar a pandemia

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O isolamento social imposto pela pandemia do COVID-19  interrompeu a atividade frenética do dia a dia e trouxe uma pausa para a imaginação.  Grandes pensadores ao redor do mundo já teorizam sobre a necessidade de reorientamos nossas práticas sociais e construirmos novas formas de vida social a partir dessa pausa [1]. A aceleração do tempo e o encurtamento das distâncias promovidos pela revolução tecnológica nas últimas décadas imprimiram velocidade aos acontecimentos, mas dificultaram a reflexão acerca de outras possibilidades de organização social, política e econômica além daquelas colocadas pelo standard global [2].

Como se fosse a única opção possível, a agenda neoliberal avança no Brasil e no mundo em três frentes. No campo do trabalho, com a precarização das relações trabalhistas, privatização de serviços públicos essenciais e avanço do estado policialesco, que reprime os protestos com cada vez mais violência. Na área dos recursos naturais, com a privatização de bens essenciais à vida, como a água, e a intensificação sem precedentes de agressões ao meio ambiente, ameaçando modos de vida de populações inteiras. Na esfera do capital, com a expansão dos circuitos financeiros face aos circuitos produtivos e aumento desproporcional na circulação do capital fictício.

As consequências desse avanço – agravadas pela pandemia – já vinham tomando a forma de uma grave crise econômica global e do recrudescimento de movimentos de ultradireita de índole fascista, um cenário que lembra aquele vivido há cerca de oitenta anos, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Assim como a pandemia do COVID-19, a guerra eclodiu em um momento de crise econômica generalizada no mundo ocidental e ceifou milhares de vidas.

Contudo, sobre os seus escombros, instituições políticas e econômicas dos Estados nacionais foram reformuladas e nasceram as primeiras instituições globais, incumbidas da proposição de agendas para o desenvolvimento da humanidade. Para muitos pensadores da época, a destruição de milhares de vidas e a desilusão causada pelos horrores do nazifascismo levariam as nações europeias à busca por melhores padrões de convivência [3].

Ainda que esse objetivo pareça ter se perdido ao longo do percurso – o que explica a recente declaração de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da Organização Mundial de Saúde, segundo a qual a maior ameaça diante da pandemia não é o vírus em si, mas a falta de liderança e solidariedade das nações [4] – o papel das instituições criadas a partir da segunda metade do século XX não pode ser subestimado.

É verdade que a maioria delas – especialmente as instituídas pelos Estados nacionais – estão hoje sob a orientação neoliberal, mas também é certo que tais instituições não se comportam como blocos monolíticos de poder. Ao contrário, delas partem, muitas vezes, modelos de ação coletiva que permitem inovar as relações políticas, econômicas e sociais [5].

Em um cenário de pandemia, ações que buscam evitar os efeitos mais perversos da crise sanitária podem abrir possibilidades de inovações institucionais tanto por parte das instituições do Estado como da sociedade civil. Exemplos dessas inovações são práticas fundadas em formas alternativas de produção, como o associativismo e o cooperativismo.

Além disso, surgem modos alternativos de integração social, política e econômica baseados em princípios econômicos diversos daqueles estabelecidos pela lei da oferta e demanda, como o princípio da reciprocidade e o princípio da domesticidade. O primeiro baseia-se na distribuição de bens e serviços conforme costumes sociais (e não de acordo com o preço fixado pelo mercado).  O segundo na produção e armazenamento dos bens e serviços para o uso específico de uma comunidade, seja uma família, um bairro etc.

Grande parte dessas ações está diretamente relacionada ao Direito Urbanístico. Em cenários de crise econômica e institucional, alguns ramos do Direito são especialmente chamados a regular os conflitos judiciais. Assim como no período pós-guerra, quando a necessidade de reconstrução de cidades europeias deu impulso ao recém criado Direito Urbanístico, a crise sanitária global vem mostrar a importância desse ramo do Direito na regulação dos conflitos judiciais relacionados ao direito à cidade.

Como o papel histórico das cidades é concentrar a produção e o consumo, elas são, por excelência, o local onde as pessoas se ajuntam e ficam mais suscetíveis à contaminação. O aumento ou diminuição da possibilidade de contágio e da taxa de mortalidade causada pela COVID-19 estão diretamente associados às condições de alimentação, moradia, saneamento, transporte e segurança pública. As principais vítimas dessa doença – assim como das demais doenças epidêmicas, como a dengue – são as populações vulneráveis, sem acesso a recursos urbanos de primeira necessidade.

No caso da COVID-19, os moradores de áreas em situação precária ficam mais expostos à doença em razão da falta de água limpa para a higienização do próprio corpo e dos alimentos e utensílios; do congestionamento domiciliar (várias gerações de família habitando a mesma residência), que dificulta ou até mesmo impede o isolamento de membros da família infectados; da falta de acesso aos serviços médico-hospitalares (atenuadas em razão da organização do Sistema Único de Saúde SUS); da necessidade premente de locomover-se para garantir a própria subsistência e dos familiares, expondo-se ao contágio etc. Além deles, os moradores de rua e a população carcerária são particularmente vulneráveis ao vírus nas áreas urbanas.

Os efeitos da pandemia atingem de forma desigual as diferentes classes sociais, como vêm mostrando as pesquisas sobre condições de contágio da doença por padrão socioeconômico e étnico-racial. O maior número de vítimas é de homens pobres negros [6]. Esses dados comprovam que a mortalidade por COVID-19 está diretamente relacionada à desigualdade social.

Daí o papel fundamental do Direito Econômico, ao lado do Direito Urbanístico, para atenuar os efeitos dessa grave crise sanitária, que já anuncia drásticos resultados negativos na economia mundial.  Não só em cenários de excepcionalidade o Direito Urbanístico se articula com o Direito Econômico. Eles são ramos afins do Direito, na medida em que o desenvolvimento urbano e a superação da desigualdade social nas cidades dependem essencialmente do planejamento da atividade econômica, objeto de estudo do Direito Econômico.

No caso do Direito Urbanístico, o planejamento urbano, que sempre se orientou majoritariamente pelos interesses do capital, descolou-se completamente dos interesses da coletividade nos últimos anos. A disseminação do coronavírus ocorreu em um cenário de grave crise urbana no País, seguindo a tendência global de aumento da desigualdade urbana [7].

Na área da política urbana, essa tendência reflete-se na privatização crescente dos serviços públicos, a exemplo do recente incentivo à privatização do serviço de saneamento básico trazido pela Lei 14.026/2020; no desmonte dos programas de financiamento habitacional, promovido especialmente pela Medida Provisória 889/2019; na uberização das relações de trabalho e consumo; na adoção de políticas de segurança que estimulam o armamento da população e acirramento da violência policial. O resultado é a deterioração das condições de vida do morador urbano no Brasil.

Um cenário que parecia invisível para as instituições em geral, mas que, de súbito, passou a ocupar, junto com a pandemia, a mídia nacional. O discurso de austeridade fiscal rapidamente deu lugar, nos principais meios de comunicação, à defesa da assistência mínima aos desempregados e trabalhadores informais. O SUS – criticado desde sempre como um sistema ineficiente e esvaziado recentemente de recursos orçamentários por força da PEC 95/2016 – ganhou destaque e importância no noticiário.

Os funcionários públicos – vistos exclusivamente como fonte de gastos do Governo – passaram a ser merecidamente valorizados, em especial aqueles dedicados aos serviços de saúde [8].  Microempreendedores são agora tidos como indispensáveis ao funcionamento da economia. Os entregadores das plataformas de aplicativos, que sempre atuaram na invisibilidade, organizaram-se em movimentos de greve, vindicando direitos trabalhistas básicos que lhes são negados em razão da uberização das relações de trabalho [9]. O discurso hegemônico que pregava a competição, o individualismo e a eficiência medida em lucros foi rapidamente substituído pelo discurso da solidariedade, da inclusão e da ação comunitária.

Ao lado da mudança no discurso, algumas ações – que podemos chamar de inovadoras no panorama institucional – se destacam. No âmbito do Poder Judiciário, o julgamento da APDF 635, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro contra medidas previstas no Decreto Estadual 46.775/2019, parece ser a primeira reação do Supremo Tribunal Federal contra o acirramento da violência policial em comunidades carentes no Rio de Janeiro.

As medidas previstas no Decreto incluem o uso de helicópteros como plataformas de tiros em operações policiais e a expedição de mandados de busca e apreensão coletivos e genéricos. O STF deferiu medida cautelar incidental no curso da APDF para determinar que não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, salvo em situações absolutamente excepcionais, imediatamente comunicadas ao Ministério Público.

A liminar teve por objetivo resguardar a prestação de serviços públicos sanitários e a atuação da ajuda humanitária nas comunidades vulneráveis. Contudo, pode ser o primeiro passo para reverter uma política de segurança pública que produziu dezenas de tragédias, em menos de dois anos, entre as quais a mortes de várias crianças e violação generalizada dos direitos humanos, além de resultados desastrosos: no ano de 2019, um terço dos homicídios no Estado do Rio de Janeiro foi praticado por agentes policiais [10].

Também no âmbito do STF, os juízos de Execução Penal de todo o país foram conclamados, por decisão proferida nos autos da ADPF 347, a analisarem, face à situação de pandemia provocada pela COVID-19,  a possibilidade de adoção das seguintes medidas em relação à população carcerária do país: a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos; b)regime domiciliar para presos acometidos de doenças suscetíveis de agravamento pelo contágio com o vírus; gestantes e lactantes; e presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça; c) substituição da prisão provisória ou em flagrante por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça; d) progressão de pena a quem já cumpriu o mínimo legal e aguarda exame criminológico e progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto.

Tais medidas vão na contramão da tendência de aumento do encarceramento como política de justiça criminal,  abrindo caminho para medidas alternativas de cumprimento de pena e quiçá para procedimentos de justiça restaurativa, já adotados de forma pioneira pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

No âmbito do Poder Legislativo, o Congresso Nacional aprovou a Lei

14.010/2020, que cria regime jurídico emergencial para regular as relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia, derrubando o veto do Presidente ao dispositivo que proibia liminares em ações de despejo no caso de atraso no pagamento de aluguel, entre outros. Trata-se de uma medida que busca evitar, ao menos temporariamente, que a moradia seja regida pelos princípios do mercado privado. Tal medida vem na contramão de iniciativas legislativas que buscam tratar as relações jurídicas imobiliárias como relações de direito comercial, a exemplo do artigo 784, inciso X, do Código de Processo Civil.

Ainda no Congresso Nacional tramita o PL 1975/2020, que prevê a suspensão do cumprimento de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas que resultem em despejos ou desocupações de áreas habitadas durante a pandemia. Essa iniciativa atende a pedidos da Defensoria Pública e do Ministério Público de vários Estados, que têm se posicionado contra o cumprimento de medidas de reintegração de posse ou desocupações de área ocupadas por populações vulneráveis durante a pandemia. Recentemente, o

Relator Especial sobre Moradia Adequada da ONU, Balakrishnan Rajagopal pediu aos Poderes Legislativo e Executivo que adotem medidas de emergência para proteger os direitos de comunidades e pessoas em situação vulnerável durante a pandemia, incluindo a moratória de todas as ordens de despejo no Brasil. Segundo Rajagopal, alguns tribunais brasileiros suspenderam as ordens de despejo, mas muitas autoridades judiciárias estão autorizando a reintegração de posse de grandes empresas e proprietários de terra e colocando a segurança e saúde dos mais vulneráveis em risco [11]. A sociedade civil também se mobilizou contra as desocupações por meio da Campanha Despejo Zero, que reúne organizações e movimentos urbanos e rurais [12 ]. Trata-se da valorização do uso da terra como moradia e não como mercadoria.

Em vários municípios e no Distrito Federal, autoridades do Poder Executivo organizaram serviços de atendimento à população de rua. Os moradores de rua estão particularmente vulneráveis durante a pandemia, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque se expõem ao contágio da doença. Além disso, porque correm o risco de não conseguir garantir a própria sobrevivência, dependentes que são de doações de transeuntes.  Ainda que adotadas de forma tímida, muitas vezes em razão de pressão dos próprios moradores de rua ou de determinação judicial, tais medidas mostram que é possível, com pouco custo financeiro, criar condições dignas de abrigo e alimentação para a população de rua do país.

Mas é na sociedade civil organizada que a pandemia vem mostrar com maior força o potencial das inovações institucionais. Práticas sociais e econômicas fundadas em princípios estranhos ao neoliberalismo ganharam destaque nas comunidades mais exposta à ameaça do vírus.

Em Paraisópolis, segundo maior conglomerado de habitações precárias da cidade de São Paulo, os moradores se organizaram, diante da ausência do Estado, para enfrentar a pandemia.

Valendo-se de uma rede associativa formada pelo G10 Favelas – grupo de lideranças de várias comunidades carentes – e pela associação de moradores da própria comunidade, os moradores de Paraisópolis adotaram práticas de combate à pandemia que vão desde o acompanhamento dos casos da doença a iniciativas de geração de renda, incluindo a distribuição de cestas básicas e doações. O financiamento vem de contribuições de pessoas físicas e algumas parcerias com empresas privadas.

A rede funciona à base de práticas associativas e cooperativas. Como resultado, o índice de mortalidade por Covid19 na comunidade, no início de julho, estava em torno de 21,7 pessoas por 100 mil, muito abaixo da média do município (56,2) e de outras comunidades de baixa renda, como Pari (127), Brás (105,9) e Brasilândia (78) [13].

Além de comprovar que a assistência do Estado – nesse caso assumida pela própria comunidade – é indispensável para a redução da mortalidade pela COVID-19, a experiência da comunidade de Paraisópolis  mostra que estão em gestação novos modelos de práticas institucionais. Muitas delas se baseiam em princípios associativos e cooperativos e operam à margem do sistema de autoregulação do mercado. Tais práticas sinalizam para outros modos de integração econômica, política e social além daquele preconizado pelo modelo neoliberal.

Iniciativas como a da comunidade de Paraisópolis tendem a surgir em comunidades mais vulneráveis, ditadas pela necessidade. Contudo, experiências bem-sucedidas como estas podem ser ampliadas se o Estado se dispuser a estimulá-las, inclusive com aporte financeiro.

Para tanto, é essencial que o planejamento urbano se revista de caráter participativo. A gestão participativa  é um dos princípios da política urbana (artigo 2º do Estatuto da Cidade), mas até agora tem sido ignorado pelo Direito Urbanístico, como bem demonstrado no julgamento do Recurso Extraordinário 607.940, um dos raros casos em que o tema da participação da população na elaboração de leis de regulação do uso, parcelamento e ocupação do solo foi debatido no STF.

A gestão participativa da política urbana – prevista na legislação urbanística – mostra sua importância na medida em que permite a inovação institucional, agregando ao conhecimento científico produzido nas esferas administrativas do Estado o conhecimento adquirido pelas práticas sociais, políticas e econômicas vivenciadas pelo morador urbano na sua comunidade local.

Desta forma é possível contrapor ao pensamento único produzido pelas forças neoliberais em escala global o pensamento produzido pelos diferentes agentes sociais e atores políticos que atuam na escala local. Abre-se, assim, o mundo das possibilidades, a que se referia Milton Santos ao propor uma outra globalização.

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Notas:

24513414?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=com partilhar >. Acesso em 25 ago. 2020.

Combate (Racismo Ambiental) Blog. 08 abr. 2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/04/08/acoronacriseeasemergenciasnascidadesporerminiamaricato/ > Acesso em 25 ago. 2020.

  • MAIS de 5 mil entregadores de empresas de aplicativo devem parar no 1º de julho. CUT Brasília. 18 jun. 2020. Disponível em: <

http://www.cutbrasilia.org.br/site/2020/06/18/maisde5milentregadoresdeempresasdeaplicativodevempararno1odejulho/?fbclid=IwAR0J2ZVWxUIw_OCyGQgYpDrFHjPWPQD1DstLMRBFoz6U BsERP2VaNVLg2Q >. Acesso 25 ago. 2020.

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/07/01/Porque

Parais%C3%B3polissedestacanocombateaocoronav%C3%ADrus >. Acesso em 26 ago 2020.