Convênios

Covid-19, Direito Administrativo e ‘convênios’ com entidades com fins lucrativos

Pandemia nos revelou que as parcerias entre o Estado e iniciativa privada são salutares para a promoção de políticas públicas

Crédito: Pixabay

A pandemia do COVID-19, causada pelo letal coronavírus, vem gerando uma série de impactos no mundo jurídico. Curiosamente, para lidar com essa crise sem precedentes, as entidades e órgãos administrativos vêm lançando mão de institutos clássicos do Direito Administrativo.

É o caso, por exemplo, da requisição administrativa, que passou a ser uma medida adotada pelos entes federativos como forma de apropriação de instrumentos voltados ao combate à disseminação da doença e ao atendimento de pacientes (tais como máscaras de proteção e respiradores); e da dispensa de licitação, que é uma das modalidades tradicionais de contratação direta da Administração Pública (isto é, sem a realização de licitação, do que é exemplo o art. 4º da Lei nº 13.979/2020). Mas há um outro instrumento jurídico tradicional do Direito Administrativo e que começa a voltar à tona nesse momento de crise: os convênios administrativos.

Manuais clássicos sempre incluíram os convênios como uma forma lícita de parceria entre poder público e particulares, nos quais, diferentemente dos contratos clássicos, se constata uma convergência de interesses entre os partícipes. No âmbito normativo, o art. 116 da Lei nº 8.666/1993 era considerado como o fundamento jurídico dos ditos convênios. O caput do dispositivo preceitua que “aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração”. A lógica, então, era a de que as diversas regras procedimentais contidas na Lei Geral de Licitações só se aplicariam parcialmente aos convênios.

Esse cenário aparentemente se alterou com a edição da Lei nº 13.019/2014, que criou o regime jurídico das parcerias entre a Administração Pública e as chamadas organizações da sociedade civil. É que, de um lado, o art. 84 da norma afastou a incidência do art. 116 da Lei nº 8666/1993 às parcerias por ela regidas e previu, em seu art. 84-A, que referido instrumento se limitaria (i) aos ajustes entre entes federados; e (ii) aos convênios celebrados com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos no sistema de saúde. Foi diante dessa alteração que parcela da doutrina passou a negar a possibilidade de celebração dos ditos “convênios” entre Administração Pública e entidades privadas com fins lucrativos[1].

Há, pois, uma situação de aparente vácuo normativo quanto à disciplina de negócios jurídicos firmados entre a Administração Pública e entidades privadas com fins lucrativos sem o repasse de recursos. Até porque, a Lei nº 8.666/1993 disciplina, de um modo geral, contratações de natureza sinalagmática, com contraprestações mútuas entre as partes públicas e privadas, em que o fornecimento de bens e a prestação de serviços em favor da Administração Pública são geralmente remunerados por meio de verbas orçamentárias.

Além disso, todas as modalidades licitatórias e critérios de julgamento requerem a apresentação de uma proposta de preço, o que torna inaplicável, em tese, a realização de uma licitação para contratos sem contraprestação pública.

A questão é que o atual cenário de pandemia acaba por oportunizar uma nova reflexão sobre essa forma de interpretação restritiva do art. 116 da Lei nº 8.666/1993 e sobre a própria viabilidade jurídica de celebração de convênios (ou de instrumentos congêneres).

A dúvida se coloca na medida em que há notícias de particulares que vêm se colocando à disposição do Estado para colaborar com medidas para auxiliar no combate à disseminação da COVID-19, sem o recebimento de repasses de recursos financeiros públicos para tanto.

Tais medidas vão desde hipóteses de doação de bens, construção de leitos e até mesmo prestação de consultorias no setor de saúde e outras áreas estratégicas. Em alguns casos, cogita-se da celebração de uma parceria mais robusta, com encargos, mas que não configura propriamente um contrato, já que não há contrapartidas definidas por parte do Poder Público. O que existe em muitos casos são os tais “interesses convergentes”, que legitimam a celebração de um negócio jurídico de natureza convenial.

Então, a dúvida surge: o que fazer nesses casos? Deve-se proibir totalmente esse tipo de parceria em prol de uma leitura ampliativa do art. 84-A da Lei nº 13.019/2014? A resposta parece ser negativa. E há um conjunto de razões que podem ser suscitadas para defender essa posição.

Em primeiro lugar, parece que a intenção da Lei nº 13.019/2014 não foi a de limitar os espaços de autonomia da Administração Pública para firmar parcerias com a iniciativa privada, mas sistematizar, dentro da taxonomia dos negócios jurídicos administrativos, quais daqueles seriam expressamente denominados como convênios. E o art. 84, parágrafo único da referida legislação apenas estipula o regime jurídico a que esses convênios se submetem – isto é, o art. 116 da Lei nº 8.666/1993. Disso não se extrai, necessariamente, que apenas os ajustes mencionados no dispositivo possam ser celebrados pela Administração Pública como parcerias conveniais.

Afinal, é necessário apontar, em segundo lugar, que o art. 116 da Lei nº 8.666/1993 não menciona apenas a figura do convênio. O caput do dispositivo estabelece uma sistemática jurídica para “convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração”, a revelar uma cláusula geral de parcerias entre a Administração Pública e a iniciativa privada. Seu objetivo é lidar com a atipicidade de tais acordos. Isto é: independentemente do nomen juris que é conferido ao instrumento celebrado, a existência de interesses convergentes atrai a incidência do art. 116 da Lei nº 8.666/1993. E uma leitura da Lei nº 13.019/2014 que reduza essas parcerias apenas aos convênios que menciona simplesmente reduziria a eficácia da Lei de Licitações a hipóteses muito específicas, contrariando sua própria racionalidade.

Nesta linha de ideias, é possível afirmar, em terceiro lugar, que a leitura ampliativa do art. 84-A da Lei nº 13.019/2014 poderia ser, no limite, inconstitucional. Com efeito, limitar de tal forma os instrumentos disponíveis à Administração Pública para celebração de negócios jurídicos com a iniciativa privada pode simplesmente inviabilizar políticas públicas fundamentais em que as parcerias são salutares para a promoção dos objetivos estatais. Há muito, se reconhece que o aparato burocrático da Administração Pública é insuficiente para lidar com todos os desafios de uma sociedade complexa. E relegar as parcerias de interesses convergentes apenas a situações específicas parece criar uma situação insustentável e totalmente arbitrária.

Por fim, em quarto e último lugar, é possível que se promova uma interpretação restritiva do art. 84-A da Lei nº 13.019/2014, tal como defende Marçal Justen Filho, “reputando-se que o dispositivo dispõe exclusivamente sobre convênios com repasse de recursos públicos.

Essa alternativa permite a manutenção do art. 116 da Lei Geral de Licitações como fundamento para a celebração de parcerias entre Estado e entidades privadas com fins lucrativos, desde que não haja repasse de recursos financeiros públicos[2].

De forma similar, a Advocacia Geral da União já opinou favoravelmente à celebração de acordos de cooperação pela Administração Pública com particulares (inclusive entidades com fins lucrativos)[3] naqueles casos em que há interesse na mútua cooperação técnica com vistas à “execução de programas de trabalho, projeto/atividade ou evento de interesse recíproco, da qual não decorra obrigação de repasse de recursos entre os partícipes.”

Esse movimento também se verifica pela edição do Decreto Federal nº 9.764/2019, que estabelece regras procedimentais para formalização de doações de bens ou serviços de pessoas físicas ou jurídicas para órgãos ou entidades privadas. Muito embora o mencionado decreto se valha do termo “doação”, é perceptível a sua intenção de viabilizar autênticas parcerias estratégicas entre órgãos e entidades públicas e privadas.

A propósito, o §1º do art. 1º do ato admite a possibilidade de que o objeto da doação envolva estudos, consultorias ou tecnologias que busquem prover soluções e inovações ao governo e à sociedade. Essa norma foi muito recentemente alterada pelo Decreto nº 10.314/2020, que passou, dentre outros, a admitir que o instrumento de doação (bens) ou de adesão (serviços) prevejam encargos para o parceiro público, o que demonstra uma resposta do Governo à importância de demandas dessa natureza neste atual cenário de crise.

Por fim, é importante pontuar que a possibilidade de celebração de parcerias nos termos acima não significa um cheque em branco nas mãos dos gestores públicos. A Administração Pública tem o ônus de justificar adequadamente a necessidade de parceria e a escolha do particular, mediante a instrução de processo administrativo regular e da obtenção de opiniões técnicas e jurídicas sobre o modelo adotado, tal como alertado pela AGU no parecer referido acima.

E mais: em regra, é necessário, em atenção ao princípio constitucional da impessoalidade, que seja realizado um chamamento público prévio para seleção do parceiro privado, observadas as normas aplicáveis, já que pode haver mais de um particular interessado em firmar tal parceria.

Seja como for, a pandemia da COVID-19 nos revelou que as parcerias entre o Estado e a iniciativa privada são salutares para a promoção de políticas públicas. É necessário que o direito, os juristas e os controladores encontrem respostas para possibilitar e impulsionar essas parcerias; e não, inviabilizá-las.

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[1] C.f., e.g., DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1.170.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1.612.

[3] Parecer nº 00004/2016/DPCONSU/CPCV/PGF/AGU.