Pandemia

Covid-19: alterações contratuais no âmbito da Administração Pública

Análise da possibilidade de modulação na forma de pagamento dos contratos públicos

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Crédito: Pixabay

A pandemia acarreta grave crise no sistema público e privado de saúde, refletindo de maneira negativa na ordem econômica e desafiando as autoridades estatais e a população a adotarem medidas preventivas e repressivas para superação da crise.

No âmbito da Administração Pública, tais medidas de contenção, tomadas em conjunto pela União e pelos estados e municípios brasileiros, têm ocasionado gastos imprevistos advindos com o redirecionamento de recursos públicos para o combate à pandemia e para o tratamento dos infectados, de forma que as entidades administrativas estão perdendo porção relevante dos recursos alocados para custear os seus contratos em geral.

Além disso, as medidas de restrição à circulação de pessoas afetam a economia e a arrecadação do Estado e, por consequência, a Administração dispõe de menos recursos.

Dessa forma, carecem os entes administrativos de fundos para manter o pagamento de diversos contratos administrativos dos quais é parte. Por outro lado, inúmeros contratos são essenciais ou necessários à Administração.

Diante dessa problemática, e considerando que o desfazimento ou a suspensão dos referidos contratos traria impactos negativos não apenas à Administração, com o tolhimento da gestão de suas políticas públicas, mas também à população de empregados que seriam demitidos e empresas que fechariam suas portas, agindo, pois, na contramão do próprio interesse público, ações diferenciadas precisam ser levadas a efeito, para desonerar, ainda que parcialmente, a Administração desses pagamentos, permitindo-se a continuidade dos contratos diante da calamitosa situação, de forma equacionada, junto aos particulares contratados.

Para tanto, a Lei nº 8.666/93, que institui normas gerais de licitação e contratos, em seu art. 65, inciso II[1], prevê a possibilidade de alteração contratual, por acordo entre as partes, nos casos em que o equilíbrio econômico financeiro do contrato fica prejudicado pela superveniência de fatos imprevisíveis, podendo, inclusive modificar a forma de pagamento do contrato.

O doutrinador Marçal Justen Filho, ao dispor sobre a Teoria da Imprevisão, que ensejaria a possibilidade de revisão contratual, a conceitua da seguinte forma:

Durante a execução de contratos, em especial daqueles de longa duração, podem ocorrer alterações econômicas imprevisíveis, tornando inviável ao particular executar o contrato nas condições originalmente previstas. Executar a prestação nos exatos termos inicialmente previstos acarretaria sua ruína, com o enriquecimento correspondente da outra parte.

A aplicação da teoria da imprevisão deriva da conjugação dos seguintes requisitos:

– imprevisibilidade do evento (o que compreende a inviabilidade de estimativa dos efeitos de evento previsível);

– inimputabilidade do evento às partes;

– grave modificação das condições do contrato;

– ausência de impedimento absoluto.

O primeiro pressuposto relaciona-se com a impossibilidade de previsão dos fatos, dentro de um panorama de razoabilidade. É costumeiro distinguir os conceitos de álea ordinária e extraordinária, para determinar que a teoria somente se aplica em face desta última.

A distinção entre ordinariedade e extraordinariedade se relaciona com a probabilidade da ocorrência dos eventos. O critério diferencial não é a mera possibilidade do evento, o que tornaria inútil a distinção: todo evento possível seria previsível e, por isso, integraria a álea ordinária. Logo, comporiam a álea extraordinária apenas os eventos impossíveis, os quais nunca ocorreriam por sua própria definição.

A diferença entre álea extraordinária e ordinária somente é simples quando se examinam situações extremas. (…) O conceito de imprevisibilidade também pode ser utilizado para indicar a ausência de participação da parte interessada na produção do evento danoso.[2]

A partir desse conceito é possível afirmar que a pandemia do novo coronavírus é, indubitavelmente, fato extraordinário e imprevisível às partes que celebraram contratos antes de sua ocorrência.

Diante desse cenário, é não apenas possível, mas altamente recomendável, com o objetivo de evitar a suspensão ou extinção contratual, a promoção de negociação entre a Administração e o particular, para redução de preços e/ou alteração da forma de pagamento do contrato.

Isso porque a simples redução do objeto não é possível em todos os contratos, assim como o corte mensal de valores também não, uma vez que este ocasionará grave desequilíbrio da proposta inicial, por meio da diminuição nos pagamentos mensais nos doze meses subsequentes. Apesar disso, por imperativo de economicidade, a Administração vê-se compelida a cortar custos e reduzir os valores pagos por si também em relação a tais contratos.

A solução perpassa, pois, pela remodelagem desses contratos administrativos por meio de aditivo contratual, tendo em vista a satisfação do interesse público primário, a obrigação constitucional dos poderes de promoverem a justiça social e os princípios da economicidade e da proporcionalidade aplicáveis aos contratos públicos.

Não é demais ressaltar que o art. 54 da Lei de Licitações e Contratos dispõe que aos contratos públicos aplicam-se supletivamente os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.

A partir dessa disposição, importa citar que o art. 421 do Código Civil, que trata da Teoria Geral dos Contratos, estabelece que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.

Conforme texto normativo do artigo 421 do Código Civil, o princípio da autonomia contratual revela-se em duas concepções, a liberdade de contratar e a liberdade contratual, sendo a primeira a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a segunda a capacidade de estabelecer o conteúdo do contrato.

A autonomia contratual refere-se ao momento em que as partes discutem os seus interesses e dispõem acerca das cláusulas contratuais, na busca do equilíbrio das desigualdades e da ponderação para que não acarrete injustiças.

Ressalte-se que a função social do contrato tem o dever de garantir que o contrato atinja seus interesses sociais, sem prejuízo da coletividade, mantendo-se o equilíbrio entre os contratantes.

Assim, para manutenção da função social do contrato, e em decorrência do dever de lealdade e boa-fé (art. 422 do Código Civil), na renegociação contratual, as partes podem, de maneira consensual, readequar os direitos e as obrigações, principais e acessórias, como forma de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Em diversos contratos privados, o Poder Judiciário já se manifesta favoravelmente à adoção de soluções que modulem as obrigações entre as partes, de forma a mitigar as graves consequências da crise que assola o mundo, confira-se:

(…) A Pandemia decorrente da circulação do vírus Sars-CoV-2, causadora da doença denominada Covid-19, é fato público e notório, dispensável de ser explicada. (…) Em situações como a presente, de calamidade, entretanto, o Poder Judiciário deve atuar de forma a mitigar as consequências da crise, distribuindo os prejuízos econômicos de forma adequada, de maneira a não agravar mais ainda a situação de depressão econômica. Com base nesse raciocínio, entra em ação o Princípio da Imprevisão, autorizando-se a modulação das obrigações quando evento externo, imprevisível, ataca a relação jurídica e a torna difícil de ser executada para um dos seus polos.

Dependendo da situação, portanto, poderá o juiz relativizar o cumprimento da obrigação, preservando até mesmo o próprio Contrato, pois a sua não relativização levaria ao rompimento da relação jurídica, prejudicando o próprio credor. (…) A atuação, desta forma, ao menos para mim, diminui a tensão da relação entre as partes, considerada, sempre, a excepcionalidade do quadro mundial. (…)[3]

Corrobora esse entendimento o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[4], que autoriza a celebração de compromisso entre a Administração e terceiros para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa, buscando “solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais”.

Para tanto, cumpre ao Poder Público utilizar-se da Teoria da Imprevisão, em atendimento à função social do contrato, para preservação do interesse público, ao tempo em que permite uma solução viável de pagamento à Administração, como a possibilidade de postergar ou parcelar pagamentos, sem a diminuição dos valores mensais futuros do contrato, o que permitirá à empresa manter seus fluxos de caixa em um segundo momento.

Conclui-se pela possibilidade de as partes, diante da grave crise econômica e de saúde que acomete o país, modularem os termos do contrato público, de forma que este possa atender aos objetivos sociais a que se destina, qual seja, permitir a manutenção da gestão de políticas públicas, aliada com a permanência de empregos e da liberdade econômica, ao tempo em que permite uma solução viável de pagamento à Administração.

 


[1] Art. 65.  Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (…)

II – por acordo das partes: (…)

c) quando necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o valor inicial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço;

d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.

[2] FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 17.ª edição, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2016, p. 1188-1189.

[3] TJDF – Agravo de instrumento 0707596-27.2020.8.07.0000. Rel. Des. Eustáquio de Castro. 01/04/2020.

[4] Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

1º O compromisso referido no caput deste artigo:

I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;(…)

III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.