Coronavírus

Cortes online e devido processo legal tecnológico: um dilema em construção

Projeto jamais poderá ser erguido sem o pilar estruturante do devido processo legal tecnológico

Crédito: Pixabay

A crise sistêmica ocasionada pelo coronavírus serviu de catalisador para o processo de implementação de Cortes Online em todo o mundo. Países como Canadá, Singapura e China, por exemplo, já possuíam modelos estruturados de funcionamento de tribunais online, mormente para o trato de questões de reduzida complexidade[1].

Ocorre que, no atual momento, deixar de adotar uma arquitetura informatizada dos serviços judiciais significa, sem dúvida, negar o direito de acesso à justiça conferido a todo e qualquer cidadão.

No Brasil, já existia um forte movimento de expansão do uso de novas tecnologias, no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo, principalmente, de debelar o problema estrutural do elevado volume de processos. Desse modo, não apenas simples ferramentas de impulsionamento processual mecanizado, mas também aplicações, por exemplo, de inteligência artificial passaram a ser utilizadas no cotidiano forense.

 

Nessa linha de intelecção, o Conselho Nacional de Justiça lançou, em 2019, a publicação denominada “Inteligência Artificial e o Poder Judiciário brasileiro”[2], na qual destaca a necessidade inconteste de implementação de uma plena Justiça Digital: “As áreas do direito e da tecnologia evoluem simbioticamente a cada dia. Para fazer frente à realidade da Era Digital e de uma “sociedade em rede”, o Judiciário precisa ser dinâmico, flexível e interativo. Um mundo digital exige uma Justiça digital: célere, dinâmica e também digitalmente conectada.”

Ocorre que a realidade dos tribunais pátrios ainda está distante de um universo completamente online. Portanto, não é incomum encontrar órgãos jurisdicionais que laboram, quase que exclusivamente, com processos físicos.

O isolamento social atualmente imposto, no entanto, exigiu uma transição forçada do mundo offline para o mundo online, provocando um rearranjo na prática dos atos processuais, a fim de se adotar a forma preponderantemente eletrônica, tal como já autoriza o CPC, em seu art. 193: “Os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei.”

Nesse diapasão, foram editados inúmeros atos normativos pelos tribunais e também pelo CNJ, com a finalidade de ampliar as hipóteses de julgamento eletrônico (Ex: Emenda Regimental nº 53 do STF), disciplinar a sustentação oral por videoconferência (Ex: Resolução nº 314 do CNJ que disponibilizou a ferramenta Cisco Webex), regrar a realização de perícia por meios eletrônicos (Ex: Resolução nº 317 do CNJ), regulamentar as audiências não presenciais (Resolução nº 314 do CNJ), dentre outras situações.

Diante dessa perspectiva, é irrefreável a tendência de consolidação efetiva de Cortes online, no Brasil, porém não se pode olvidar que essa transmutação procedimental tecnológica deve se curvar, necessariamente, às garantias processuais constitucionais, respeitando-se o devido processo legal tecnológico[3].

O primeiro ponto a ser explicitado é o que se refere às sessões de julgamento, pois a estrutura atualmente utilizada, em alguns casos, tem malferido a necessária publicidade processual. Não são incomuns os relatos de advogados que, mesmo inscritos para a realização de sustentação oral, alegam a impossibilidade de acompanhamento integral dos julgamentos que antecedem os seus respectivos casos. Afasta-se, assim, preceito constitucional basilar estampado no art. 93, IX, da Constituição Federal.

Lado outro, a Emenda Regimental nº 53 do Supremo Tribunal Federal determinou que os advogados encaminhassem, com 48 horas de antecedência, o arquivo com o vídeo de suas sustentações orais. A sistemática, a despeito de transparecer uma busca por uma melhor gestão do procedimento, vergasta o contraditório substancial, na medida em que não se tem real garantia de que os argumentos aventados pelas partes serão considerados e, portanto, terão o condão de influenciar os julgadores. Nessa linha de intelecção, pronuncia-se Bruno Dantas[4]: “A sustentação oral em sede de recursos no âmbito dos Tribunais é mais uma oportunidade que o legislador concede às partes de realizarem o contraditório.”

Dessa forma, as ferramentas devem ser adaptadas para transmitir a sustentação oral simultaneamente à ocorrência do julgamento, pois, assim, ter-se-á verdadeira salvaguarda do devido processo legal tecnológico.

Outro ponto que precisa ser observado se refere à realização de audiências de instrução com oitiva de testemunhas, através do uso de sistemas de videoconferência. É imprescindível que o ferramental adotado garanta, por exemplo, que a testemunha não será instruída por quem quer que seja.

Questão de elevada envergadura é aquela alusiva à dificuldade de acesso das partes ao aparato tecnológico necessário à participação no processo. Não se pode conceber que os obstáculos digitais subtraiam do litigante, a título exemplificativo, o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Nessa linha argumentativa, com a publicação da Lei 13.994/2020, cujo teor estabelece a possibilidade de realização de audiência conciliatória não presencial, no bojo dos juizados especiais, deve-se afastar qualquer tipo de penalização daquele que não dispõe de tecnologia suficiente para integrar a sessão judicial informatizada. Infelizmente, a exclusão digital ainda é uma realidade palpitante no Brasil.

Ademais, o funcionamento de Cortes Online depende, necessariamente, de sistemas/aplicações que permitam controlabilidade, ou seja, verdadeira accountability, pois, do contrário, teremos afrontas das mais variadas às garantias processuais das partes.

Assim, na mesma proporção em que se investe em sistemas computacionais voltados à prática de atos processuais, deve-se investir em mecanismos de controle que, efetivamente, guarneçam o contraditório substancial, a ampla defesa, a isonomia e a publicidade.

Esses são apenas alguns exemplos para elucidar que a construção de um projeto de Cortes Online jamais poderá ser erguido sem o pilar estruturante do devido processo legal tecnológico.

Diante do exposto, cabe rememorar as lições de Cândido Rangel Dinamarco[5]: “Também se sabe que só há um processo justo e équo (giusto processo) onde se haja deferido às partes o pleno e efetivo gozo das garantias oferecidas pela Constituição e pela lei e onde o próprio juiz haja acatado as limitações inerentes ao due process.

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[1]  SUSSKIND, Richard. Online courts and the future of justice. Oxford: Oxford University Press, 2019.

[2] Inteligência artificial na Justiça / Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: José Antônio Dias Toffoli; Bráulio Gabriel Gusmão. – Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Inteligencia_artificial_no_poder_judiciario_brasileiro_2019-11-22.pdf. Acesso em 13/05/2020.

[3] VALE, Luís Manoel Borges do. A tomada de decisão por máquinas: a proibição, no direito, de utilização de algoritmos não supervisionados. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos; WOLKART, Erik Navarro. Inteligência artificial e direito processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Juspodivm, 2020, p. 634.

[4] BUENO, Cassio Scarpinela (coord.). Comentários ao código de processo civil. Vol. 4. Saraiva. São Paulo, 2017, 76.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao código de processo civil: das normas processuais civis e da função jurisdicional. Vol. I. Saraiva. São Paulo, 2018, p. 54.